Legionário, Nº 671, 17 de junho de 1945
Em torno de uma estatística
Plinio Corrêa de Oliveira
Um dos grandes argumentos invocados a favor do regime soviético é o êxito militar alcançado pelas tropas russas em sua resistência contra o nazismo.
Se o regime fosse mau, argumenta-se, não despertaria o entusiasmo que os russos manifestaram em sua reação ao invasor. E, acrescenta-se, um regime de tirania e desorganização jamais conseguiria montar uma máquina de guerra tão possante quanto o exército soviético.
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O argumento é débil. Se se fosse auferir das excelências de um regime única e exclusivamente pela eficácia de sua máquina de guerra, ou pelo fanatismo de seus adeptos, adotar-se-ia um critério largamente utilizado, não há muito, pela propaganda nazista.
Seja como for, e a despeito de toda a sua debilidade, o argumento corre mundo. Ele merece, pois, que o consagremos algumas linhas.
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Ninguém ignora que na Rússia só pode funcionar um partido político: o comunista. E que todos os altos cargos públicos estão em mãos de comunistas. Seja qual for o atual matiz ideológico desses "comunistas" (que, diga-se entre parêntesis, continuam a ser, para nós, tão escarlates quanto há dez ou quinze anos atrás), o fato é que a Rússia está no regime do partido único, e que nos quadros desse único partido é que se escolhem todos os detentores do poder.
Numa sociedade igualitária, onde as diferenças de fortuna e de teor de vida não existe, onde o Estado tudo dirige e tudo domina, é natural que a influência e o poder se acumulem nas mãos dos funcionários governamentais. E, assim, o melhor meio de "fazer carreira" consiste em ingressar no funcionalismo, para o que o canal natural é o prévio ingresso no Partido Comunista.
Isto posto, é fácil de compreender as vantagens de toda ordem que qualquer particular auferiria, entrando nas hostes políticas bolchevistas.
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Ora, a emissora de Moscou irradiou há dias uma estatística da maior importância, transmitida a esta capital por telegrama da "United Press", proveniente de Londres.
Segundo esta estatística, trinta por cento (apenas!) dos membros do Exército, Marinha e Aviação soviéticas pertencem ao Partido Comunista. De onde se deduz que os restantes setenta por cento dos soldados que esmagaram a hidra nazista na frente oriental não são comunistas. Ou seja, que o grosso dos homens que compõem a "formidável máquina de guerra" que serve de "irrecusável argumento" à propaganda soviética, são eles mesmos contrários ao regime dominante em seu país, e, a despeito de todas as vantagens, recusam filiar-se ao partido oficial.
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O mesmo despacho continha mais uma informação estatística preciosa. "Sessenta e oito por cento daqueles que foram agraciados com o título de herói da União Soviética são membros do Partido Comunista".
À primeira vista, dir-se-ia, com base neste cálculo que, pelo menos, a minoria comunista constitui o nervo vital da resistência. Nada, porém, caracteriza melhor os móveis da resistência russa, vista sob sua verdadeira luz, do que essa estatística. A despeito do regime de compressão, de vigilância, de negação de todas as liberdades, que vigora na Rússia, vemos que nada menos que trinta e dois por cento do que o próprio regime agraciou com o título de "heróis da URSS", se recusaram a dobrar o joelho diante da tirania vermelha. Forte e expressiva minoria, a respeito de cujo exato contingente ainda podemos fazer uma pergunta: - será que realmente foram agraciados todos os que o mereciam? Ou os dirigentes soviéticos preferiram contemplar mais largamente seus próprios correligionários, para "salvar as aparências"?
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Num regime como o russo, não apoiar o governo significa dele discordar energicamente. Porque só uma pessoa de convicções muito firmes, muito vivas, muito perseverantes pode abster-se, por esta forma, da participação em uma ordem de coisas fora da qual todos são ou párias, ou "out-laws". Assim, pois, entre os próprios 30% de agraciados não comunistas, há só inimigos declarados do regime. Onde estão os inimigos tíbios, tímidos, disfarçados? Evidentemente entre os 68%.
Se se desse liberdade a essa maioria balofa de 68%, quantos os que continuariam fiéis ao regime?
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Tudo bem pesado e bem analisado, chegamos à conclusão de que os defensores da URSS não são de modo algum defensores do comunismo, e que as glórias do exército russo não são, nem de longe, troféus do regime bolchevista.
Não é o entusiasmo pela "máquina de guerra" dos sovietes, nem por seu sistema de governo, que moveu os russos a lutar contra o nazismo. Entre os guerreiros, os dissidentes eram grande maioria. Entre os "heróis" selecionados pelo dedo parcial do comunismo nas fileiras vencedoras, os dissidentes são forte minoria, e os situacionistas maioria fraca e balofa.
Não vemos como tirar daí qualquer argumento em prol do comunismo.
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Qual foi, então, o móvel da resistência? O que explica o denodo e o êxito das tropas soviéticas?
A resposta é simples. De um lado, o triunfo do nazismo na Rússia não significava para a massa bolchevista nenhuma libertação. A analogia dos totalitarismos pardo e vermelho salta aos olhos. Qual a vantagem do povo, na substituição de conterrâneos, habituados à direção dos negócios públicos nesse imenso mundo desconhecido que é a Rússia, por "gauleiters" que teriam de se afazer às condições do país, que se exporiam com isto aos maiores insucessos administrativos, e que, em última análise, fariam da Rússia um campo de drenagens econômicas em favor do povo alemão? Evidentemente, nenhuma. Seria preciso ver se os russos oporiam igual resistência a uma invasão inglesa ou americana, desde que soubessem que era a dignidade nacional, a liberdade, a legalidade, a fartura que lhes seria restituída pela vitória do invasor.
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E, além disso, há o patriotismo. Talvez por sentir que a ideologia comunista nunca moveria os russos ao combate, de há muito que Stalin vem imprimindo uma feição nacionalista à sua política. Seus antecessores jamais falavam em pátria. Seu único ideal - aparente ao menos - era a ditadura mundial do proletariado, por cima de todas as distinções de fronteiras e de nações. Depois, evoluiu. Suas conquistas deixaram de ser "proletárias" para ser "russas", e por toda a parte a diplomacia soviética acentuou mais a nota nacionalista, que a bolchevista.
Ora, é geralmente sabido que os russos têm uma secular idiossincrasia contra os germânicos. É fácil compreender a importância desse sentimento como elemento motor da resistência russa.
E isto poderia explicar outro grande enigma. É a moleza, o insucesso dos exércitos russos numa pequena guerra anterior ao conflito universal: na luta contra a Finlândia, onde, nem o patriotismo alarmado pelo medo da vitória do pequeno contendor, nem o terror de uma tirania finlandesa substituindo-se à tirania russa, servia de estímulo aos soldados soviéticos.