Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Passio Christi, conforta me

 

 

 

 

 

 

Legionário, N.º 637, 22 de outubro de 1944

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“Atrair todos os elementos supra citados (do clero e da A.C.) para a obra social e multivaria da caridade cristã, em socorro de todas as necessidades físicas ou morais do nosso próximo, sem distinção de cor, de raça, de nacionalidade ou de classe”. É este um dos itens mais importantes do plano de ação do novo Arcebispo de São Paulo.

“Socorro das necessidades físicas ou espirituais”: é bem este o conceito das obras de misericórdia que Nosso Senhor ensinou ao mundo, e que a Santa Igreja vem realizando ininterruptamente através dos séculos.

Todo o espírito da Igreja é feito de contrastes fecundos, que se desenvolvem em uma divina harmonia. Durante a Idade Média, viajava pela Europa um potentado muçulmano, feito prisioneiro pelos guerreiros feudais, defensores da Fé.  Encontraram-no um dia muito pensativo, e aos que lhe indagaram o motivo respondeu: “não posso compreender como constroem monumentos tão altivos esses homens tão humildes”. Almas humildes, construtoras de obras divinamente altivas, eis bem genuinamente representadas nesse traço as almas resgatadas pelo precioso Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo. Aparentemente entre a humildade e a altivez há uma contradição. O mundo pagão não compreendia essa contradição, e uma das acusações que os romanos faziam aos mártires era precisamente que sua Religião glorificava a baixeza. Eles não sabiam que admirável sementeira de almas altivas eram aquelas escuras e misteriosas catacumbas, em que patrícios e escravos, grandes e pequenos, se confundiam em torno dos altares, aprendendo de Jesus Cristo o segredo da humildade e da altivez que Ele nos deu em sua vida terrena tão adoráveis exemplos. “Christianus alter Christus”, e a humildade do cristão, ou a altivez do cristão, não é senão um reflexo da altivez e da humildade de Nosso Senhor Jesus Cristo.

 

Santa Joana d'Arc comanda a vitória de Patay (pintura de Franck Craig 1874-1918)

Outro contraste que o mundo não compreende, e que entretanto é tão harmônico e fecundo quanto o da altivez e da humildade do verdadeiro cristão, é o da doçura e da combatividade. Se o árabe de que falamos observasse a vida dos Santos, esbarraria por certo neste mistério, e diria deles: “não posso compreender como almas tão pacíficas são tão belicosas, como almas tão belicosas podem ser tão pacíficas”. É que no Catolicismo tudo é amor, e mesmo quando, por necessidade, e imitando a Nosso Senhor, alguém empunha o látego que há de fustigar os erros do século, fá-lo por amor. Fá-lo por amor, e fá-lo com amor. A combatividade cristã tem o sentido exclusivo de legítima defesa. Não há para ela outra possibilidade de ser legítima. É sempre o amor de alguma coisa ofendida que move o cristão ao combate. Todo combate é tanto mais vigoroso quanto mais alto for o amor com que se combate. E, por isso mesmo, não há, no católico, combatividade maior do que aquela com que ele luta pela defesa da Igreja ultrajada, negada, calcada aos pés. Por que combate ele? Para defender os direitos das almas que se quer arrancar à Igreja. Para manter livres e desobstruídas as portas de acesso que devem permitir aos eleitos de Deus a aproximação de Sua Igreja. Para abater a insolência da impiedade, e para exaltar a Santa Madre Igreja. Para estas coisas é que se deve bater o católico. E, quando, esgotados um a um, pacientemente, irremediavelmente, todos os meios pacíficos, o católico se ergue com o valor de um novo Macabeu, incendido em zelo pela Esposa de Cristo, ele bem pode dizer que em toda a sua combatividade só há uma coisa: amor.

Abandonemos este quadro, e, em vez de olharmos para o guerreiro cristão, olhemos para a irmã de caridade. Ela que, docemente, se aproxima do leito em que agoniza um doente repugnante. É para ela um desconhecido, em que ela vê entretanto um membro do Corpo Místico de Cristo, que é a Santa Igreja Católica. E, por isto, aproxima-se dele cheia de sobrenatural ternura, desata os panos que ocultam a hediondez de suas chagas, e recebe em pleno rosto, mais forte do que nunca o odor terrível das carnes em putrefação. No rosto da irmã de caridade, a impassibilidade é completa. Ela olha para as chagas como se fossem pérolas, respira o odor da podridão como se fosse perfume. Sabe Deus que terríveis repugnâncias ela está esmagando no seu interior, e que luta tenaz, violenta, titânica ela tem de desenvolver para não abandonar o lugar de sacrifício em que Nosso Senhor Jesus Cristo a quer! Quanto amor, dirão os que atentarem apenas para a placidez de seu semblante e de seus gestos.

Quanta combatividade, dirão os que forem mais penetrantes, e desvendarem o tumulto da luta interior diante da qual a Religião não cede! Quanto amor naquela combatividade! Quanto combatividade neste amor!

Combatividade e amor, se o mundo contemporâneo pudesse compreender como se harmonizam essas virtudes, como se precisa amar até o que se combate... e combater com as duas mãos até o que por vezes se ama ternamente por mais de um título justo, como estaria diversa a face da terra!

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É para as santas pugnas da caridade cristã, pugnas interiores que aumentam em nós os mananciais de amor, pugnas exteriores, vitórias tanto mais jubilosas quanto mais pacíficas, porque Cristo é o Rei da Paz, mas em todo caso vitórias que não se desdouram com a energia e não perdem seu lustre se a luta aberta tiver sido o único meio para as conseguir – é para as santas pugnas da caridade cristã que nosso Arcebispo nos conclama.

Olhando de longe para seu rebanho espiritual, Dom Carlos Carmelo de Vasconcelos Mota tem palavras de ternura e compaixão que são um eco da exclamação divina: “misereor super turbam - tenho pena desta multidão”. E como tem razão!  Pio XII, na alocução magistral que recentemente publicamos, diz que é preciso ter um heroísmo comparável ao dos mártires para praticar com fidelidade e esmero a Religião em nossos dias. Assim, pois, as grandes cidades modernas são verdadeiros lugares de luta e tormento para os “christi-fideles” de nossos dias. No luxo dos salões aristocráticos, no conforto dos ambientes burguêses, na calma das classes pequeno-burguesas, na simplicidade das camadas operárias, na crua indigência das classes pobres, em tudo isso se ocultam hoje terríveis tentações, cuja vitória custa e custa muito, custa sofrimento espiritual que é o sangue da alma. É preciso correr, voar em auxílio destas almas que sofrem para se manterem fiéis a Nosso Senhor ou para se aproximarem dEle. Toda a demora é uma derrota, nesta tarefa, e toda negligência um crime. Por isto, Dom Carlos Carmelo de Vasconcelos Mota conclama uma verdadeira cruzada para a salvação de tantas almas aflitas, em nossos dias.

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Mas isto não basta. Não basta fazer aceitar às almas o jugo duro e suave da moral cristã. É preciso ainda consolar os que sofrem misérias físicas de toda ordem. Para que relembrar o quadro doloroso que temos sempre diante dos olhos, os hospitais repletos que rejeitam doentes por falta de espaço, as pessoas doentes que definham por falta de dinheiro para aquisição de remédios caríssimos, as pessoas sãs que vão imergindo lentamente no estado de doença por excesso de trabalho necessário para a manutenção da família, ou por falta de alimentação? Por que relembrar com terror as inúmeras pessoas que, sem Fé nem horizontes espirituais, arrastam na sombra de suas casas ou premidas nas paredes dos hospitais uma vida de desespero e de revolta? Tudo isto corta por demais o coração e tudo isto ainda não é tudo. Existe o problema da infância, da infância inocente, da infância promissora, da infância que o ambiente deletério das grandes cidades torna tão cedo miserável e pecadora. Como bem acentua nosso novo Arcebispo, muito já se tem feito entre nós neste sentido. A Cidade dos Menores da Liga das Senhoras Católicas é simplesmente uma maravilha. Mas... quanto ainda há por fazer! E se de todos temos pena, que especialíssimo lugar ocupa em nosso coração a infância que Jesus Cristo tão entranhadamente amou!

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Acima e abaixo, vista parcial do hospital de Beaune (França – 1441), construído para abrigar doentes pobres da região

É preciso muita caridade. Mas as palavras de nosso Arcebispo são muito nítidas: do que precisamos é de caridade cristã, e não simplesmente de uma filantropia qualquer.

Por que? Simplesmente porque sem a Igreja de Jesus Cristo não há caridade verdadeira. Não negamos que possa haver almas que vivem fora da Igreja, em nossa civilização atual, e que fazem bem ao próximo. Elas possuíram a Fé, e essa Fé que perderam deixou nelas um vago perfume, como o que fica no vaso de que retiramos as rosas. São essas as palavras do grande Pio X. Mas, de fato, a caridade ou é cristã ou não existe, e o cristianismo, ou é católico, ou é uma falsificação.

E, no catolicismo, qual o maior foco da caridade? A contemplação da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo. É na meditação minuciosa do que sofreu o “Homem das Dores”, é na rememoração afetuosa e constante daquele em que “do alto da cabeça até a planta dos pés não havia um só lugar que fosse são”, é tendo diante dos nossos olhos dia e noite aquele que sob a mão violenta de seus adversários foi desfigurado a ponto de ser “um verme e não um homem, o opróbrio dos homens e escárnio do povo”, que nosso coração se dilata para a comiseração para com os próximos. Revendo em todo o sofrimento um sofrimento do próprio Cristo, em toda a chaga uma chaga de Cristo, remediando todo sofrimento, curando toda chaga, como se debruçássemos nossa alma amorosa sobre tanta dor, como se aplicássemos com nossos próprios dedos à chaga de Cristo o bálsamo confortador, é com este meio, que verdadeiramente teremos a virtude da caridade.

Narra a História que antes de Cristo não havia hospitais nem instituições de caridade. Foi uma católica, Fabíola, quem fundou o primeiro hospital. De lá para cá, quantas obras de caridade se tem fundado! De onde nasceram? Das Chagas santíssimas de Nosso Senhor Jesus Cristo pregado na Cruz. É da Paixão de Cristo que nasceu o reconforto de tantas criaturas sofredoras.

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Mas não é só. O melhor bálsamo para as dores humanas não é o remédio, é a compaixão. Compaixão, “com-paixão”, é o sofrimento em união com o próximo, só porque o próximo sofre. É o reflexo dos sofrimentos alheios em nossa própria alma. Como fazer brotar do coração humano, tão frio, tão duro, tão egoístico, a flor da compaixão? Pela meditação da Paixão de Cristo. As almas saturadas dessa meditação sabem verdadeiramente condoer-se do próximo. Só elas têm em seus gestos bastante ternura, em sua voz bastante sinceridade, em seu procedimento bastante discreção, para destilar na alma sofredora do próximo o remédio inigualável da compaixão.

Se da Paixão de Cristo brota a misericórdia, brotam as obras de misericórdia, brota a consolação, que jaculatória mais adequada para todos os que se aprestam a atender à grande mobilização da misericórdia cristã, que Dom Carlos Carmelo de Vasconcelos Mota promoverá, senão esta: “passio Christi, conforta me”?


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