Plinio Corrêa de Oliveira
Católicos, cismáticos, comunistas - III
Legionário, N.º 622, 9 de julho de 1944 |
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Resumamos rapidamente o quadro da igreja cismática, que deixamos esboçado em nosso último artigo. Separada de Roma, separada depois das outras comunidades cismáticas que se fragmentaram na Rumânia, na Sérvia, em outros lugares ainda, em novas igrejas nacionais, a igreja oficial russa lutava internamente com os mais terríveis problemas. De um lado, estava acéfala. Proclamara-se "autocefala". Seu castigo foi este: tornou-se acéfala. O cargo de patriarca da Rússia foi extinto, os czares assumiram a plenipotência no domínio religioso, e nomearam para as várias dioceses titulares geralmente sem zelo, nem valor. A indisciplina se introduziu de todos os modos, nesse corpo em decomposição. Indisciplina de idéias: os Bispos já não criam mais nos artigos de fé da igreja cismática, e tendiam a passos rápidos para o protestantismo. Indisciplina de costumes: nos seminários, revoluções à mão armada, no clero uma tal desordem de vida que os sacerdotes de extração popular vagueavam em geral pelas aldeias, inteiramente ébrios, nas horas de intervalo dos ofícios religiosos, praticavam tropelias e desordens, e eram espancados sem cerimônia pelos civis ou pelos policiais com que entravam em conflito. Dentro do cisma já corroído pela heresia, novos "sub-cismas" se delineavam. Havia igrejas que se separaram por sua vez dos cismáticos na própria Rússia, e eram por sua vez corroídas pelos iluministas, mágicos, teosofistas, etc. que nelas se haviam esgueirado. Nas altas classes da sociedade, o cepticismo ocidental, frívolo e ímpio campeava. Nas classes baixas, uns restos de cristianismo fortemente diluídos em superstições e práticas iluminadas de toda ordem. Essa a ganga. No meio de tanta ganga havia uns filetes de ouro. * * * Seja como for, de que modo for, porque for, a utilização dos sacramentos, fontes sobrenaturais da graça, sempre constitui para um povo um bem inestimável. Se até entre os gentios que nunca ouviram falar na Santa Igreja de Deus pode haver uma ou outra raríssima alma que saiba preservar-se das superstições idolátricas, praticar a moral natural e viver na graça de Deus, claro está que entre os russos, muitos dos quais jamais tinham ouvido falar na Igreja Católica e não tinham culpa, portanto, de estarem no cisma, tais almas também podiam existir. Ora, a essas almas a frequentação dos sacramentos não poderia deixar de aproveitar, embora menos do que se os recebessem na Santa Igreja de Deus. É a conservação dos sacramentos, e de muitos restos de doutrina católica, que explica a existência na Rússia de não poucas pessoas verdadeiramente virtuosas e amantes de Deus, de casos pessoais e concretos de uma piedade sincera e por vezes até tocante, que levou Leão XIII a escrever que a Rússia era "um bloco de ouro destacado da verdadeira Igreja". * * * Preservada da corrupção ocidental, fundamentalmente crente, a população russa, desde que fosse novamente vivificada pelas torrentes da graça que brotam do catolicismo, poderia produzir para a Igreja os frutos mais admiráveis. Para isto, bastaria que a hierarquia cismática aceitasse a obediência ao Romano Pontífice, e professasse os dogmas definidos posteriormente a separação. Ali estava, à espera dessa hora da providência, aquela imensa multidão de almas piedosas e crentes, ali estavam as catedrais magníficas, os mosteiros em que se acumulavam as imagens expressivas e de inestimável valor artístico e religioso; ali estavam os templos inumeráveis em cujo interior se desenrolava com sua pompa magnífica a liturgia oriental que a Igreja católica tão ciosamente conserva e estimula. Com aquela sabedoria tão paternal e tão industriosa da Igreja, aos poucos se iriam substituindo os bispos maus por outros, e dentro de algum tempo a Rússia floriria como um dos mais admiráveis canteiros no jardim da Santa Igreja. Nesse dia de gáudio, a posição dos protestantes seria singularíssima. Reconciliada com a Igreja seus filhos cismáticos, só eles ficariam de fora da unidade cristã. Só eles continuariam a manter dilacerada a Cristandade. É bem de ver que o exemplo dos cismáticos concorreria, mais do que qualquer outra coisa, para a conversão dos protestantes, e especialmente dos anglicanos, entre os quais as tendências para Roma são por vezes tão acentuadas. Seria necessário um Pastor para escrever toda a história das tentativas de conciliação que os Papas tem renovado incessantemente, de modo a reconduzir para o grêmio da Igreja os Orientais. Nenhuma delas produziu entretanto resultados muito apreciáveis. Era este o panorama geral, quando se deu uma formidável explosão, que de norte a sul sacudiu todos os templos russos, de todas as religiões: era a revolução comunista. * * * A igreja cismática, de embate com a perseguição, se esfarelou. Alguns de seus dignitários morreram com linha. Outros fugiram e formaram no exterior o famoso Sínodo de Carlovac, de tendências monarquistas e ulteriormente nazistas, de que já conversamos. Outros ficaram na Rússia, cumprindo um dever penoso e arriscado, ora às ocultas, ora sob as vistas algum tanto desanimadas dos agentes comunistas. A luta comunista contra todos os cultos, inclusive o católico romano, teve dois aspectos nitidamente diversos. O primeiro foi terrivelmente sangrento, foi talvez a primeira etapa. Matou-se, queimou-se, incendiou-se, dispersou-se, profanou-se tanto quanto se pode, tudo que se pode queimar, incendiar, dispersar ou profanar. Depois que tudo estava reduzido a escombros, e o terror tinha dizimado os elementos mais perseverantes e fiéis, tinha dispersado os mais tímidos e pusilânimes, uma formidável campanha de ateísmo se desencadeou sobre toda a Rússia. Durante anos e anos inteiros, disse-se, sussurrou-se, afirmou-se, vociferou-se, nos lares, nas cátedras, nos rádios, que Deus não existe. O comunismo fez todo o possível para arrancar da massa do povo russo seu espírito religioso deixando os fiéis reduzidos a grupinhos de párias, freqüentando as igrejas com o risco da própria vida. Tudo se tentou neste sentido. E, de fato, no sentido dapaganização, isto é, da extirpação de toda e qualquer Fé nos corações, muito se conseguiu. Mas não se conseguiu tudo. E nisto se encontra o segredo da atual política religiosa do comunismo. * * * Não sou dos que pensam que a reação religiosa na Rússia tenha sido muito extraordinária. Certos indícios que se costumam mencionar em sentido contrário não querem, no fundo, dizer muita coisa. Lembro-me, por exemplo, de um telegrama datado de Moscou que há mais de um ano contava que na noite do Natal os comunistas permitiram que se realizasse um ofício solene numa antiga igreja cismática, reaberta ao público, e que a igreja ficou de tal maneira cheia, que o povo se aglomerava até na praça fronteiriça. Este pequeno fato - citam-se muitos outros ainda - prova muito, e muito pouco. Muito, porque é admirável que tanta gente, ainda se conservasse fiel depois de tanta perseguição. Muito pouco, se considerarmos que Moscou foi uma cidade cheia de igrejas outrora, e que essas mal bastavam para conter a população piedosíssima que nelas se acumulava nas grandes festas. Agora, tudo isto cabe em uma igreja só e em parte da praça fronteiriça. Dir-se-á que as outras igrejas se teriam enchido, se tivessem sido abertas. Sim? Que algumas pessoas lá fossem ter, é provável. Enchido? Enchido como antes do bolchevismo? Sejamos reais: isto é pura e simplesmente uma quimera. De fato, o ateísmo, o indiferentismo, o anti-clericalismo semeado pelos comunistas arrancou massas inumeráveis ao império de qualquer fé, ou seja, plenamente cristã como a Fé Católica, ou vaga e mescladamente cristã como a fé dos cismáticos. * * * E então? Quando o comunismo cessasse, o que seria do futuro religioso da Rússia? A Igreja cismática vivia do czarismo e morreria sem ele. No exterior, muitos de seus membros se converteram ao catolicismo. Se a Igreja tivesse, numa Rússia post-comunista, grande liberdade de ação, ela seria herdeira universal do cisma defunto, recolheria amorosamente nessas ruínas os restos de verdade e de bem que ainda fumegam e reconstruiria a Rússia católica, com que tanto sonharam os Papas e todos os homens afeiçoados aos interesses da Igreja e à glória de Deus. Foi isto que se deu? Ou é isto que parece que se dará depois da guerra? Não. Os comunistas são inteligentes. Perceberam que já conseguiram muito, mas que muito lhes resta conseguir. Por isto, abrandaram lentamente a perseguição, esgueiraram nas fileiras cismáticas agentes seus, já procuram entabular relações simpáticas com os padres católicos ali existentes. Aos poucos, continuando embora a favorecer por todos os modos a impiedade, darão liberdade a todos os cultos, e tirarão disto imensas vantagens. Exemplifiquemo-nos. Para a descristianização da Rússia, tudo quanto a violência, ou campanha direta contra a Religião, poderiam conseguir, já se conseguiu. Restaram núcleos de resistências que nenhuma força dissolverá, que nenhuma blasfêmia fará recuar. Como dissolver estes restos de recalcitrantes? Organizando-se, dando-lhes chefes tíbios, indiferentes, escandalosos, chefes traidores que lentamente afeiçoem sua mentalidade a do comunismo, e que façam com suas mãos de pastores o mal que por outros meios o inferno não conseguiu. É terrível. E ao mesmo tempo é muito simples. Veremos no outro número que isto se tentará, e que com isto, ao mesmo tempo que a Fé dos católicos correrá terrível risco, o governo soviético evitará o total desaparecimento da igreja cismática e a fusão dos remanescentes desta com o Catolicismo. Em outros termos, para evitar que a Igreja herde os escombros da Rússia cristã, o próprio comunismo os tomará "amorosamente" em mãos, e os reorganizará. É assim a luta de Satanás. |