Legionário, Nº. 670, 10 de junho de 1945
Ainda o comunismo
Plinio Corrêa de Oliveira
Não escrevo este artigo para quem queira distrair-se, mas para quem deseja refletir um pouco sobre certos boatos que circulam profusamente em nosso ambiente político.
Diz-se que o comunismo, hoje em dia, já não tem suas antigas doutrinas, e, portanto, já não incide na condenação dos Papas. É isto verdade?
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Antes de tudo o que pode significar exatamente a afirmação de que o comunismo de hoje já não professa suas antigas doutrinas? Em rigor, nada.
Suponhamos que alguém dissesse: "o protestantismo já não sustenta seus antigos erros, e, portanto, um católico pode ser protestante". Que significaria tal afirmação? Coisa alguma.
Com efeito, chama-se protestantismo a certa doutrina, minuciosamente exposta pelos respectivos corifeus, e condenada pela Igreja.
Se os protestantes abandonarem essa doutrina não se dirá que o protestantismo evoluiu e se tornou católico. Dir-se-á que o protestantismo morreu e seus adeptos se converteram. Não evoluiu o protestantismo, doutrina com erros característicos e próprios. Abandonar suas teses é sinônimo de morrer, para uma doutrina. Porque as doutrinas têm seus nomes e seu conteúdo ideológico correspondente, e elas devem logicamente abandonar sua primitiva denominação caso seus adeptos abandonem suas primitivas idéias.
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Isto faz lembrar a anedota de um museu em que estava exposta uma velha espada com o cartaz: "pertenceu a D. Pedro II". Com o tempo, o caruncho devorou subrepticiamente o punho de madeira da velha arma, e a direção do museu o substituiu por uma peça nova. O cartaz continuou. Passados mais alguns anos, a ferrugem tinha inutilizado a lâmina. A direção, solícita, providenciou lâmina nova. Tudo mudou. Uma só coisa ficou. Foi o velho cartaz: "espada que pertenceu a D. Pedro II"... Assim também, no comunismo teriam mudado as idéias, e com elas os programas e o espírito dos seus partidários. Não seria tão grotesco chamar isto de comunismo, quanto continuar a atribuir a D. Pedro II a propriedade da espada do museu?
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Se o protestantismo pudesse evoluir a ponto de aceitar todos os dogmas católicos, sem deixar de ser protestante, a conseqüência seria que o Catolicismo, sem deixar de ser católico, poderia vir, por um movimento igual e contrário, a assumir toda a doutrina protestante. Se um comunista pode continuar a se dizer legitimamente comunista, tendo embora abandonado a sua ideologia, seria forçosamente legítimo que um católico se dissesse católico embora deixasse de professar o Catolicismo. Fê-lo, por exemplo, o Sr. Salomão Ferraz. É só perguntar a qualquer teólogo o que pensa desta atitude. Ela não é menos bárbara, em termos doutrinários, do que essa do comunismo que continua a ser comunismo, e que entretanto passa a ser católico. E se um católico acusa de deslealdade o "Bispo Católico Livre Brasileiro", Salomão Ferraz, com que direito toma a sério qualquer "comunista-católico"?
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Sim, dir-se-á. A expressão "comunismo" é inadequada aos vermelhos que deixaram de ser comunistas. A expressão evoluiu impropriamente mas designa hoje, embora indebitamente, uma corrente inteiramente diversa.
Ou pelo menos consideravelmente mais diversa.
Os que hoje se dizem comunistas não têm mais as idéias de Marx. Seu programa, portanto, já não pode ser condenado pela Igreja nos termos em que a Igreja condenou o marxismo.
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"Seu programa"? Que programa? Onde está esse programa? Há um escritor, um pensador, um estadista soviético que tenha definido a nova ideologia soviética de um modo claro, preciso, palpável? Onde se concretiza essa doutrina, de modo bem nítido e tangível, para poder ser objeto de análise da parte da Igreja?
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Não falta espalhafato aos "sovietes". Dizem o que querem e sempre que possível agem espalhafatosamente. O vermelho é uma cor gritante. O gritante da cor parece exprimir o gritante dos gostos e dos hábitos soviéticos. Isto posto, por que não falam? Por que não se definem? Não é suspeita essa ambigüidade de doutrina?
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Consideremos o problema de outro ângulo? Por toda a parte, os "leaders" soviéticos tomam hoje uma atitude branda em relação à Igreja, e procuram convencer os católicos de que reina plena liberdade religiosa na URSS. Ao mesmo tempo, insinuam de mil maneiras que o regime social em vigor na Rússia já não é propriamente comunista.
Ora - e todo o mundo sabe disto - se os "sovietes" dizem isto é porque lhes convém. Verdade ou não verdade, eles saberiam calar o fato, se não lhes conviesse. Não é em vão que conservam a Rússia como uma fortaleza impenetrável aos repórteres estrangeiros, e aparelhada com uma imprensa absolutamente escravizada ao Estado. Eles dizem tudo quanto lhes convém, e só o que lhes convém.
Isto posto, se lhes convém inculcar, com ou sem razão, que suas doutrinas evoluíram, por que não definem suas novas doutrinas? Por que não demonstram por esta forma - a única forma decente e possível - com clareza meridiana, que não pensam hoje como pensavam outrora? Por que não promulgam de modo oficial e público sua nova posição doutrinária?
Evidentemente, a explicação só pode ser uma: porque lhes convém agora tomar uma atitude aparentemente conciliatória, mas não lhes convém cortar qualquer possibilidade de recuar para uma atitude novamente hostil.
A mão direita nos é estendida cheia de flores. A mão esquerda se oculta por detrás das costas. O que contém ela? Podemos admitir qualquer hipótese exceto uma: rosas, positivamente não. Ninguém esconde flores. As vezes escondem punhais.
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Continuemos a raciocinar. Afirma-se que o regime soviético hoje, não é mais o que era, e que a evolução ideológica dos sovietes se dá nos fatos, e não nos compêndios. Embora esse mutismo dos compêndios seja inquietante, analisemos este novo argumento. Qual a prova desta transformação concreta? Os comentários acerca da Rússia são os mais desencontrados. De todos eles - e o "LEGIONÁRIO" exibirá oportunamente trechos comprobatórios deste fato - ressalta que ninguém pode examinar à vontade a Rússia. Uma polícia vigilantíssima orienta incessantemente os passos dos visitantes, e paralisa a espontaneidade das pessoas do povo com que eles tentem conversar. Neste caso, de que valem os depoimentos, a priori todos eles versando sobre uma parcela insignificante de fatos, escolhidos adrede para análise dos estrangeiros?
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Admitamos porém, que de fato o regime seja diverso do que Marx sonhou. O que demonstra isto?
Todas as grandes revoluções têm feito recuos estratégicos. Em geral, depois de um período muito agudo, eles se retraem, adaptam o país por algum tempo a um estado de coisas intermediário, e prosseguem para reformas mais arrojadas.
Foi o caso da França. Depois do Terror, veio finalmente Napoleão. Representou o Corso porventura o fim da Revolução? De nenhum modo. Ele foi, segundo se disse muito espirituosamente, "la Révolution en bottes", o grande realizador e propagador dos princípios mais vivazes e sutis da Revolução. De lá para cá, o que tem feito a Revolução senão progredir? E como se fez esse imenso progresso, senão com sucessivos períodos de realização arrojada e de recuos prudentes?
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Mas admitamos que não se trata de um recuo estratégico. De muito concreto, o que significa para um católico, na ordem absolutamente prática das coisas, que o comunismo se aplica muito mitigadamente na Rússia?
É preciso tomar em consideração que a Igreja condenou não só o comunismo, mas o socialismo. Isto é, toda a forma de organização social em que se hipertrofiem os direitos do Estado, em detrimento dos direitos naturais e imprescritíveis da pessoa humana.
O que pode ser um "comunismo mitigado", senão um regime em que se violam, embora de modo algum tanto menos radical que no comunismo, os direitos naturais da pessoa humana? Porque, enfim, precisamos ser sérios, e não podemos admitir que na Rússia tudo se passe sem qualquer laivo de socialismo, e nem é o que pretendem os mais dulçurosos dentre os mistificadores soviéticos.
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O regime socialista também está condenado pela Igreja. No máximo, essa evolução social provaria que a Rússia passou de um regime mais detestável, para outro menos detestável. Será lícito para o católico aderir ou apoiar doutrinas erradas, só porque menos detestáveis que outras?
Pio XI definiu que os vocábulos "socialismo" e "Catolicismo" são incompatíveis, "hurlent de se trouver ensemble".
Assim, pois, verdadeira que fosse a hipótese de ter evoluído para um socialismo menos cru o regime soviético, nem por isso deixaria de ser incontestável que um católico não pode ser favorável a tal regime. Não é comunista, mas socialista. Então está igualmente condenado.
E concluamos com uma observação muito importante.
Não se pense que é só por sua política anti-religiosa que o comunismo está condenado, ou o socialismo. Se por absurdo houvesse um Estado em que a Igreja Católica tivesse todas as suas liberdades escrupulosamente respeitadas, mas o regime econômico e social fosse socialista, este regime estaria condenado.
A Igreja não condenou apenas a política religiosa do socialismo ou do comunismo. Condenou a própria essência de seu sistema econômico-social.
Assim, pois, todas as versões sobre a propalada liberdade religiosa da Rússia - que coexistiria paradoxalmente com os ataques das emissoras soviéticas ao Vaticano - não alteram os termos substanciais do problema.
Ainda que a Igreja fosse tão livre na Rússia, quanto na França, no Brasil ou na Argentina, e ainda mesmo que lá como aqui se admitisse a família e se proibisse o divórcio, o regime comunista ou o socialista, continuariam a ser, por seu mero aspecto econômico, um ideal proibido pela Igreja a seus filhos.
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Do que, tudo, se conclui que um católico não pode cooperar com um partido comunista ou socialista, admitida por hipótese uma diferença radical entre estes termos, ainda que seja muito evoluído.
Para cortar qualquer discussão, lembremos que Pio XI condenou não só a doutrina socialista, mas a própria palavra "socialismo". E não condenou a palavra "comunismo" porque ao tempo da "Quadragesimo anno" ninguém tinha tido a extravagância de pensar em um comunismo católico. Mas se o comunismo não é senão a forma mais radical do socialismo, a conclusão é fácil de se tirar...