Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Mudou o comunismo?

 

 

 

 

 

 

Legionário, 3 de junho de 1945, N. 669

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propaganda comunista tem divulgado insistentemente a afirmativa de que o regime que atualmente vigora na União Soviética já não é o de Marx, nem mesmo o de Lenin, mas uma forma social mais mitigada, em que já se admitem os grandes direitos essenciais da pessoa humana, e sobretudo a liberdade de consciência, a família e a propriedade.

Essa afirmação propagada de mil modos, diretos ou indiretos, tem produzido sobre a opinião pública efeitos até certo ponto contraditórios, mas todos eles favoráveis à expansão do comunismo.

Muitos dos que admitem o fato como verdadeiro, e que tendem para um regime socialista, realizado sem as sangueiras e os excessos do comunismo, se voltam com uma curiosidade simpática para a URSS, na esperança de encontrar ali, prestigiado pelo êxito econômico, científico e militar, a fórmula de "meio termo" ideal, para a qual, consciente ou inconscientemente, tendiam de todo o coração. Não faltam as fotogravuras, os relatórios, as reportagens de todas as precedências e todos os feitios que acreditam junto a esse público muito especial, a notícia de que a administração soviética alcançou em todos os planos, artístico, literário, financeiro, administrativo, um sucesso pleno. É fácil perceber as vantagens que a expansão bolchevista aufere com semeadura tão copiosa, em terreno tão predisposto.

Outros há que, cansados de guerras, de tragédias, de privações, querem por fim divisar os horizontes róseos com que contavam para logo depois da vitória. Desejosos antes de tudo, de tomar fôlego, deixando para amanhã os problemas de amanhã, querem gozar em paz estes dias de distensão e, por isto, estão dispostos a praticar, em todos os sentidos, a política do avestruz, fechando os olhos a todas as questões graves, e gozando despreocupadamente a vida. Para esses, sorri como a mais mimosa das esperanças, a idéia de que a Rússia abandonou o comunismo, e pratica um socialismo pacífico e mitigado. Morreu o nazismo. E morreu também o comunismo. A face da terra está limpa de extremismos sanguinários. E os homens de temperamento benigno e costumes doces podem "vivoter" pacificamente sob o sol da vitória, muito certos de que as disputas ideológicas não os conduzirão jamais às soluções drásticas de direita ou de esquerda, aos trágicos conflitos ideológicos e aos desenlaces sangrentos e espetaculares que tantos pesadelos lhes provocaram em outros tempos. Quando a propaganda comunista lhes pinta Stalin, não mais de rosto sanhudo e longa adaga mortífera em punho, mas de semblante sorridente, tendo nos lábios, emaranhado poeticamente entre os fios enovelados de seu bigode o raminho de oliveira, eles se agarram a esta perspectiva como a uma tábua de salvação. E se defendem de todas as demonstrações em sentido contrário, com a energia com que uma pessoa bem acomodada para um delicioso sono se defende contra o importuno que a quer tirar da cama, sob a alegação de que se ouvem barulhos de uma ambigüidade inquietante no sótão ou na porta da rua.

É bem evidente que o comunismo poderá fazer o que entenda enquanto o burguês anestesiado dorme o seu sono delicioso. É todo um setor de anticomunistas ferozes que adormece aos sons dos corifeus da propaganda vermelha, com vantagem não pequena para a política de Stalin.

Em outros tempos o fogo exerceu sobre o homem uma misteriosa atração. Muito antes de nascer a graciosa fábula de Ícaro, herói gentil e imprevidente, que voava até o sol, ali queimava suas asas de cera, e caía em terra onde ficava apenas até que novas asas lhe permitissem tentar mais uma vez a funesta aproximação com as chamas, já que os meninos queimavam os dedos no fogo, e se, menos paciente do que Ícaro, deixavam de repetir a experiência quando por fim se convenciam de que fogo queima, a atração pelo elemento ígneo não desaprecia neles. Adultos, continuavam a brincar com outros fogos. O fogo das paixões. O fogo da política. O fogo do dinheiro. E muitas vezes, não se convencem de que fazem mal, nem mesmo vêem que o fogo os devorou. Penso em tudo isto, quando vejo certos argentários que brincam com fogo. Por motivos que não vêm ao caso enumerar, fingem crer na hipocrisia dos propósitos comunistas, e dão largas à propaganda soviética colaborando francamente com seus corifeus.

Para que? Devem ter para isto vantagens extraordinárias, lucros extraordinários, digamos. Desnorteados por seu exemplo, muitos são os que pensam que realmente o comunismo hoje é outro. E, assim, é com o próprio apoio dos elementos ultra-burgueses que o comunismo vai fazendo silenciosa e rapidamente seu caminho...

* * *

Evidentemente, se a propaganda soviética insiste tanto nessa afirmativa de que a URSS vive hoje um regime diferente, é porque ela visa estabelecer um sistema de simpatias internacionais que não poderia ter, caso ainda se proclamasse oficialmente comunista. Até aqui, a URSS pouco se importou com que o mundo pensasse de sua política. Sucediam-se no antro russo os fatos mais surpreendentes. Grandes matanças de generais, de diplomatas, de figuras de relevo do Partido Comunista ali se passavam soturnamente. O próprio Stalin procedeu a uma "depuração" de correligionários que foi, em última análise, uma "São Bartolomeu" comunista. Evidentemente essas sangueiras espetaculares, produzidas por motivos de "arrière-loge" impressionavam mal. Com uma palavra de explicação, a URSS poderia ter elucidado seus motivos, desfazendo assim esta impressão. Nunca tomou este trabalho, que entretanto lhe seria fácil se os motivos do Sr. Stalin eram confessáveis.

E, se não eram confessáveis, que crédito nos merece hoje sua palavra? Que passado a apoia? Um passado de mistérios e de violências. Positivamente esta base não inspira fé.

Mas voltemos à propaganda russa. Até há algum tempo tão indiferente era esta propaganda ao público ocidental, que se mantinha o mundo todo, metodicamente, na ignorância de tudo quanto lá se passava. De algum tempo para cá, vemos que se abatem diante de nós os muros da temível fortaleza, e desvendam aos nossos olhos jardins risonhos e floridos. A Rússia fez cessar o mistério, e faz questão de pôr todo o mundo ao corrente de sua realidade inteira. Imprime, irradia, telegrafa, disca em todos os países, que ela agora se abrandou.

Por que tanta insistência, depois de tanta indiferença? Manifestamente, seu empenho denuncia algum interesse. E esse mesmo interesse a torna suspeita.

* * *

Stalin será um pífio estadista, se não tiver olhos para ver tudo isto. Se eu estivesse no lugar dele, encontraria prontamente meios para desmoralizar os burgueses, rançosos e obstinados, que persistissem em negar crédito às minhas palavras. Eu lhes lançaria o mais amável dos desafios. Pediria à aristocrática Câmara dos Lordes, aos rotundos burgueses de Wall-Strett, aos argutíssimos Cardeais romanos, aos ardentes totalitários de Serrano Suner, que se constituíssem em comissão, e que viessem ter à Rússia. Eu lhes daria o direito de se fazer acompanhar de todos os detetives, de todos os fotógrafos, de todos os "Camera-Men", que entendessem de levar. Eu os hospedaria em conforto esplêndido, e lhes imporia apenas uma condição: é que, além de todas as visitas que fizessem por sua iniciativa particular, não deixassem de comparecer ao calabouço para ouvir os presos, aos hospitais para ouvir os doentes, aos lares mais modestos, para falar a sós, ouvido colado na boca dos pobres. Para lhes tirar qualquer pretexto para recusarem meu convite, prometia-lhes como recompensa a vida e a liberdade dos poloneses reclamado com tanto espalhafato pelos ingleses e americanos nos últimos dias. O que a violência não conseguira, eu o concederia em aras da reconciliação.

É em suas mãos que eu colocaria não os ramos, mas os galhos de oliveira da nova paz. E eu quereria ver quem, depois disto, poderia duvidar de que realmente eu fizera da Rússia de Lenin ainda cheirando a sangue e a pólvora, o panorama pastoril, delicado, ameno, que Watteau por certo pintaria se ainda estivesse vivo. Não é preciso grande argúcia para inventar esse meio de esmagar a contrapropaganda burguesa. Desde o tempo das cavernas sabe-se que o homem acusado de praticar coisas desonestas em sua gruta, casa ou palácio, faz questão de abrir sua morada e quiçá seus arquivos aos detratores para lhes intimar que demonstrem sua acusação. Será Stalin tão obtuso que não o perceba? A propaganda comunista diz-me que não. Mostra-o até como um gênio. E eu fico neste dilema:

a) Stalin está evidentemente empenhado em demonstrar que o comunismo de hoje é brando e pacífico como pomba;

b) o único meio capaz de fazer vencer essa demonstração está ao alcance de qualquer espírito primário, e ele não o emprega;

c) isto posto, ou ele não tem visão de estadista, e a propaganda comunista mente quando diz que ele é um gênio;

d) ou a despeito de suas palavras, há na Rússia realidades que contrariam gravemente sua acusação, realidades tão evidentes e tão graves que ele não as quereria esconder a seus visitantes. E neste caso a propaganda comunista mente quando afirma que o comunismo mudou.

Mente num caso, mente noutro caso. Não vejo como sair desse dilema.

Veremos no próximo artigo como essa suspeita se agrava na leitura dos próprios documentos da propaganda de Moscou.


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