Legionário, Nº 681, 26 de agosto de 1945
Comentário informativo à margem de um triste documento
Tem toda a razão o Revmo. Mons. Ascânio Brandão quando diz que o "Manifesto" do ex-Bispo de Maura não merece refutação. Nenhum "gentleman" levantará a luva que ele deixou rolar na sarjeta. Discutir com ele é nivelar-se a ele...
Não fazemos aqui uma refutação do "Manifesto", mas apenas alguns comentários de caráter informativo, para acentuar essa verdade essencial: que a ruptura do ex-Bispo de Maura com a Igreja se deve exclusivamente a conveniências políticas.
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Há males que a Providência permite "ut revelentur ex multis cordibus cogitationes"; um deles foi o triste "Manifesto" do ex-bispo de Maura.
Nenhum documento poderia retratar melhor a fisionomia moral do novo cisma e de seu fundador: na imensa e indigesta mole dos assuntos tratados, é fácil perceber a displicência com que foram abordados os problemas propriamente teológicos, e, pelo contrário, o interesse, o calor, a amplitude com que as questões políticas e pessoais se formulam, se desenvolvem e se afirmam. Não é preciso ser grande psicólogo, para notar desde logo, que as questões religiosas tiveram fraco papel na eclosão desse cisma que se deve todo ele aos manejos da política e aos ressentimentos da vaidade pessoal.
Essa verdade essencial, que deflui tão claramente do "Manifesto" do Sr. Carlos Duarte Costa, é o ponto fundamental do qual, em toda a presente questão, não nos devemos afastar.
O Sr. Carlos Duarte da Costa negou as seguintes verdades de nossa Fé:
a) a infalibilidade e o primado do Papa;
b) a existência de dogmas objetivos e definidos da Igreja;
c) o livre arbítrio do homem sujeito a leis psíquicas idênticas às da física e da química;
d) a indissolubilidade do vínculo conjugal.
e) a liceidade do celibato eclesiástico;
f) a confissão auricular
g) a independência da Igreja, que fica sujeita inteiramente às leis civis quanto à sua organização interna.
Além disto, ele estabelece a liturgia em idioma nacional, e obriga seus futuros sacerdotes no exercício de profissões comuns, para proverem a sua própria subsistência.
Os bispos serão eleitos pelo povo e confirmados pelo respectivo Clero bem como pelos outros Bispos. Cada Bispo será soberano em sua Diocese, e os Bispos se entenderão entre si quanto aos assuntos de interesses comuns.
Consulte-se o seu manifesto. Que espaço dedica ele a estas questões, todas elas de uma importância religiosa transcendental? A questão do Papado é tratada com algum desenvolvimento. A do divórcio, que pode aliciar para a nova seita muitas simpatias, também. Já há menos insistência na questão do celibato sacerdotal. Quanto ao resto, é tratado "per acidens", com displicência, às corridas. O melhor do espaço do manifesto, o melhor da atenção do autor, ficou reservada para os comentários políticos e as retaliações de ordem meramente pessoal.
É este o verdadeiro sentido da "ruptura" do Sr. Carlos Duarte da Costa.
A NOVA SEITA NÃO TEM DOUTRINA CERTA
Quer-se ter uma idéia do desinteresse do Sr. Carlos D. Costa em matéria religiosa? A ler a enumeração acima, e, mesmo, a se ler apressadamente seu manifesto, tem-se a impressão de que ele conserva em sua nova religião todas as partes da doutrina católica que não tenha repudiado explicitamente. Assim, a "igreja" católica brasileira teria seu "credo" já constituído.
Mas isto não é verdade. "A Igreja em seus primórdios nasceu fluida. Cristianizou-se depois nos seus dogmas precisos" diz o "manifesto". Os dogmas tornaram, pois, precisa alguma coisa que anteriormente era fluida. De onde se segue que a doutrina contida pelos dogmas é neles mais precisa, do que quando revelada por Jesus Cristo. De onde se segue ainda, que os dogmas, no que tem de preciso, são obra humana, e não contém nada de revelado.
Note-se que o "manifesto" não distingue entre este ou aquele dogma: fala de todos. Qual o dogma que fica de pé com este conceito?
O ex-Bispo de Maura continua:
"Pela força do absolutismo, estes dogmas se desagregam, formando um conjunto demasiado maciço, obrigando os homens a retroceder às crenças individuais e livres de preconceitos, sucedendo a rarefação à condensação excessiva". Desde quando vem essa "desagregação"?
Ela se gerou nas catacumbas, onde já se fazia sentir a "pressão do absolutismo". Desde as catacumbas, pois, os homens eram obrigados a retroceder às crenças individuais", isto é, a formar suas crenças segundo bem entendessem, abandonando os dogmas instituídos pela Igreja.
O ex-Bispo de Maura tem uma fobia contra os dogmas. Como a Igreja já impunha certos pontos à crença dos fiéis, nas catacumbas, ele a detesta já em sua fase de vida subterrânea. E, enquanto nós vemos sob Constantino a Igreja levantar-se da terra como um sol, ele a vê sair das catacumbas, como uma serpente malfazeja: "Sai a Igreja das catacumbas, para perseguir os cristãos com seus dogmas e sua legislação". Dir-se-ia que a perseguição aos cristãos não terminou sob Constantino, mas precisamente começou sob ele! O ex-bispo de Maura parece ter mais terror das "perseguições" feitas por meio de dogmas e cânones do que das feras do Circo!
Parece-nos que esses conceitos são a parte mais importante do manifesto.
Eles negam, não só os pontos de Fé, que o ex-bispo de Maura nega explicitamente, mas reduzem toda a religião a um mero subjetivismo individual.
E, nisto, ele vai extremamente longe, parecendo chegar ao mais cru interconfessionalismo.
Ouçamo-lo:
"O excesso das práticas religiosas cansa o homem, colocado dentro de um dogmatismo intolerante, retirando a sua liberdade e obrigando-o a pensar com a cabeça de seus chefes religiosos, conduzindo a humanidade a revoluções e guerras.
"Do constrangimento, da coação, nasce a solidariedade humana.
"Não foi do judaísmo que nasceram o cristianismo e o maometanismo?"
Isto quer dizer que cristianismo e maometanismo se desprenderam do tronco do judaísmo por um mesmo fenômeno. É o fenômeno da coação gerando, provavelmente pela tirania dos fariseus, esses dois grandes movimentos de solidariedade humana. É ao menos o que essas palavras parecem afirmar.
E, neste caso, o cristianismo deixa de ser tudo quanto é para ser um mero fenômeno de revolta contra a tirania, tão humano, tão natural, tão sem características intrínsecas da missão divina, quanto o maometanismo!
E, inelutavelmente somos forçados a admitir que também a "igreja livre brasileira" se forma agora pelo mesmo processo, nasceu livre, sem dogmas nem artigos de Fé, das entranhas do Catolicismo como o Cristianismo "fluido" nascera das entranhas da sinagoga.
Em última análise, seja como for, dogmas, verdades precisas e objetivas da Fé, fica tudo pulverizado.
Qual a doutrina positiva dessa nova seita? Nenhuma.
Pondo por terra a base de toda religião positiva e objetiva, o Sr. Carlos Duarte da Costa colocou sua igreja na impossibilidade de formular qualquer profissão de Fé oficial e coletiva. É uma igreja-monstro, que nasce sem Credo.
CONTRADIÇÕES PALPÁVEIS
A parte a-política do Manifesto foi redigida com tanto pouco caso, este Bispo é tão indiferente à teologia e à doutrina, que se deixou arrastar pelo descuido, a afirmações que qualquer pessoa, ainda que medianamente inteligente, poderia evitar.
Assim, ele se intitula Bispo do Rio de Janeiro, por "eleição popular". Ninguém soube dessa eleição. - Nem ele se sente obrigado a nos dar sobre o fato qualquer notícia. Sem embargo, ele declara implicitamente nula a jurisdição que exerce sobre o Rio de Janeiro o Exmo. Revmo. Sr. D. Jaime de Barros Câmara, Arcebispo nomeado pelo Santo Padre. De onde se deve deduzir que ele acha que a jurisdição conferida pelo voto popular é válida, e a conferida pelo Papa é nula.
Agora, a contradição.
Se só a investidura popular vale, com que direito ele foi Bispo de Botucatú? "O Papa é simplesmente o Bispo de Roma como eu fui Bispo de Botucatú e, posteriormente, Bispo titular de Maura, e agora, por vontade popular, sou Bispo do Rio de Janeiro", escreve ele.
Ora, se o Papa não tem direito de dar jurisdição a Bispos, como foi ele Bispo de Botucatú? Como foi Bispo de Maura? Esteve ele por acaso em Maura organizando um plebiscito para se fazer eleger?
Outra coisa em que há uma contradição. Depois de falar contra o celibato eclesiástico, que ele qualifica de "contrário à natureza", acaba dizendo que esse celibato costuma ser defraudado na Igreja Católica. E, a este propósito, lança acusações e injúrias ao Episcopado e ao Clero, que não condescendemos em reproduzir.
Acerca de quem não vacila em injuriar por esta forma o que temos de mais santo, seja-nos lícito fazer de nós para nós uma pergunta. Todo o estado contra a natureza, ou é impossível de observar, ou prejudica a saúde. Que conclusão tirou ele, deste fato, para sua vida particular?
Observou ele este estado, e está disposto a observá-lo ainda que com prejuízo de sua saúde? Ou já remediou o mal? Conservar-se-á no celibato quem o julga antinatural e desarrazoado? Que projetos alimenta a este respeito o ex-Bispo de Maura?
Outra contradição flagrante. Em seu manifesto, o Sr. Carlos Duarte da Costa afirma em um tópico, que deu à sua igreja o título de católica, apostólica, brasileira, porque esses qualificativos são os que melhor atendem à sua natureza e predicados. Alguns tópicos antes, entretanto, afirmara outro motivo: a nova "igreja" era assim designada em homenagem a uma igual "igreja" fundada por um Padre apóstata em Itapira.
Dar um nome a uma "igreja" é coisa gravíssima. Se o nome designa idealmente a coisa, deve ser-lhe dado ainda que não se homenageie a ninguém com isto. Se pelo contrário o nome não convém, não é por sua homenagem que se há de designar assim uma "igreja".
Isto serve para ver como a escolha de rótulo foi feita com tanta displicência quanto o conteúdo.
Só uma coisa o interessava de fato: injuriar a Santa Igreja Católica, e fazer política.
INJÚRIAS E CALÚNIAS
Além de um sem-número de injúrias contra a Santa Sé e a Igreja, contra os costumes públicos e privados do Episcopado e do Clero, o Sr. Carlos D. Costa fala de dois assassinatos. Um é de um padre José Krtez, "desaparecido dos vivos misteriosamente". "A Igreja costuma agir deste modo quando a vida de alguém pode prejudicá-la. O desaparecimento é "misterioso"? Como então o Sr. Carlos Duarte da Costa pretende saber-lhe as causas?
Quanto ao caso de um Cônego Amorim que também teria sido assassinado, vamos ver do que vale a palavra do Sr. Carlos Duarte da Costa, que é o informante.
Nesse mesmo documento, linhas antes, ele aparece como caluniador manifesto e escancarado. Diz ele: "Sei que o meu irmão Eugênio Pacelli mandou espalhar pelo mundo que eu não sou Bispo. Assim procede, porque está acostumado a mentir e para fracasso do cisma iniciado. Ele, porém, sabe que eu fui eleito Bispo de Botucatú em 4 de julho de 1924 e que fui sagrado Bispo na Catedral do Rio de Janeiro em 8 de dezembro de 1924, pelo Cardeal Dom Sebastião Leme da Silveira Cintra, sendo consagrantes Dom Benedito, então Bispo de Espírito Santo e hoje Bispo titular de Orisa, e Dom Alberto José Gonçalves, Bispo de Ribeirão Preto, há pouco falecido".
Pela natureza da argumentação, vê-se claramente que o Sr. Carlos Duarte da Costa afirma que o Santo Padre mandou espalhar que ele jamais foi eleito ou sagrado Bispo.
Falsidade, evidentemente, e calúnia. Com efeito, no próprio documento de excomunhão, em que o Santo Padre o priva das honras episcopais, lhe reconhece a dignidade episcopal. Como, então, pode o Sr. Carlos Duarte da Costa afirmar de modo tão leviano, que o Papa quer negar que ele alguma vez tenha sido Bispo, ou que continua a ser Bispo mesmo depois da excomunhão?
Esse o valor da palavra do fundador da nova seita. Seita que nasce sem doutrina definida, negando todos os pontos do Catolicismo a um tempo, sem nenhuma doutrina positiva, e fundando-se só na calúnia e no sensacionalismo.
Seita que, visivelmente, só tende a criar confusão política e cujo substractum religioso é totalmente nulo.