Como dizíamos em nosso último artigo, a opinião
pública não conhece senão muito confusamente Dom
Vital. Ela sabe vagamente que foi um rijo campeão da causa católica, pugnaz e
inflexível, que chegou a sofrer pena de cadeia para cumprir seu dever de Bispo.
Tem-se a impressão de que os problemas que Dom Vital enfrentou já não
têm qualquer proporção ou nexo com os de nossos dias. É uma figura de interesse
exclusivamente histórico. Passou. Certa fama que lhe resta não é senão o eco
amortecido do muito alarido que em torno de si levantou. Como foi grande e foi
Bispo, é razoável que de quando em vez os católicos lhe prestem alguma
homenagem. E é quanto basta. Entre nós, católicos, é evidente que as coisas não
se passam tão simplesmente. Conhece-se melhor Dom Vital, sabe-se que lutou
contra todas as astúcias e toda a violência da seita maçônica, e que morreu
mártir de sua fidelidade ao Romano Pontífice. Ainda aí, porém, há muita
superficialidade ou mesmo muita ignorância que dissipar. Não se sabe que a luta
de Dom Vital estende até nossos dias seus efeitos benéficos, não se reflete que
Dom Vital não nos legou apenas louros, mas exemplos, que não nos basta guardar
uns mas devemos imitar outros; que o apostolado de Dom Vital está longe de se
ter encerrado nos dias de sua vida, porque seu espírito, seu método, suas
virtudes foram para o Brasil um verdadeiro legado espiritual, a indicação dos
caminhos em que devemos nos firmar, se quisermos chegar à realização dos
desígnios que a Providência tem para nós.
E porque nada disto se sabe em certos meios não é raro vermos a
glorificação de Dom Vital promovida por pessoas que, se vivessem no tempo dele,
teriam liderado o partido dos “panos quentes” que tanto o fez sofrer; e que
perante os problemas dos dias de hoje mantém uma conduta diametralmente oposta
a todo o exemplo que Dom Vital nos legou.
A título de apagada contribuição para a
magnificência do centenário do grande Pastor olindense,
consagremos a Dom Vital algumas laudas da edição de hoje.
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Não é possível compreender todo o alcance da
“questão religiosa” que foi a grande
cruz, o grande martírio de Dom Vital, sem uma análise metódica de todos os
aspectos do problema, do ponto de vista do direito canônico, da legislação
temporal, da situação religiosa e política do país quando o conflito entre a
Igreja e o Estado se manifestou.
Antes de tudo, os fatos.
Desde as primeiras eras da evangelização do Brasil
os missionários católicos, fiéis ao costume universalmente seguido pela Igreja,
instituíram várias irmandades, confrarias, e
associações de fiéis, destinadas a estimular nos mais fervorosos o espírito da
Igreja, e difundir na sociedade os benefícios espirituais e temporais da
influência cristã. Essas sociedades
contaram desde logo, no Brasil, não só com o ardente devotamento
de seus membros como ainda com a simpatia da população, toda ela intensamente
católica. Por isto, receberam grandes donativos e legados, constituídos por
terras, prédios urbanos, dinheiro, alfaias de valor, etc., etc. Com o curso do
tempo, esses patrimônios se valorizaram e acabaram por atingir cifras das mais
consideráveis. Nas fileiras dos irmãos viam-se em geral as pessoas de maior
destaque político e social. Não faltavam, pois, a tais confrarias, os elementos
naturais convenientes a um fecundíssimo desempenho de
sua missão. Infelizmente, porém, os frutos produzidos para a Igreja por essas irmandades estavam muito abaixo do que se poderia esperar.
Aos poucos se introduziria nelas o mais completo laxismo.
A piedade de seus membros era rotineira e sem fervor e se exprimia muito mais
pelo fausto puramente material das cerimônias religiosas teatralizadas pela
música profana, pelo aparato dos irmãos, pelo estampido dos rojões e morteiros,
do que por uma devoção interior fecunda e vivaz. Daí infelizmente, uma dolorosa
dissonância entre os deveres impostos aos irmãos pelos estatutos das
respectivas confrarias, e o teor habitual de sua vida privada. O ambiente religioso
era, pois, de tibieza e modorra, e não se podia falar nem em seleção, nem em
formação, nem em exclusão de membros faltosos. Entrava quem quisesse. E não saía...
nem quem não quisesse mais ficar. Ainda que o irmão ou irmã deixasse de
freqüentar, repudiasse a Fé católica, rompesse com a Igreja, em certas irmandades continuava irmão, convocado regularmente para os
atos coletivos, por meio de avisos públicos e particulares. Podia não pertencer
mais à Igreja Católica: continuava, porém, irmão. Em outros termos, o nível não
poderia ser mais medíocre, e a irmandade já não estava em condições de
compreender e desempenhar sua verdadeira finalidade. É o que se poderia dizer a priori, já
que as obras são vãs onde falta a vida interior. É o que os fatos diziam e até
clamavam com uma evidência infelizmente inexorável. As irmandades
empregavam seu patrimônio sobretudo para alívio dos próprios irmãos, aliás
pouco necessitados em geral. De obras espirituais ou temporais de caridade
cristã, vaguíssimos resquícios. Evidentemente, as irmandades deste jaez não podiam nem compreender, nem amar,
nem defender devidamente os grandes interesses da Igreja Católica. O homem
animal não percebe as coisas que são de Deus, diz o Espírito Santo. E é “homem
animal” todo aquele que faz da felicidade terrena o fim mais ardente de seu
coração, portando-se para com as coisas da Igreja com a frieza de quem trata
com teoremas de geometria. Em via de regra, e salvas as exceções que mesmo nos
piores tempos florescem discretamente à sombra dos santuários, era desses
“homens animais” que se constituíam as irmandades ao
tempo de Dom Vital.
Para compreender toda a gravidade de tal situação,
é preciso acrescentar que o apostolado leigo foi, em todos os tempos, o
instrumento de ação predileto da Hierarquia Eclesiástica. Papas, Bispos e
Padres timbraram, em todos os tempos, em arregimentar fiéis para os dirigir nas
fainas do apostolado e da caridade. Sendo precisamente esses prediletíssimos meios de influência e de ação que se
encontravam tão fundamente corrompidos no tempo de Dom Vital, compreende-se
facilmente com quanto ardor um Bispo zeloso deveria almejar sua regeneração.
Não é próprio do espírito da Igreja, destruir, romper, esmagar
inconsideradamente o que existe. Antes de extinguir as irmandades,
cumpria tentar regenerá-las. Bispo modelar segundo o Coração de Jesus, foi o
que Dom Vital tentou desde logo, fiel à norma evangélica de não romper o
arbusto partido, nem extinguir a mecha que ainda fumega.
Por debaixo dessa tarefa de regeneração se ocultava
porém um problema ainda mais grave. A maçonaria havia invadido subrepticiamente as irmandades.
Impossível regenerá-las sem as libertar previamente de qualquer influência
maçônica. Mas, para isto, seria necessário romper com a maçonaria, que estava
espalhada de alto abaixo em todos os degraus da hierarquia social e política do
país. Lutar com a maçonaria nas irmandades era
perturbar e dilacerar toda a contextura da sociedade brasileira. Por outro
lado, entretanto, os maçons estavam todos excomungados, e era mister
aplicar-lhes as penas canônicas fulminadas pela Santas Sé.
Este, o terrível problema que Dom Vital encontrou.
Como veremos em outro artigo, se era este o problema, não eram estas as únicas
complicações que lhe davam aspecto ainda mais temeroso.