Chegados a outubro, entramos no mês marcado por Dom
Carlos Carmelo de Vasconcelos Mota para sua chegada a
nossa cidade.
Interrompo, pois, mais uma vez a série de artigos
que vinha escrevendo a respeito de Dom Vital, para entreter sobre o novo Arcebispo de São Paulo os
leitores do LEGIONÁRIO. Faço-o certo de me conformar assim à ordem natural das
coisas. Dom Vital, que tem com São Paulo laços históricos e afetivos especiais,
não é figura estranha ao meu assunto de hoje. Foi aqui que ele viveu, como
professor do Seminário, os anos mais recolhidos, mais obscuros, mais felizes,
portanto, de sua vida religiosa e sacerdotal. Antes de o elevar ao duplo
esplendor do Episcopado e do martírio, quis a Providência que ele depositasse
no coração dos neo-levitas desta terra a semente do
entusiasmo e da intrepidez que aqueles tempos dificultosos exigiam. Formando
Sacerdotes, prestou Dom Vital uma contribuição profunda para a formação da
própria alma do povo paulista. E, ao mesmo tempo, foi na bem-aventurada
tranqüilidade de nosso ambiente provinciano de antanho que ele represou
energias, temperou forças, entesourou graças para arcar com a grande cruz que
era sua missão carregar até o alto do Calvário. Quem poderá contar as
cogitações de Dom Vital, durante os anos que passou entre nós?
* * *
Frei Felix de Olívola, O.F.M., publicou há pouco uma esplêndida compilação de
todos os escritos de Dom Vital. Neles se vê claramente que a conduta por este
mantida durante a "questão religiosa" não resultou de circunstâncias
de momento. Dom Vital ascendeu ao sólio olindense
trazendo consigo observações profundas e sistematizadas sobre a vida religiosa
do Brasil, e sobre os meios necessários para dar remédio a nossos terríveis
problemas, de todo um arcabouço de idéias pré-adquiridas
em função das quais agiu. Foi em São Paulo, nos poucos anos de vida de estudos e contemplação que
lhe restavam, que este sistema de idéias chegou à sua completa maturação. Foi,
pois, em fundas meditações, ao longo de nossos dias de sol ou de garoa, no
recolhimento propício de nossas manhãs cheias de neblina, que Dom Vital se
preparou para a grande imolação. Os céus e terras de São Paulo se ligaram,
assim, em seu espírito, aos problemas que entre nós meditou. Que reflexões terá
ele feito sobre a impiedade macia, diluída, silenciosa, que como um incessante
e imponderável chuvisco descia sobre o Brasil, estendendo-se a tudo, embebendo
tudo, atingindo até a medula, precisamente como nosso chuvisco, as próprias
pessoas que dele se esquivam? Quando as neblinas da manhã cobriam com sua massa
leitosa as cercanias do velho Seminário, e a rajada gélida do vento paulista
nela desenhava mil figuras ameaçadoras e fantásticas, que mudavam de forma e
lugar a cada nova direção dos ventos, em que lutas, em que duelos com hidras e
demônios não pensaria o apóstolo ardente e realista que auscultava a ação
maçônica diligente, febril, impetuosa, que se disfarçava sob as aparências de
nossa vida provinciana tão pachorrenta? Terá ele levado de São Paulo
recordações ainda mais profundas? Deus dá em geral aos que predestina às
grandes dores, a preparação viática de certas
delícias espirituais, que são um antegozo do Paraíso. A sua estadia em São
Paulo terá ficado ligada nas recordações de Dom Vital, a algum desses inefáveis
e excepcionais dias de graça? Se as paredes da velha capela do Seminário
pudessem falar, quem sabe se elas nos mostrariam alguma cena clássica da
Hagiografia... no silêncio da noite, nas trevas indecisas que o brilho frouxo
da lamparina não conseguia vencer, divisaríamos talvez Dom Vital orando, com o
rosto incendido de ardor, com toda a musculatura retesada pela indignação de
seu zelo abrasador, braços estendidos ao Sacrário, pedindo a Deus que vingasse
a sua Igreja traída e humilhada, que se levantasse por fim, e não parecesse
mais dormir sobre os pecados do Brasil... O Sacrário parecia continuar mudo, a
justiça de Deus inexorável, e então Dom Vital adiantando-se, faria sua grande
imolação. Seria ele mesmo a vítima por estes pecados que não alcançavam perdão.
Que se esgotasse sobre sua carne, seu sangue, todas as fibras de sua alma, a
exigência santa e implacável daquela justiça que não queria ceder. Que a
misericórdia de Deus se contentasse por fim com a oblação inocente dessa vítima
sacerdotal de agradável odor. Algo lhe dizia ao coração que tinha sido ouvido.
Estava selado como um pacto o destino de Dom Vital. E com ele o destino religioso
do Brasil. Quem sabe se foi entre nós que se deu essa cena decisiva? Não o
sabemos. O certo é que Dom Vital estimou São Paulo, e aqui foi estimado. Fez
relações. E em São Paulo quis receber a unção que o elevaria à plenitude do
Sacerdócio. Foi aqui, pois, que se consumou sua formação para a luta, com as
unções sagradas que o investiam na missão de lutar e morrer pelo rebanho do
Senhor. Uma velha dama de minha família, já falecida, contou-me com saudades a
cena que ainda tinha impressa na retina. Terminara a longa cerimônia da
sagração. No largo da Sé, comprimia-se a multidão. Estavam abertas de par em
par as portas da vetusta e pequena catedral, e por elas saía o jovem Bispo.
Parou por um instante, e olhou o povo genuflexo.
Depois, abençoou-o "com suas mãos muito brancas e muito belas", dizia
a velha dama. Estava terminada a preparação. Pouco depois, São Paulo fazia em
favor do Norte o sacrifício de se privar de Dom Vital, que encetava as vias de
sua vocação histórica. Ora, é precisamente no ano centenário de seu nascimento
que nos vem como um mensageiro ou um presente de Dom Vital nosso terceiro
Arcebispo. A coincidência é cheia de simbolismo. Aqui
se preparou para ir ao Norte o Bispo que foi por excelência o homem da destra
de Deus no Brasil de então. Neste ano centenário o Norte nos retribui o dom,
separando-se em nosso favor do Arcebispo que, depois de uma longa e fecunda
preparação, o "Espírito Santo pôs para reger a Igreja de Deus" em São
Paulo. É aqui, pois, com o coração cheio de filial e afetuosa expectativa que o
vemos refazer em sentido inverso a trajetória de Dom Vital. Acompanhamos seu
caminho com olhos desvelados de filho, fazendo nossa a prece que se lê no
brasão de Dom Vital "Iter para tutum", preparai um bom caminho.
*
* *
O novo Arcebispo concedeu ao "Correio
Paulistano" uma entrevista que nos serve para conhecer a fundo os anseios
de seu coração de Pastor. Não nos enganamos dizendo que seu Pontificado em São
Paulo será o desenvolvimento ao mesmo tempo original e harmonioso das realizações
de Dom Duarte e dos triunfos de
Dom José.
Disse-o ele mesmo em expressos termos, e,
enunciando os principais itens do que em linguagem corrente se chamaria seu
"programa", delineou planos que constituem a marcha segura da
Arquidiocese para a plenitude a que a vêm acompanhando as graças de Deus
recebidas nos anos anteriores. Dom Carlos Carmelo se
revela nessa entrevista um verdadeiro continuador, no
sentido mais nobre do termo, que não é só conservar, mas construir, caminhar,
inovar com forças e luzes próprias, com brilho e valor próprio, sem quebra com
o passado, mas em íntima e sábia harmonia com ele.
Para começar pelo que há de mais tangível, Dom
Carlos Carmelo enuncia um projeto que alguns
chamariam talvez audacioso, e que o seria realmente se não fosse tão generoso e
entusiástico o povo de São Paulo. Nosso novo Arcebispo lembrado do bicentenário
da Arquidiocese, em 1946 quer que, até essa data, se tenha chegado a um
resultado "decisivo" para a construção da Catedral. Nas obras do
grande templo estão perpetuadas as esperanças, a ousadia, a energia de ferro de
Dom Duarte, a atividade transbordante e vitoriosa de
Dom José, os sacrifícios omnímodos dos fiéis, que para ela têm concorrido. A
Catedral é, pois, em si mesma um símbolo. Quis a Providência que Dom Duarte,
apóstolo de ferro, assumisse a parte psicologicamente mais ingrata da tarefa,
arrostando as dificuldades que a localização das obras acarretou, consumindo
esforços e recursos sem conta, para rasgar o solo, consolidar os fundamentos,
lançar os alicerces até que, num
trabalho obscuro, que o povo não via, não compreendia, sobre cuja lentidão
resmungava, se erguessem aos poucos os primeiros muros. Depois, tudo parecia ter
parado. Os anos se escoavam, o mundo se ia mudando, duas coisas apenas pareciam
conservar-se inalteradas: D. Duarte, sempre hierático, sempre edificante,
sempre monolítico, e os muros da Catedral... sempre do mesmo tamanho. Dom
Duarte parecia não notar o fato, parecia não ouvir as murmurações. Interpelado,
respondia em poucas palavras concisas: é preciso fazer trabalho sério, é
preciso cavar a cripta, decorar o prédio, esculpir o granito e colocar desde já
os ornamentos nas partes construídas. Fazer, em suma, obra definitiva. E quem
não entendesse não recebia maiores explicações. Não tinha o Arcebispo aprovado
tudo? Então estava bem. Para que perguntar mais? Toda esta parte ingrata e por
assim dizer invisível do trabalho estava terminada quando o grande e santo Dom
Duarte morreu. Importava, agora, altear as paredes, tanto e tanto que nascesse
a esperança do dia breve em que se lhes colocasse a cúpula. Para isto, era
necessário que alguém arrastasse a opinião em um grande movimento. A simpatia
radiosa de Dom José, a habilidade verdadeiramente incomparável com que sabia
comover e orientar a massa, era bem a vara de condão que arrastaria atrás de si
toda São Paulo, para a realização da obra grandiosa. E, com efeito, graças aos
labores fecundos do jovem Arcebispo, a Catedral foi crescendo como uma grande
semente de granito plantada pelas mãos fortes de D. Duarte; mãos bem dignas,
com efeito, de plantar granito! Como
hastes espigadas, ergueram-se as colunas. A pedra floresceu em rosáceas.
Vitrais novos, como grandes pétalas de cor, começaram a encher e remediar a
desolação das janelas vazias. A esta altura, morre Dom José. Mas, do Norte nos
vem, trazido pela mão de Pio XII, com a fama de um grande condutor de homens, o sucessor
de D. José e D. Duarte. E do que nos fala no primeiro documento em que o
público de São Paulo ouve sua voz de Pastor? Na construção da Catedral. Símbolo
tangível e poderoso de continuidade fecunda, porque continuar uma construção é
criar e conservar, fazer coisa original e nova, com raiz do passado. Sua
vocação consiste na tarefa heróica, na obra santamente hercúlea de continuar,
de acrescer, de inovar com a riqueza de seus talentos, para que chegue à sua
perfeição a obra que a Providência encaminhou pela mão de seus antecessores. E, quando no portal já
concluído da nova Catedral, nas festas centenárias de 1946, passar a veneranda
e imponente figura do nosso terceiro Arcebispo as arcadas ogivais da obra-símbolo de seus antecessores, levada por ele a termo;
quando esse Bispo nascido junto aos pagos de Dom José, que tem o vulto
venerando de Dom Duarte e que nos vem daquele Norte que Dom Vital demandou ao
deixar-nos, abençoar a multidão genuflexa no Largo da
Sé, por certo muito historiador pensará na vetusta Catedral de outrora, no
Bispo jovem que em uma manhã de festa abençoava o povo genuflexo,
e verá na repetição da cena uma reafirmação pujante e radiosa da santa
continuidade da Igreja de Deus.
E, por isto, mostremos também nós que São Paulo é
sempre São Paulo, sempre generoso, sempre cavalheiresco, sempre empreendedor.
Dom Carlos Carmelo de Vasconcelos Mota começa suas
atividades com um fidalgo ato de confiança no coração paulista. Ele não tem
receio de o emprazar para uma grande realização. Devemos estar à altura desta
confiança que repousa sobre nós, serena e ufana como uma confiança de pai
jubiloso pelas qualidades dos filhos. E,
desde já, preparemo-nos para abrir nossas arcas com a
generosidade de quem abre corações, delas tirando todos os recursos que a
carinhosa e lisonjeira expectativa de Dom Carlos Carmelo
aguarda de nós. À primeira voz de comando
pastoral deve corresponder a primeira continência, o primeiro
"presente" do paulista fiel. São Paulo todo deve vibrar,
vibrará por certo, como um só homem, para responder desde já ao novo Pastor: Estamos
aos seus pés, presentes para o grato dever, que é a construção da nova
Catedral.