Legionário, 24 de junho de 1945
Ainda o Partido Comunista na URSS
Plinio Corrêa de Oliveira
Tratamos em nosso último artigo, da diminuta porcentagem de membros do Partido Comunista entre os soldados russos, e até mesmo entre os que se distinguiram como "heróis da Pátria" e foram agraciados com este título pelas autoridades vermelhas.
Aquelas reflexões nos levaram de cheio a analisar um dos aspectos mais singulares da atual política russa: o Partido Comunista.
Como se sabe, não é membro do Partido Comunista quem quer, mas quem é escolhido para tal. Oficialmente, a massa total da população é considerada comunista. Mas o Partido não abrange nem deseja abranger todos os comunistas do país. É tão somente a arregimentação dos "puros", dos "perfeitos" dos "cem por cento".
Para nossos olhos infectados de bom senso burguês, habituados às perspectivas comuns, parece singular isto. Um Partido é a arregimentação de todos os que aceitam certa doutrina e certo programa de governo. Como então, excluir do Partido companheiros de ação úteis e prestantes? E para quê? Para desperdiçar colaborações preciosas? Não é precisamente o contrário que fazem nossos partidos burgueses, que ostentam com orgulho as cifras algum tanto "retocadas" e "embelezadas" de seus quadros estatísticos, com milhares, milhões, milhares de milhões de adeptos, e que levam o delírio do número ao ponto de inscrever... até mortos?
Visto o problema por outro lado, se a URSS considera comunistas todos os seus cidadãos, se tem certeza de que ao menos a imensa maioria o é, por que um partido comunista? Vamos aos fatos. Há no Brasil algum partido pró Independência? Não mandaríamos para o manicômio o patrício que, ardendo em febre de entusiasmo pelo 7 de Setembro, quisesse assegurar a permanente adesão dos brasileiros ao gesto de Pedro I? No que consistiria sua loucura? Em imaginar a necessidade de um partido para sustentar um ponto de vista incontroverso. Partido e unanimidade são termos de tal maneira incompatíveis que é sintoma de loucura fundar um partido para sustentar uma opinião unanimemente aceita. Entretanto, foi o que fez a URSS. Proclama ela aos quatro ventos que a imensa maioria da população russa é comunista. Mas, funda na Rússia um Partido Comunista, composto de uma ínfima minoria de habitantes. E os nossos comunistas indígenas acham isto muito natural. Seria o caso de os convidar a que fundassem também no Brasil uma "Liga Galileu" para pugnar pela tese heliocêntrica, ou uma "Sociedade dos Defensores da Eletricidade" para sustentar a superioridade do trem elétrico sobre o carro de boi e do filamento de tungstênio sobre as velas de sebo. Bem examinadas as coisas, seria mesmo conveniente, e talvez até urgente, formar um partido para demonstrar aos preguiçosos indolentes as delícias do "far niente", e aos glutões os regalos da mesa.
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Mero jogo de palavras, dirão. Salta aos olhos que o partido se compõe dos "puros", dos Robespierres, dos "incorruptíveis". São os ortodoxos, os que professam uma doutrina sem jaças e demonstram uma dedicação insuspeita.
Escreveu alguém que "la masoneria es la mona de la Iglesia". Os escritores católicos que costumam tratar das lojas, se comprazem em estabelecer um minucioso paralelo entre a organização da Igreja, e a contrafação, realmente insistente e algum tanto cômica, da Maçonaria. Homem e símio, Apolo e Gorila, eis o paralelo.
Escudado nesse hábito, e para melhor exprimir a objeção de algum possível leitor, arrisco uma comparação. Na Santa Igreja todos são católicos. Mas há na imensa grei dos fiéis um corpo de levitas, que (abstração feita do sobrenatural, argumentandi gratia), por seu maior fervor, pela sua dedicação inconcussa, dirige todo o organismo eclesiástico, e o mantém na perfeita fidelidade aos princípios católicos. Se assim faz a Igreja, que tem um católico a objetar a que faça assim o comunismo?
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Oh, argumento! Que diríamos nós, católicos, se amanhã alguém se lembrasse de propor que, "ad instar" da organização comunista, os Sacerdotes deixassem de ser designados como agora, para constituírem dentro da Igreja um "Partido Católico"? Ainda que o propositor dessa tese não tivesse a macabra idéia de argumentar com o exemplo comunista, onde encontraria eco? Qual o censor que lhe daria o "nihil obstat"? Estou a ver o Bispo a que pedisse o "Imprimatur": o Prelado lhe sugeriria, com mansuetude paternal que, em lugar de cuidar do assunto na Cúria, fosse conversar antes com o psiquiatra mais próximo!
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Mas sustentemos o paralelo. A Igreja militante tem por instituição divina, uma Hierarquia, um corpo de escol. Os exércitos humanos também o possuem. Possuem hierarquia militar, e possuem até corpo de escol, diferenciados do restante das tropas. É, pois, explicável que os sovietes também procedam assim, embora tenham a idéia estranha e suspeita de dar a isto o nome de Partido.
Todo o escol deve ser numeroso e bom. Assim, o Clero - para ficar no terreno da comparação acima - deve ser numeroso e bom. Se é bom e pouco numeroso, chega-se à conclusão de que a massa é tíbia, e muitos são os que não correspondem à sua vocação. Se é numeroso sem ser bom, é a elite que é tíbia. Quando as coisas correm bem, quantidade e qualidade devem estar aliadas, na elite de qualquer corpo coletivo, qualquer que seja a natureza deste último.
Voltemos agora os olhos para a URSS. Por que é tão pouco numerosa a elite comunista do povo? Evidentemente, porque são poucos os "ortodoxos" e os devotados, os "cem por cento". O que quer dizer, em outros termos, que na imensa massa dos comunistas, poucos inspiram verdadeiramente confiança, e muitos são os relaxados, os frouxos, os cépticos, ou semi-cépticos, em uma palavra os suspeitos.
No dia em que os jornalistas estrangeiros pudessem falar livremente aos russos, no dia em que pudessem fazer inquéritos a um povo finalmente libertado da obsessão do microfone, do espião, do ditafone, da câmara de torturas, que diriam esses "suspeitos"? Que fariam da máscara vermelha que usam tão mal afivelada?
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Mas, objetar-se-á, este argumento pisa em falso. Admitamos que o número de comunistas absolutamente insuspeitos, inteiramente devotados, seja tão grande, que ainda mesmo dentre estes se possa selecionar um corpo de elementos ainda mais ardentes, e entre esses ardentíssimos, ou ardidíssimos, se selecionassem, para integrar o Partido, apenas os especializados em funções técnicas, a serem aproveitados nos principais departamentos governamentais de paz ou guerra?
Propriamente, foi este o plano de Hitler com suas famosas "ordensburgs", em que "formava" com uma "pedagogia" toda especial os seus futuros "heróis". O que dizia contra as "ordensburgs" a opinião mundial, calorosamente apoiada por tantos escritores comunistas? Que eram viveiros de fanatismo hiper-delirante; que é impossível, em matéria política, apurar de tal maneira uma elite sem acabar selecionando apenas fanáticos, exaltados, maníacos, lunáticos em estado de permanente obsessão partidária. Que um regime planejado por esta forma, e governado por gente tal, está permanentemente exposto a todas as tiranias, a todas as crueldades que o fanatismo gera inevitavelmente. Pobre país, entregue ao "liberalismo" dessa gente. Pobre do mundo, se a acuidade visual dos homens baixou tanto, que dão crédito a um liberalismo como este.
E abramos aqui um parêntesis. O que diríamos se depois de tudo isto, numa guerra, apesar da evidente preferência que os "fanáticos" gozam junto aos círculos oficiais para a obtenção de favores, uma grande porcentagem de soldados condecorados saísse das fileiras dos "tíbios", dos suspeitos? Digamos que as "ordensburg" produzissem fruto tão pífio assim, exclamaríamos que a terrível experiência de fazer estufas de educação de fanáticos fracassara. Aplique-se "el cuento" ao exemplo russo...
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De qualquer forma, recapitulemos as hipóteses que consideramos em nossa argumentação:
a) ou o Partido se compõe de comunistas simplesmente decentes e, neste caso, é escandalosamente pequena sua minoria;
b) ou se compõe de um corpo de elite, e tão minguada elite também é um índice discreto mas insofismável do profundo alheamento dos russos em relação ao regime;
c) ou, por fim, é um "clã" de fanáticos cuidadosamente selecionados à moda das "ordensburg", para impor sua tirania ao país; e neste caso todo o castelo da propaganda soviética sobre o neo-liberalismo idílico do regime russo cai por terra.
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Em conclusão: ou o povo russo sofre porque está sendo opresso, ou não está sendo opresso, mas sofre e se aproveita de sua pequena liberdade, para manifestar seu padecimento, adotando uma atitude de "abstencionismo", de resistência passiva", ao regime.
De qualquer maneira, sofre o povo...
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E isto nos interessa altamente. O "Legionário" não é anticomunista porque defenda os interesses de uma classe. Católico, ele combate o comunismo como a realização de uma civilização tipicamente anti-cristã. Mas por isto mesmo ele é radicalmente contrário às inúmeras e profundas deformações que desfiguram na sociedade formada pelos cristãos contemporâneos o verdadeiro aspecto da Cristandade. E, por isto, o "Legionário" vê com ardente simpatia a causa operária, sobre cuja excelência, sobre cujos direitos, escreveremos alguns artigos nas próximas edições.