Vimos em nosso último artigo que Dom Vital entrou na arena
enfrentando duas potências terríveis: a maçonaria, e a corrente católica acomodatícia. Estudemos os recursos
de cada uma delas.
O nosso país durante o século passado nos oferecia
o espetáculo realmente muito singular de um pais profundamente católico em toda
a massa de sua população, profundamente descristianizado em suas “elites”. O
brasileiro do povo era católico. Raro o homem que passasse frente a uma Igreja
sem se descobrir, que não fizesse normalmente suas orações, que não saudasse
com o clássico "louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo” os transeuntes,
que não cresse com profunda convicção que a Igreja Católica, e só Ela, é a
verdadeira Igreja de Deus. Sobretudo na população rural, ou na população urbana
do interior, este sentimento era geral. Em compensação, nas cidades maiores,
como Rio ou São Paulo, ou mesmo como Campos e Campinas, o processo de descristianização já começava. Na massa,
se a Fé ainda existia, se diluíam dia a dia as tradições de piedade e
moralidade cristãs. Nas elites, a impiedade, se bem que ainda não campeasse, já
era tolerada, e por vezes até bem vista. O Brasil tinha 4 espécies de figuras
de elite: o "doutor" formado no País ou em Portugal; o argentário tipo Mauá, “fabulosamente” enriquecido no comércio, na indústria
ainda incipiente, nos transportes; o militar, vagamente invejoso do “doutor” a
quem procurava imitar praticando incursões nas letras e sobretudo na política;
e por fim o Sacerdote, que era só Sacerdote e inteiramente Sacerdote quando
bom, mas que por vezes se sentia diminuído em sua condição, e procurava
"compensar" a obscuridade da roupeta negra pelo brilho da fama
tribunícia, da influência eleitoral, ou das relações sociais. Isto tudo sem
falar do elemento feminino que floria discretamente no ambiente social
pachorrento do Brasil Imperial.
Ora o "doutor" em geral era
livre-pensador. Passara pelas escolas superiores, onde de todas as cátedras se
combatia a Igreja. Na boemia da vida estudantina, perdera não raras vezes todo o recato, todo o
amor às virtudes que são como que a atmosfera espiritual na qual a virtude da
Fé pode medrar. Sua formação lhe tirara por completo o senso e o desejo das
coisas extraterrenas e sobrenaturais. Em lugar da evangélica fome e sede de
justiça, tinha fome e sede dos bens deste mundo, de dinheiro, posição, prestígio
e honrarias. A obsessão da “carreira” o empolgava e o devorava. Orador
brilhante, vestido segundo as últimas modas, ele era, no lugarejo onde estreava
como juiz, promotor ou advogado, o figurão mais em evidência, que reunia em si
todos os fatores de prestigio social: inteligência, cultura, posição... e não
raro o pecúlio da filha de fazendeiro com quem casara. Ora, este homem que
refletia todas as “luzes” e prestígio do
século no cenário acanhado de nossos vilarejos do interior, esse homem era em
geral ímpio. Ímpio de uma impiedade diplomática: não acreditava na Santíssima
Trindade, e zombava da virgindade de Nossa Senhora, o que não lhe impedia de
manter aliás boas relações com o Vigário, ser padrinho de casamento ou batismo
de toda espécie de clientes e eleitores, comparecer assiduamente às missas de
sétimo dia, por vezes até às de domingo, ir mesmo a uma ou outra procissão. Uma
impiedade maleável, que desedifica sem irritar, que irradiava sem causar
apreensão. Mais tarde, esse bacharel de rubi no dedo seria vereador –
“camarista”, dizia-se – prefeito, deputado provincial e quiçá, oh, suprema ventura, deputado à Assembléia Geral no Rio de
Janeiro. Havia mesmo entre os
bacharéis quem a senador, a conde, a conselheiro de Sua Majestade o Imperador.
Todo bacharel tinha o prestígio de um Senador em semente. E desde as humildes
bancas do advogado provinciano até as vistosas poltronas senatoriais,
a progênie espiritual de nossas Escolas Superiores era a mesma: descrente e
maleável, a um tempo desedificante e emoliente. Em
suma, um formidável exército de descristianização, anestesiante
e avassaladora.
Era para esse bacharel brilhante, prestigioso,
falante, que se voltavam as vistas dos fazendeiros e dos argentários. Dos
fazendeiros, que sem ter a “coragem” de seguir em todas as opiniões o bacharel,
o admiravam tanto, que simpatizavam com todos os seus defeitos, com todos os
seus erros, e, se envergonhavam algum tanto de não professar suas doutrinas. O
prestígio do bacharel paralisava, intimidava, enfraquecia a Fé no coração do
fazendeiro.
Com o argentário as coisas eram mais simples. Por
índole, por feitio, por gratidão para com um século cuja estrutura social lhe
dera tão pingues ocasiões de fazer dinheiro, o argentário era um entusiasta dos “tempos novos”, era de certo modo o realizador das
teorias do bacharel. Mais prático, desdenhando até em surdina o excesso de
verbalismo algum tanto estéril do bacharel, o argentário sentia que nos filões
de ouro que detinha em suas mãos estavam as rédeas verdadeiras desse mundo
"renovado". Tal verificação encantava o argentário, que a este dava
por bem encerrada a Idade Média onde ele seria mais
provavelmente um humilde artesão. E, com a Idade Media, suspirando de alivio,
ele dava por morta a aristocracia, a solenidade de vida, a gravidade de
deveres, toda a ascese pessoal que uma cultura aristocrática impõe aos que
querem adquirir o brilho de espírito e finura de maneiras própria às
aristocracias. Para o argentário rotundo, o "cavalheiro de indústria"
comodista, esparramado, tudo isto causava horror. O
século XIX, com seu burguesismo escancarado, seus estofos, suas molas, seus “capitonés” talvez
não tão belos, mas tanto e tanto mais "gostosos" que as ascéticas
elegâncias do “ancien régime”, era
a atmosfera ideal. A Igreja era para ele uma velheira
gótica, que se tratava de deixar rolar pelo abismo. Exceto alguma promessa para
Nossa Senhora das Candeias quando os negócios
andavam mal ou a saúde estava abalada, não havia religião.
Quanto ao soldado, atingira as vésperas da
aposentadoria a velha geração de Caxias. Essa geração, que enchera de glória nosso Exército nos
campos de batalha, não tinha no seio do Exército continuadores
espirituais, isto é sucessores do ponto de vista religioso. Com efeito, a
Escola Militar formava oficiais que eram quanto às
doutrinas os dignos irmãos dos bacharéis: positivistas, verbalistas,
ideólogos irredutíveis, terríveis geometras da
inteligência, que queriam à viva força fazer caber o mundo na pequenez de suas
fórmulas, ímpios tanto ou mais quanto os bacharéis. Eram estes os militares,
que queriam apressar pela espada a evolução que os bacharéis faziam pela
inteligência e os argentários consumavam pelo dinheiro.
E os Sacerdotes? Havia‑os de três espécies.
Os de feitio de Dom Vital, os de feitio
"intermediário" e os do tipo “Feijó”. Os do tipo “Feijó” procuravam
ser bacharéis de batina... quando, ao contrário de Feijó,
usavam batina. É triste que se diga, mas não se poderia afirmar em sã crítica
histórica que os devorasse o zelo da Casa do Senhor. Seu grande desejo era de
se instalar bem na vida: alguma prebenda suficiente, muita simpatia geral,
muita consideração. Não se suponha que isto traz consigo uma traição explícita
e formal ao ministério sacerdotal. Mas trazia uma deformação no conceito desse
ministério. O “record”
de apostolado para um Padre de ideais bacharelescos
não era de enfrentar a impiedade e de a vencer, era de a fazer sorrir. Assim,
quando um Padre, à força de muita concessão, muito silêncio “prudente",
muita diluição e muita corrosão na doutrina da Igreja, chegava a arrancar de
algum maçom graduado um elogio como este: “ah, se
todos os Padres fossem assim...” ou então este outro: "Isto é que é um
Padre às direitas, de vistas largas, espírito aberto", era o supremo
sucesso. "Imagine", dizia-se na rodinha dos
admiradores do Padre, "ele é de tal valor, que até o grão-mestre da
maçonaria o admira". Era esta a suprema ventura, o supremo triunfo no
apostolado: receber palmas do partido do demônio.
Havia, graças a Deus, os Padres do
"estilo" de Dom Vital. Hoje em dia existe uma tendência injusta a
denegrir incondicionalmente o Clero no tempo da Monarquia. Nenhum país se
conserva tão profundamente católico, como era o Brasil, sem Padres
verdadeiramente de Deus. Quais eram eles? Os Padres completos, genuínos,
autênticos, por vezes humildes curas de aldeia, por vezes grandes teólogos de
profundo valor, por vezes ainda oradores e homens de governo eclesiástico de
primeira linha. No Clero secular, no Clero regular, floresciam almas destas,
que por fim aplacaram a ira de Deus, e foi dessa geração de eleitos que brotou
Dom Vital. Foram eles, como veremos, as colunas do Brasil na tremenda luta.
Ignorados, caluniados, espezinhados, venceram como vence a Igreja: sem
lantejoulas e gloriolas humanas mas com grandes
méritos aos olhos de Deus.
E, por fim, havia o Padre do tipo “intermediário”.
Correto, zeloso, piedoso... tíbio até o fundo da alma.
Sempre intermediário. Se alguém lhe dissesse que a
maçonaria não era má, ele diria: não, ela é má, porque o Papa a condenou. Se se lhe propusesse a conseqüência: então pregue contra a
maçonaria, ele responderia que não, porque isto desgostaria ao Dr. X, que era
muito bom.
Chorava sobre o curso das coisas. Choraria ainda
mais, se tivesse de ter um ato de coragem para evitar que as coisas tivessem
esse curso. Que pena que Jesus fosse tão ofendido! Mas como falar contra os que
O ofendiam, como o Coronel X, benfeitor da Paróquia, o Dr. Y, que o
cumprimentava tão amavelmente, ou o fazendeiro Z, marido de Dona XYA, tão boa
católica! Essa gente ofendia a Jesus... era verdade, bem verdade. Mas como
protestar sem ofender a essa gente? Oh, Senhor, quanto
sofrimento! Sobre este dilema – deixar que se ofendesse a Jesus ou ofender o
Dr. Y e o Coronel Z – se corria um pano. E a vida tocava macia. Macia, e na
aparência muito correta. O Dr. Y e o Coronel X preferiam muito o Padre tipo “Feijó”. Em última análise suportavam o Padre
“intermediário”. Detestavam o Padre tipo “Dom Vital”: jesuíta, ultramontano, diziam eles à guisa de suprema injúria. E
tanto o Padre tipo “Feijó” quanto seu colega
intermediário ferviam de cólera contra esse Sacerdote trapalhão que não
conseguia agradar nem ao Dr. Y nem ao Coronel Z. Afinal, do que presta um Padre
que não serve para isto?
* * *
Felizes as épocas às quais Deus concede um Clero
piedoso, santo, apostólico. Felizes os povos em cujo seio as vocações florescem
numerosas, e amadurecem ricas de sobrenatural. Toda uma geração de Padres de
Deus – a geração de D. Duarte – fez recuar para o
passado estas tristezas, mas era necessário que atirássemos os olhos para esse
passado tão cheio de aspectos contraditórios. É o fundo de quadro em que se
destaca luminosa, brilhando com todo o brilho da santidade indefectível da
Igreja, a figura máscula e sobrenatural de Frei Vital Maria Gonçalves de
Oliveira.