A despeito das preocupações e tristezas da guerra,
o Santo Padre Pio XII tem publicado uma
série de documentos doutrinários do mais alto valor e da mais flagrante
oportunidade. Não há muito tempo, demos a nossos leitores o texto integral da
esplêndida Encíclica "Mystici Corporis Christi", que tão funda
repercussão teve no Brasil e no mundo inteiro. Esse documento magistral contra
o "liturgismo de má lei" foi seguido de
outro, de que conseguimos apenas, pela dificuldade das vias de comunicação, um
resumo muito incompleto: foi a carta de Sua Santidade ao Exmo.
Revmo. Sr. Bispo de Moguncia, sobre o mesmo assunto. Na esfera das questões sociais, é
de se destacar a alocução do Soberano Pontífice à nobreza romana, que também
publicamos segundo os resumos telegráficos. O Santo Padre tratou aí do
importantíssimo problema das relações entre a tradição e o progresso. A notabilíssima alocução que publicamos hoje, se refere a um
tempo a questões religiosas e sociais, e foi dirigida aos Párocos e pregadores
de sermões quaresmais de Roma, a 22 de fevereiro
deste ano. Publicamos a tradução do próprio texto da "Acta
Apostolicae Sedis"
(An. e vo. XXXVI, sr II, v.
XI, num. 3, de 14 de março de 1944).
Em grande parte, a importância dessa alocução vem
do fato de conter um quadro da situação do mundo contemporâneo, das principais
tendências espirituais e problemas econômicos que se esboçam quer entre os
fiéis, quer entre os povos que não são católicos. Segundo um costume
tradicional, os pregadores quaresmais de Roma foram ao Vaticano, receber as
bênçãos e as palavras de ordem do Pontífice. E este determinou os temas sobre
que deveriam discorrer, os ângulos especiais de que deveriam considerar tais
temas.
Com uma insistência apostólica em que transparece
todo o seu zelo paternal, o Sumo Pontífice se preocupou em desfazer toda uma
mentalidade errônea que há tempo o LEGIONÁRIO vem combatendo, e de cujas
reações... pelo menos furiosas, temos sido muitas vezes alvo. Como diz muito
bem Pio XII nesta alocução, "é um fato que sempre se
repete na História da Igreja que quando a Fé e a moral cristã entram em atrito
com fortes correntes inimigas de erros ou de tendências viciosas, aparecem
tentativas vãs para vencer as dificuldades com qualquer espécie de compromisso,
ou pelo menos de se esquivar e de se escapar as dificuldades". É o que se
observa em todas as mentalidades de certo feitio, que procuram não ver a luta,
quando lutam procuram lutar com ar de quem flirta, com a menor energia
possível, e em cujas tendências, idéias, atitudes, existe sempre uma
característica: o desejo de concordar a todo preço. São, na ordem espiritual, o
que foram na ordem temporal os "colaboracionistas" que apoiaram o
regime nazista na França.
Por isto, antes e acima de tudo, esses
colaboracionistas tem horror ao que chamam as "jeremiadas".
Provavelmente, se fossem vivos ao tempo de Jeremias, o teriam lapidado. Não gostam que se aponte nas suas
verdadeiras cores a situação contemporânea: chamam isto "lamuriar".
Falseiam as verdadeiras perspectivas da História, para dar a entender que
"o mundo foi sempre assim", e que portanto podemos sentir-nos tão bem
hoje quanto São Luís ou São Tomás se sentiam na Idade
Média. Tudo isto para deduzir que o mundo de nossos dias, se comporta alguns
"retoques" feitos com muito "jeitinho", para não desgostar
ninguém, é entretanto, "grosso modo",
excelente. E daí, o direito de viver associado à grande euforia do homem neopagão de nossos dias. Este, o modo de ver o panorama.
Evidentemente, o modo de proceder perante ele é análogo. Antes de tudo, não
mostrar as oposições - aliás poucas, tão poucas -
existentes entre a Igreja e o espírito do século. De nada valem as atitudes
apostólicas denodadas e francas. É preciso diluir a verdade, para que ela
circule; é preciso esconder a boa doutrina sob a pele de doutrinas más, para
que ela circule a vontade entre os que só gostam de ideologias mal encaradas.
Calar a verdade, sussurrá-la, dilui-la, eis o êxito do verdadeiro apostolado.
Dir-se-ia a transposição, para o terreno apostólico, dos conceitos do livro
famoso: "como fazer amigos e adquirir influências". Como se vê, tudo
isto tem um efeito: torna macia a vida e agradável o apostolado. Sobretudo, é
preciso não discutir nem combater. Guerra à apologética. Nossa tática deve ser
"irênica", isto é, pacífica. E por
pacifismo apostólico se entende que o apóstolo deve empunhar em suas relações
com os não católicos, o terrível guarda-chuvas com que Chamberlain alcançou contra Hitler tantas e tão
estrepitosas vitórias.
Mais de uma vez, o LEGIONÁRIO aludiu a essa
mentalidade. Há mais de um ano, vimos fazendo a propaganda de um livro que
refuta sistematicamente todos estes erros: "Em Defesa da Ação Católica", e que mereceu os mais calorosos aplausos de tantos
membros do Episcopado Nacional.
Hoje, graças a Deus, a palavra do Pontífice vem
mostrar que nossas preocupações não são quiméricas, e que é preciso abrir os
olhos ante a realidade.
A esta altura, já podemos acentuar outro aspecto da
questão. Há pessoas, talvez pouco informadas, que entendem que o LEGIONÁRIO
deveria abandonar todas as questões referentes à formação dos fiéis, questões
árduas, que geram por vezes descontentamento e divisões, para cuidar apenas dos
problemas "extra-muros".
O Santo Padre indica com suas palavras que devemos
fazer uma e outra coisa, e que não é desedificante
mas necessário cuidar também de questões criadas pela infiltração de idéias
errôneas entre os fiéis. Fazendo-o, deve-se usar de toda a caridade. Mas se,
apesar disto, a defesa da verdade enfurece a alguns, paciência: não é por isto,
que se há de deixar a verdade indefesa.
Nesta alocução magistral, o Sumo Pontífice tem o
maior cuidado em se conservar na linha de inquebrantável equilíbrio, em que se
situa sempre a Igreja. Portanto, não se trata de fazer a apologia do carrancismo, do misantropismo, do
rigorismo excessivo. É possível combater a tibieza e o laxismo
sem se expor só por isto à censura de cair no extremo oposto. Como mais de uma
vez temos acentuado, não negamos o que tem de bom nossa época; não negamos que
o apostolado deva ser feito com muita caridade, muita prudência; não negamos
que se pode chegar a resultados excelentes empregando por vezes, em lugar do
ataque de viseira erguida, uma industriosa caridade. Deus nos livre de tais
negações. Mas negamos que a unilateralidade no modo de ver as coisas, ou de
proceder diante delas seja boa. É preciso ver o mal como o bem, e não ver só o
mal ou só o bem. É preciso ser enérgico e caridoso, e não enérgico quando se
deve ser caridoso, caridoso quando se deve ser enérgico. Mesmo porque a própria
energia é caridade.
Publicando este documento pontifício, nossa atitude
não é de triunfo, mas de júbilo. Entre irmãos, um não triunfa do outro verdadeiramente,
senão quando o cinge em seus braços, no amplexo fraterno da caridade cristã, na
união santa dentro da casa paterna, na obediência meticulosa à Mãe comum que é
a Igreja. É neste espírito que fazemos, à margem do admirável texto pontifício
publicado na nossa quarta página, algumas observações destinadas a ressaltar a
importância ou atualidade, deste ou daquele conceito.
As palavras do Santo Padre se dirigiram aos Párocos
de Roma, aos pregadores
quaresmais da Cidade Eterna. Mas, na realidade, elas descrevem continuamente o
panorama de toda a sociedade hodierna, e interessam portanto aos fiéis do mundo
inteiro. Contendo um programa de ação para os Párocos, elas contém também um
programa para a Ação Católica, que na alocução pontifícia pode encontrar a
definição da verdadeira fisionomia dos problemas que enfrenta, a descrição da
atitude que teve tomar perante estes problemas, a visão exata da estratégia que
lhe importa seguir.