Legionário, Nº 674, 8 de julho de 1945

PAZ SOCIAL

Sempre que toca na questão dos salários, estabelece-se uma atmosfera de discussão.

Que se dê este fato em ambiente industrial é lamentável, mas explicável: os interesses pessoais do elemento patronal e trabalhador ficam diretamente empenhados no assunto, e não é surpreendente que com isto se acendam os ânimos. O curioso, porém, é que este problema não tem apenas uma incandescência econômica. Mesmo quando ele se debate em atmosfera puramente intelectual, entre pessoas que não tem qualquer interesse ponderável na questão, é fora de dúvida que ele tem o dom de irritar. "Non in commmotione Deus": esta frase, com que os autores espirituais costumam lembrar que Deus não se manifesta nas alturas entregues à agitação das coisas mundanas, tem também aqui sua plena aplicação. As paixões em ebulição impedem ou dificultam a compreensão da verdadeira doutrina católica. É preciso deixar que elas se aquietem, para que se entenda bem o ensinamento da Igreja. Antes, pois, de tratar da questão, quero desfazer alguns preconceitos que me parecem perturbar, e não pouco, os espíritos.

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Comecemos pelo menos odioso, porque menos saturado de preocupação material. Há muitas pessoas que entendem que reivindicar para as classes operárias salários altos é forçosamente atacar a formação de "elites sociais". Com efeito, dizem elas, a alta dos salários tira às classes intelectuais os meios de desenvolver a cultura, o luxo, e em geral tudo que signifique distinção e elevação de espírito. Muitas pessoas que vivem alheias às necessidades das classes operárias, não tendo sequer a menor noção do que seja a luta trágica do trabalhador por seu ganha-pão, acham que não passa, tudo, de agitação de comunistas que pintam com cores negras um quadro social na realidade muito suportável.

Haveria mil objeções a fazer contra esse estado de espírito. A mais essencial, é que, sem o saber, as pessoas de tal mentalidade estão aceitando um princípio comunista, e conformando segundo ele toda a sua visão social. O comunismo entende que a luta entre as classes, o antagonismo entre seus interesses, é insolúvel, irremediável, irremovível. Por isto, não há que escolher: o preço de uma elite próspera e nobre é, sem dúvida alguma, um operariado desgraçado. A "contrário sensu", o único meio de conseguir o bem estar do operariado é a destruição das elites. Cumpre escolher, e tomar posição na luta. A única realidade social verdadeiramente legítima na ordem capitalista é o conflito insanável entre as classes.

Vejamos agora a que monstruosidade este panorama, aceito como verdadeiro, nos conduziria a nós, católicos. Deus é o Senhor do Céu e da Terra. Criando o mundo para o gênero humano, tê-lo-ia criado tão insuficiente, que nele os homens não poderiam viver em paz. Enquanto qualquer criador de gado sabe exatamente a capacidade de seu pasto e o número de rezes que nele podem viver, Deus, menos sábio, teria calculado mal as dimensões e as riquezas do mundo. Daí, uma luta necessária, inevitável, entre homens e homens, homens de escol e homens de massa, homens superiores e homens comuns, etc., etc. E, apesar disto, como se ignorasse a situação concreta da vida econômica, teria mandado seu Filho para nos pregar... o amor! O que significaria toda a pregação de Nosso Senhor, se admitíssemos esse quadro? "Amai-vos uns aos outros", sim, mas se bem que entre pelos olhos de qualquer pessoa medianamente sensata, que o mundo precisa ter massas e elites; e a massa e as elites tem seus interesses antagônicos! E a condição natural delas é... de se detestarem entre si. A sociedade humana seria um monstro, condenado a viver, ou sem cabeças, ou sem pernas! E este seria o nosso Deus?

A priori, podemos dizer que é falsa uma doutrina que conduziria lógica e inevitavelmente a tais conseqüências. Um católico que admitisse a luta de classes como um fato orgânico, inevitável, necessário, justo, da evolução humana, seria forçado a caminhar, de conclusão em conclusão, até a completa negação da doutrina da Igreja.

Todos os católicos devem achar - e a estatística o confirma - que os bens existentes sobre a terra são suficientes para proporcionar vida condigna a todas as classes sociais, diferenciadas organicamente segundo suas respectivas finalidades e a dignidade intrínseca a função de cada qual.

Isto posto, a reivindicação de salários justos e eqüitativos não é, de modo algum, uma conspiração contra as elites. Como a criação de elites verdadeiras não é danosa para o proprietário. Ou Deus não foi nem Sábio, nem Bom ao criar o mundo, ou há de haver para ambas as classes, necessárias, tanto uma como outras nos planos da Providência, o suficiente para subsistirem, larga e generosamente. Para não atingir outros pontos vulneráveis do estado de espírito a que aludimos, baste-nos isto para compreendermos que é visceralmente contraditório.

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Evidentemente, há gente que age com muito menos cerimônia para com Deus e com sua própria consciência. Entre muitos do que se ruborizam e se irritam quando se fala em melhoria das condições operárias, estão alguns liberais ou socialistas de opiniões doutrinárias rubicundas que, em conversa nos clubes ou nos escritórios, não põe em dúvida afirmar os princípios mais revolucionários. Acompanhemo-los quando deixam essa atmosfera de discussões acadêmicas, e vão para suas fábricas ou casas de comércio. Abramos com eles seus livros de conta. Vejamos qual a parte que em seus lucros de 500 ou 600% reservam para seus trabalhadores. Mínima. Por que, em virtude de que princípio, de que doutrina, de que filosofia? Eles jamais pensaram neste particular. É em virtude do mero e exclusivo desejo de se enriquecer, de enriquecer, e de enriquecer ainda mais. E se porventura algum de seus empregados tem a triste idéia de reclamar melhores condições de existência, não tarda uma repressão direta ou indireta, tão terrível que o infeliz perde ou o emprego ou qualquer possibilidade de acesso. Os belos princípios eram bons para os clubes. Eram bons para as fábricas e as lojas alheias, mas para si mesmos...

O que dizer a gente assim? Seria preciso buscar, nos Evangelhos, as imprecações de Nosso Senhor contra os que oprimem os fracos e os pequeninos. Essas riquezas, acumuladas à custa da desgraça alheia, "bradam ao céu e clamam a Deus por vingança"... Não o digo eu. É a própria expressão da Igreja ao qualificar o pecado dos que defraudam os seus trabalhadores.

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Não são muito diferentes destes, os que tem do comunismo um terror pânico, não porque tenham zelo pela santidade da família, ou pela legitimidade da propriedade, ou ao menos pela independência e dignidade da pessoa humana, mas porque receiam ver-se despojados das propriedades que adoram como um Bezerro de Ouro. Estão dispostos, sim, a concessões. Concessões longamente chicaneadas, enquanto o terror de uma ação violenta não sufocou neles os últimos resquícios de ganância. Concessões que se fazem apenas sob pressão mas que, uma vez desencadeado o medo, se fazem de modo acovardado, com insistências e exclamações exageradas, que mostram bem que há outro amor ainda maior que o do outro: o amor à própria pele.

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Perante o problema operário, o procedimento das classes de escol deve ser inteiramente outro.

Devemos proceder da idéia central de que a felicidade dos operários, concebida de modo sólido, real, muito amplo, porém sem excessos demagógicos, não é nociva aos verdadeiros interesses das elites, mas um complemento necessário de sua grandeza. Devemos reconhecer além disto, que não é pelo medo do comunismo, mas pelo desejo de cumprir um dever sagrado, que estamos obrigados a retribuir condignamente os operários. Isto posto, porém, e feito tudo, absolutamente tudo quando nossa consciência de católicos nos impõe em favor daqueles que, por serem menos favorecidos, devem ser sob alguns aspectos os nossos prediletos, sejamos firmes. Não nos esqueçamos de que, se devemos a saúde e o pão do corpo, lhes devemos ainda mais a saúde e o pão do espírito. Combater o comunismo não é combater as reivindicações operárias. Permitir que ideologias malsãs se propaguem livremente entre os operários, enquanto lhes aumentamos os salários, seria o mesmo que permitir que epidemia fatais os dizimassem diante da inércia dos médicos. Propaganda comunista e questão social são coisas essencialmente distintas.

Devemos aos operários tudo aquilo que lhes manda dar a doutrina católica, e que em anteriores artigos enumeramos. Entretanto, acima de tudo quanto lhes devemos para o corpo está o que lhes devemos para a alma. Se é um pecado que brada aos céus e clama a Deus por vingança negar pão aos operários, é pecado ainda muito mais grave permitir que lhes arranque a Fé, se os atire ao comunismo.

Firmeza intransigente, pugnaz, omnímoda, contra as investidas do comunismo, é pois, um grande dever, dever a que nos obrigam os direitos sagrados do próprio operariado. Esse dever supõe, porém, um outro: invencível firmeza no apoio às legitimas reivindicações operárias.