Legionário, 4 de março de 1945

Em face dos acontecimentos

Plinio Corrêa de Oliveira

Os leitores habituados ao pronunciamento franco e desassombrado desta Folha perante todos os problemas da atualidade desejarão saber, por certo, o que pensamos dos acontecimentos políticos que estão empolgando a opinião pública.

Fiéis a nossa orientação tradicional, consideraremos apenas os aspectos espirituais da presente situação. Não que nos desinteressem as questões temporais. Os problemas espirituais não existem neste mundo em estado espectral, desencarnados de qualquer relação com o temporal. O próprio serviço dos interesses do espírito exige por vezes – e sobretudo durante as grandes crises – uma forte intervenção no que é temporal. Ainda mesmo neste caso, entretanto, a distinção entre os dois campos deve permanecer sempre muito nítida. O espiritual não se confunde com o temporal e o domina como o Céu domina a terra. Votado ao serviço da Igreja, o Legionário é cioso dessa distinção, e se sente à vontade na esfera espiritual, da qual não deseja sair a não ser no caso que um imperioso dever de consciência a isto o force.

Estamos, pois, nos domínios do espírito e dos princípios. E é desta altura que contemplaremos em rápidas linhas o panorama nacional.

* * *

Antes de tudo, alarguemos nossos horizontes para ver em toda a sua amplitude a crise por que passam atualmente o Brasil e o mundo.

Quando falamos de Catolicismo e política, vêm-nos imediatamente ao espírito os problemas por assim dizer clássicos, que costumam ser debatidos a este propósito: a indissolubilidade do vínculo conjugal, o ensino religioso nas escolas públicas, as capelanias militares, etc. Sem dúvida, a fixação dessas garantias em nossas leis fundamentais é de grande importância para a vida religiosa do País. Elas são os marcos luminosos da "reconquista" católica depois da catástrofe positivista de 91. É fácil perceber que no vagalhão dos debates políticos elas podem desaparecer inopinadamente. A inegável gravidade desse perigo está longe de conter ou de exprimir, entretanto, toda a importância que esta crise universal apresenta para a Igreja.

Mais uma vez, repetimos: é preciso que alarguemos nossos horizonte. No primeiro plano está em jogo uma simples questões de leis. Mas no subsolo de tudo isto existe uma questão de civilização. A Civilização Cristã não é uma quimera, nem uma formula oca, e muito menos um sonho irrealizável. Ela existiu, ela ainda existe, ela pode deixar de existir. Formaram-na os séculos de Fé ardente. Foi ela fundada sobre a pedra de angulo que é Cristo, e lentamente, passo a passo, ano a ano, os mártires, os confessores, os pontífices, as virgens e os doutores foram erguendo suas muralhas. Muralhas santas, feitas de pedras, pedras vivas, trazidas pelo Sangue de Cristo, da morte ao regime da Graça. A argamassa que as une foi composta com as lágrimas, o suor, e o sangue de centenas de gerações de santos. O lineamento geral da obra foi deduzido em dias e noites, semanas e séculos de ardente trabalho, do imenso livro da criação visível e das páginas divinas da Revelação. Aos poucos se levantou o edifício grandioso, o Reino de Deus entre os homens, a civilização genuína nascida do Sangue de Cristo, a grande "Civitas" ocidental e cristã que na amplitude de suas linhas a um tempo nobres e maternais, altaneiras e plácidas, fortes e acolhedoras tinha algo de um templo, de uma fortaleza, de uma escola, de um lar e de uma casa de caridade.

Não se pense que essa edificação era obra meramente humana. Ela não existiria sem a graça e por sua vez servia a própria expansão da graça. A Igreja Católica é uma chama que luz em qualquer atmosfera. A Igreja recebe sua luminosidade intrínseca não dos homens, mas do próprio Sol de Justiça que é Jesus Cristo. No entanto, é preciso não esquecer que o brilho dessa chama divina pode irradiar-se mais, ou menos, conforme a opacidade do ar em que arde. A Civilização Cristã é a atmosfera serena e diáfana, que permite a irradiação omnímoda da chama evangélica. As civilizações pagãs, pelo contrário, saturam de vapores a atmosfera social, e toldam habitualmente, com as nuvens espessas dos preconceitos e das paixões, a plena visibilidade, a universal irradiação do esplendor daquele que foi posto como "lumen ad revelationem gentium".

No fim da Idade Média essa estrutura se trincou. Aos poucos agravou-se a crise e hoje ela está em franca liquidação. Pobre e grande Civilização Cristã, no ocaso de hoje apenas emerge um ou outro de seus gloriosos capitéis, as derradeiras ogivas que a sanha dos bárbaros ainda não abateu. Amamos estes santos e nobres destroços com o amor ardente e as saudades abrasadoras com que os antigos judeus olhavam para as ruínas do Templo destruído e abandonado. Sim, amamos suas ruínas, e se destas nada restasse, amaríamos ainda sua poeira.

E para nós que estamos entre os escombros dessa grande cidadela em ruínas, o problema não é saber se se poupará ainda este ou aquele resto de coluna ou de muralha. É a grande batalha que de um momento para outro se começara quiçá a travar; a batalha última e decisiva há tanto tempo prenunciada pelos De Maistre e pelos Veuillot. A grande questão é, pois de saber se, sim ou não, a obra há de ser refeita; se os últimos destroços da "civitas christiana" serão abatidos para dar lugar a torre de babel, ou se os obreiros da confusão serão expulsos do mundo, se os bárbaros vermelhos ou pardos serão varridos da face da terra, se os vendilhões, os aventureiros, os apostatas e os demolidores de toda espécie serão escorraçados do recinto sacral do mundo cristão, para que os filhos da luz ergam novamente a grande Cidade que é o Reino de Deus entre os homens.

Há em gérmen uma terrível e gravíssima opção ideológica que nos espreita nessa tormentosa encruzilhada de caminhos políticos. Discutem uns a quem pertencerá o mando, e outros de que maneira se organizarão as finanças. Quanto a nós, detemo-nos no marco divisor das rotas, procurando conhecer os fantasmas confusos que nos aguardam ao longo dos caminhos... de todos os caminhos.

Os problemas presentes contem em seu âmago as mais radicais conseqüências para o futuro, um futuro por sua vez tão grave, que nele a humanidade quase inteira pode abandonar ou reconquistar a rota da eternidade. É esta a situação a que chegamos. Não lhe diminuímos o alcance, reduzindo-a ou resumindo-a como se todos os interesses da Igreja se cifrassem apenas a alguns poucos retoques no edifício social.

* * *

"Domine, quid me vis facere?" Sim, Senhor, que quereis que façamos?

Essa resposta não está condicionada, nem a iluminações internas, nem ao puro alvedrio de nossos espíritos. Deus quer que obedeçamos.

Nada é mais grave neste momento do que reservar os plenos direitos da Autoridade Eclesiástica. Já conhecemos todos os ensinamentos da Igreja acerca da organização cristã do Estado, da família, do trabalho, e da sociedade. Sabemos, pois, o que a Autoridade Eclesiástica almeja. E devemos, em união com ela almejar tão intensamente o mesmo ideal, que a ela subordinemos todos os outros ideais terrenos. Assim, nenhuma causa humana, por mais lícita ou nobre, será capaz de nos arrancar o mínimo ato de desprezo aos sacratíssimos direitos da Igreja.

Mas isto não basta. Os direitos da Hierarquia não se limitam a ensinar. Ela governa na esfera espiritual. É, pois, o Episcopado que tem o direito de nos apontar, não só em tese, mas nestas ou naquelas circunstâncias concretamente consideradas, qual o nosso dever para com a Igreja. Não é apenas uma indicação de rumo, mais ou menos platônica. O Episcopado tem o direito de mandar: ele pode urgir que em consciência sigamos este ou aquele rumo por ele escolhido.

E isto ainda não é tudo. Quem tem o direito de mandar, pode mandar livremente. Os fiéis verdadeiramente submissos devem evitar, nas circunstâncias presentes, quaisquer palavras, quaisquer atitudes que direta ou indiretamente coloquem o Episcopado na contingência de se pronunciar em matéria em que talvez a sabedoria pastoral o levasse a preferir o silêncio; ou a arrastar neste ou naquele sentido o pronunciamento da Hierarquia.

Agora mais do que nunca, a função do governo na Igreja tem de ser fácil e desembaraçada para ser ágil e segura. Aceitemos tudo com submissão, o silêncio como as palavras, e estas quer sejam favoráveis quer contrárias a nossas inclinações particulares.

E se porventura a prudência pastoral levar nosso Episcopado a deixar muitos problemas entregues a nosso discernimento particular, procedamos conforme nossa consciência, sem procurar envolver a Igreja nas atitudes privadas que como católicos venhamos a tomar.

* * *

Estas linhas não têm entrelinhas, e, por isto, não se veja em nosso silêncio sobre as questões temporais qualquer forma de manifestação ou pronunciamento em favor deste ou daquele campo, e nem sequer uma afirmação de neutralidade. Ser neutro também é encarar um problema e afirmar a equivalência das soluções em vista. É, pois, tomar posição perante eles. Já dissemos que, aqui, estamos fazendo plena abstração dos problemas temporais, e, por isto mesmo, não tomamos perante eles nenhuma atitude, nem mesmo a de neutralidade cômoda. Como cidadãos, como brasileiros, claro está que temos nossa opinião. Não é este o momento nem o lugar adequado para a manifestar. Pelo contrário, devemos a nossos leitores o exemplo de uma perfeita subordinação à escala dos valores, de sorte que sejamos capazes de nos pronunciar sobre o espiritual com a mais plena abstração de tudo quanto é contingente e temporal.

* * *

Isto dito, e afirmada assim a submissão dos católicos à Hierarquia, digamos uma palavra sobre uma questão concreta, que começa a se por agudamente. Fazemo-lo ainda, sem qualquer compromisso partidário, já que a medida que impugnaremos teve seus defensores em ambos os campos da política nacional. É o reconhecimento do governo soviético.

Diz-se que essa medida está eminente. Acrescenta-se que o Brasil terá imensas vantagens no cenário internacional, reconhecendo a URSS. Alega-se que o comunismo já não é anticatólico, e que a III Internacional já foi extinta. E, por fim, sussurra-se que essa medida será tomada em conexão com a libertação de Luiz Carlos Prestes.

Não entraremos no pormenor de todos esses argumentos. Admitamos, para argumentar, que o Brasil tire o maior proveito em reconhecer a Rússia. Quem poderá assumir a responsabilidade pelo que em território nacional farão seus inúmeros agentes diplomáticos e consulares? Diz-se que a III Internacional foi dissolvida. Razão a mais para que o comunismo, privado de órgãos políticos extra-governamentais, procure apoiar-se sobre o corpo diplomático e consular dos sovietes, para se expandir. Diz-se que a Rússia será muito poderosa. Razão demais para se temer que a imprudência de seus agentes não tenha limites, e nos coloque a todo instante na grave alternativa de brigar com o monstro, ou de lhe tolerar a influência em nossos problemas internos. E terão nossos governos energia bastante para combater efetivamente essa ação, ao menos com os parcos meios de resistência que estiverem, em suas mãos? O reconhecimento da URSS deveria coincidir entre nós, com uma tremenda reação anticomunista. Pelo contrário, é esse o momento em que se procura soltar Prestes.

Pede-se essa medida temerária por uma assimilação injuriosa do caudilho comunista, com brasileiros expatriados por motivos que nada tem que ver com a preservação da ordem social cristã. O que mais?

* * *

Aqui fica essa reflexão. Quer ela dizer que o Brasil correrá o maior risco em suas instituições e em sua soberania, caso reconheça a URSS. Essa medida só pode pois ser pleiteada em sã consciência pelos que acham que essas vantagens valem mais que a soberania e as tradições do Brasil.