Retomamos hoje a série de artigos que vínhamos
escrevendo sobre a "questão religiosa" que explodiu no "segundo
império" brasileiro, em conseqüência de um conflito que se travou entre
Dom Vital e a maçonaria de início; entre
Dom Vital e o Estado no fim.
Em artigos anteriores, mostramos que a presença de
irmãos maçonizados no seio das confrarias constituía
grave irregularidade de um duplo ponto de vista:
1. Jurídico: os maçons estavam excomungados por Pio
IX, e seria escandaloso
conservá-los em associações destinadas não só a católicos, mas a católicos de
escol. O Bispo que em tal consentisse, se declarava em revolta aberta contra a
Santa Sé.
2. Religioso: a Igreja não poderia consentir que as
associações por Ela constituídas para afervorar os fiéis e os atirar nas santas
pugnas do apostolado, estivessem densamente povoadas de elementos pertencentes
precisamente a uma organização que tem por fim o extermínio do Catolicismo.
Por uma e outra razão, Dom Vital era obrigado a
fazer cessar esta gravíssima situação. Entretanto, as dificuldades mais
terríveis cercavam de todos os lados o jovem Prelado:
1 - a maçonaria tinha no Brasil uma imensa
influência, e fazia consistir sua tática de predileção em ocultar seu caráter anticatólico, o que conseguia, sobretudo, inscrevendo em
seu grêmio Sacerdotes mais ou menos iludidos sobre as verdadeiras finalidades
da seita;
2 - qualquer atitude que implicasse em uma separação
de campos entre maçons e católicos desalojaria a maçonaria de sua posição
predileta, que é a ambigüidade intencional, pertinaz, opaca, e despertaria
contra o Bispo de Olinda terrível oposição;
3 - a opinião religiosa do tempo estava
inteiramente desaparelhada para a luta, em virtude do cediço preconceito de que
qualquer atitude pugnaz é contrária à caridade cristã, e só os "panos
quentes" representam dignamente a estratégia política de católicos
autenticamente caridosos;
4 - o governo imperial não tardaria em se imiscuir
no problema, para proteger a maçonaria contra o heróico Pontífice olindense.
Era este último aspecto do problema, que nos
faltava ventilar. Examinemo-lo, melhor.
* * *
Toda a vida político-religiosa
do Brasil se desenvolvia, então, sob o signo da
ambigüidade. Formados segundo as tradições lusitanas da monarquia cristã e
orgânica, os brasileiros ainda continuavam, no fundo de seus corações,
profundamente apegados ao altar e ao trono. Só este apego pode explicar, em
última análise, que o Brasil tenha passado a terrível crise da Menoridade sem
perder a um tempo sua Fé católica e suas instituições monárquicas. A Menoridade
foi, para o Catolicismo, um período de riscos terríveis. O galicanismo,
o jansenismo, grassaram sem conta nem medida entre nós. O liberalismo invadira
as fileiras do Clero. E, entretanto, a despeito de tudo isto, a despeito da
situação precaríssima em que Feijó - precisamente um
Padre! - deixou nossas relações com a Santa Sé, o Brasil continuou, graças a
Deus, unido a Roma. Para as instituições monárquicas, o risco não foi menor. As
revoluções mais ou menos republicanas e separatistas se sucederam
ininterruptas, e só não alcançaram resultado, porque representavam muito mais a
opinião de minorias ativas e empreendedoras, do que o sentir geral da
população, profundamente apegada ao Menino-Imperador.
Assim, pois, a massa da população desejava a um tempo que o Brasil continuasse
católico e monárquico. E, na aparência, éramos uma monarquia com imperador
exercendo suas funções "por graça de Deus e unânime aclamação dos
povos", uma monarquia católica, em que a Religião Católica era a única
oficial, em que só se admitia o casamento religioso, em que se ministrava
ensino religioso nas escolas públicas, em que as tropas tinham ordem de se
ajoelhar à passagem do Santíssimo Sacramento, em que só católicos eram
elegíveis para as altas magistraturas públicas. A realidade, porém, era muito
menos nítida, muito mais ambígua do que essas ilusórias aparências. O Brasil
era uma monarquia de meias tintas, muito mais uma república coroada do que uma
monarquia genuína. O imperador era, por sua estrutura de espírito, muito mais
um filho das ideologias de 1789, do que um discípulo de Metternich, um entusiasta da Santa Aliança. E pelo mesmo diapasão
afinavam todos os chefes dos dois grandes partidos monarquistas do Brasil, o
Liberal e o Conservador. Seriamente analisadas, as convicções políticas dos
estadistas do império, os próprios princípios doutrinários da Constituição
Imperial, teriam como conseqüência lógica, não a Monarquia mas a República.
O mesmo se dava em relação à posição religiosa das
leis e dos estadistas do "Segundo Império".
Católico à primeira vista, o Brasil era governado
por dois grandes partidos cujos chefes pertenciam, quase todos, à maçonaria. As
lojas maçônicas proliferavam em todo o país, com a mais funda influência no
curso dos acontecimentos políticos. A direção dos negócios públicos estava,
pois, confiada a homens que, nos termos da legislação vigente, prestavam
juramento de defender a Religião ao se empossarem dos cargos públicos... e, no
silêncio das lojas, conspiravam contra a Igreja. Assim, todas as exterioridades católicas de nossa legislação eram meras
aparências. Nada exprime melhor o desleixo com que estas aparências se
guardavam, do que um pequeno fato narrado pelo Senador Cândido Mendes de
Almeida: em grande número de municípios, o exemplar dos Santos
Evangelhos sobre que prestavam juramento os altos funcionários municipais
era... de edição protestante! Não era possível perseguir por meios legais a
maçonaria: "todas as opiniões tinham o direito de se manifestar".
Isto não obstante, quando se quis constituir uma organização católica de caráter
eleitoral o governo a proibiu: para que essa organização, se os católicos já
tinham tudo, se a igreja era unida ao Estado? Em outros termos, a maçonaria
podia trabalhar à vontade, enquanto aos católicos era vedado interferir na vida
cívica para defesa de seus direitos. Esse o País em que a Religião Católica era
oficial! Como se vê, ambigüidade maior não era possível.
Essa ambigüidade existia sobretudo em um dos pontos
mais graves das relações entre a Igreja e o Estado, isto é, na famosa questão
do "placet".
Sendo a Igreja infalível em matéria de Fé e de costumes, é evidente que todos
os seus filhos lhe devem acatar com respeito a suprema autoridade. Assim, nada
de mais contrário à autoridade da Igreja do que pretender alguém, que tem o
direito de aceitar ou recusar algum ensinamento da Santa Sé, que pode
livremente julgar da oportunidade de se pôr em execução ou não alguma ordem
emanada de Roma. A união a Roma é o signo distintivo da catolicidade dos
indivíduos como das nações. Não há, para vida espiritual de um povo, peste mais
mortífera do que qualquer espécie de alheamento em relação a Roma, qualquer
obstáculo no exercício do Supremo Magistério da Igreja sobre todos e cada um
dos fiéis. Ora, o Governo imperial, herdeiro das tradições pombalinas da última
fase da monarquia lusa, pretendia precisamente este absurdo: nenhum documento
pontifício pode ser divulgado no Brasil sem o “placet”, a aprovação da Coroa.
Em outros termos, a Coroa entenda-se não só o
imperador, mas o Conselho de Estado, mas o Parlamento, mas a imprensa, mas a
opinião pública se arrogava o direito de aceitar ou recusar algum ensinamento
do Papa, dar ou negar obediência a alguma ordem proveniente de Roma.
Em outros termos ainda, a conseqüência era clara: o
Estado brasileiro, oficialmente católico, se reservava o direito de praticar o
"livre exame" protestante em relação aos atos emanados da Autoridade
Pontifícia.
Maior contradição, mais flagrante ambigüidade de
atitude não pode haver.
*
* *
Como veremos, essa ambigüidade atuou toda ela em
detrimento da Igreja. A Coroa recusara seu "placet" às bulas papais que
condenavam a maçonaria. Por outro lado, como governo católico que era, pretendia
ter jurisdição sobre os dignitários eclesiásticos - outra aberração tão grande
quanto o “placet”. E por isto, quando Dom Vital
excomungou os maçons, o governo imperial, por via privada de início, de modo
público por fim, intimou Dom Vital a que revogasse seu ato. Dom Vital estava,
pois, com mais um inimigo diante de si, e este tremendo: o Governo Imperial. Se
Dom Vital obedecesse ao governo, trairia seu dever de Bispo e se insurgiria
contra Roma. Se, pelo contrário, desobedecesse ao governo, seria ele preso e
processado. Seu processo eqüivaleria a um escândalo imenso, a uma colisão pública
e formal entre o governo imperial e o Episcopado Nacional.
Foi diante destas perspectivas que Dom Vital iniciou a luta.
Como veremos, dois terríveis inimigos se conjugaram para o arrastar pela via da
amargura, para o levar ao alto do Gólgota, para lhe
impor uma terrível tortura: a maçonaria com suas armas políticas multiplicadas,
e os católicos acomodatícios e "caridosos", capazes, como sempre, de
todas as intolerâncias, de todos os excessos de zelo,
de todo o fanatismo e de toda a injustiça contra aqueles a quem eles acusam
de... intolerância, excesso de zelo, fanatismo na defesa dos direitos da Igreja
de Deus.