O Sr. Eamon de Valera, primeiro ministro da Irlanda, enviou ao Reich uma mensagem redigida nos seguintes termos:
"Como chefe do governo de um Estado cujos
cidadãos pertencem na sua maioria à Santa Igreja Católica, Apostólica e Romana,
considero meu dever expressar em nome do Eire a profunda
preocupação da qual participam 300 milhões de católicos de todo o mundo, diante
da ameaça que está pairando sobre Roma e da falta de
precaução por parte das nações beligerantes para garantir sua segurança.
Torna-se óbvio que se a cidade for militarmente
defendida por um dos beligerantes e militarmente
atacada por outro, a sua destruição será inevitável. Ora, a destruição da
Cidade Eterna, que durante quase dois mil anos constituiu a sede da autoridade
soberana da Igreja Católica, e na qual se encontram os grandes templos, os
grandes Seminários e as grandes bibliotecas da fé cristã, constituiria uma
catástrofe para a humanidade e a privaria para sempre das mais grandiosas obras
religiosas e da fonte cultural, cuja raiz são os ensinamentos de Nosso Salvador
Jesus Cristo. Milhões de católicos dariam alegremente sua vida para salvar
esses tesouros, símbolos das coisas eternas, as únicas que dão sentido à vida.
Peço que se escutem os milhões de seres que, em todos os países, imploram aos
beligerantes, pedindo-lhes que procurem um meio de salvar Roma. As gerações
futuras esquecerão as circunstâncias militares que no presente parecem tornar
necessária a ocupação ou a conquista de Roma. Mas se a Cidade Eterna for
destruída, a sua destruição nunca será esquecida. Enfim, se ela for salva por
meio de um acordo, as gerações vindouras lembrarão esse fato com gratidão,
assim como o nome dos Estados e dos homens que contribuíram para a sua
salvação."
Se bem que certos telegramas tenham noticiado com
bastante precisão uma démarche
do governo espanhol em favor de Roma, nada consta oficialmente a este respeito.
Ao que parece, o Eire é até o presente a única
potência que em caráter oficial e público se interessou pelo Soberano
Pontífice. De um certo modo, a mensagem do Sr. De Valera parece confirmar esta
impressão, já que o chefe do governo irlandês não fala só em nome dos seus
concidadãos, mas de toda a Cristandade, quando pede "que se escutem os
milhões de seres que, em todos os países, imploram aos beligerantes um meio de
salvar Roma". Certamente ele não o faria se outros governos se tivessem
expressado oficialmente no mesmo sentido, em nome de seus súditos. Só o
silêncio de todos os governos poderia autorizar o Sr. De Valera a falar em nome
dos católicos do mundo inteiro.
À mensagem irlandesa, onde para honra do Eire e do nome cristão se encontram tão belas e importantes
afirmações, o Reich deu a seguinte resposta:
"A legação irlandesa transmitiu, juntamente
com uma nota datada de 20 de março deste ano, o texto de uma mensagem na qual o
primeiro ministro do Eire, Sr. De Valera, expressa ao
governo do "Reich" a sua ansiedade pela
sorte de Roma. Explica-se essa ansiedade pelo fato de que não foram adotadas as
necessárias medidas para salvaguardar a cidade, sendo que a sua destruição será
inevitável se for defendida militarmente por um
beligerante e atacada militarmente por outro. A
legação da Irlanda faz votos para que, por meio de um acordo adequado, a cidade
de Roma seja salva.
"O ministro das Relações Exteriores da
Alemanha tem a honra de responder da seguinte maneira à legação do Eire: "Se a mensagem do primeiro ministro se
fundamenta na afirmação de que não foi tomada medida alguma pelas potências
beligerantes para a segurança da cidade de Roma, isso não está de nenhum modo
de acordo com os fatos, no que se refere à Alemanha. O governo do "Reich"
deu, desde algum tempo, uma expressão prática ao seu desejo de preservar os
valiosos monumentos e obras de arte de Roma para o mundo da cultura, pondo em
aplicação medidas compreensivas que tiveram como resultado a completa
desmilitarização da cidade. Desta forma, privou o alto comando anglo-americano
de todo o pretexto para destruir indiscriminadamente casas, templos,
monumentos, hospitais ou matar crianças, mulheres e outras pessoas. Eis aqui
uma lista das medidas adotadas:
"1º) O comandante chefe do exército alemão
proibiu o alojamento dentro da cidade de qualquer unidade do exército, de
comandos ou de instalações de abastecimentos das forças armadas germânicas. A
única exceção são os hospitais permanentes, nos quais são atendidos os soldados
feridos e prisioneiros de guerra, assim como um pequeno contingente de polícia
de segurança alemã que apoia a polícia italiana.
"2º) A rede ferroviária da zona da cidade de
Roma, incluindo as estações das estradas de ferro, vêm desde há muito tempo,
prestando serviços exclusivos à população civil, e especialmente ao seu
abastecimento. Os postos de comando do exército alemão não fazem uso dessa
rede. O tráfego de soldados em gozo de licença não passa pela cidade de Roma.
"3º) Todos os membros das forças armadas
germânicas receberam instruções para não entrar em Roma. Somente têm permissão
para penetrar na cidade - a título excepcional - aqueles que têm assunto a
tratar com os postos do comando italiano e que desenvolvem as suas atividades
em favor do seu bem estar e da segurança da população civil da cidade. O salvo
conduto é fornecido pelas autoridades militares germânicas.
"Há várias semanas que as referidas medidas
foram tornadas públicas na Itália pelo comando alemão
e o Vaticano foi informado a
respeito, por via diplomática. Portanto, Roma não está ocupada militarmente e não existem objetivos militares de nenhuma
natureza na cidade. Se os bombardeadores anglo-americanos não atacam a capital
italiana como o fizeram até agora, não há razão militar alguma que justifique o
seu bombardeio, pois apenas objetivos civis seriam atingidos na cidade de Roma.
"A ansiedade do primeiro ministro da Irlanda
carece de fundamento no que se relaciona com a Alemanha e a responsabilidade da
destruição da Cidade Eterna cabe exclusivamente aos comandos anglo-americanos.
"Como foi manifestado anteriormente, a
Alemanha tem-se ocupado sempre exclusivamente de livrar a cidade de Roma e os
seus habitantes dos sofrimentos da guerra aérea e conservar as suas obras de
arte, e deixa ao primeiro ministro da Irlanda a incumbência de dirigir-se aos
governos da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos, a fim de assinalar, mais uma
vez, a esses governos, que a desmilitarização de Roma é fato público,
procurando, outrossim, induzí-los
a contribuir por sua parte para a preservação da Cidade Eterna. Se a atitude
dos inimigos da Alemanha em relação a Roma não sofrer mudança, então a
responsabilidade haverá de recair exclusivamente sobre eles, caso o comando
alemão se veja obrigado mais cedo ou mais tarde a modificar o seu ponto de
vista, por motivos de ordem militar. A questão da preservação de Roma também
foi recentemente um motivo de discussão entre o embaixador alemão na Santa Sé e
o Vaticano. Nessa ocasião, o embaixador germânico informou à Cúria da mesma
maneira como foi informado o governo irlandês, sobre as medidas tomadas para
resguardar Roma. O embaixador alemão declarou claramente ao Vaticano que as
responsabilidades pelos danos causados ou que poderão ser causados a Roma
recairão sobre os americanos e britânicos".
A impressão sugerida por este blandicioso
documento é ambígua. Sua linguagem, seu tom, os fatos que ele enumera e
descreve nos apresentam a diplomacia nazista com um aspecto de moderação, de
lealdade e de doçura a que não estamos habituados. A primeira leitura da
resposta da Wilhelmstrasse dá a impressão de
que o nazismo, cheio de respeito e admiração para com a Roma clássica, cheio de
boas intenções para com a Capital da Cristandade, agiu com uma correção modelar
desde os primeiros dias da evacuação da cidade pelo governo italiano, e suporta
agora, com discreta e estóica firmeza, as calúnias da propaganda
anglo-americana. Todo o documento, do princípio ao fim, denota a preocupação de
conquistar as simpatias da opinião católica.
Ora, a despeito de tudo isto, do ponto de vista
católico, a resposta nazista apresenta duas "gaffes"
consideráveis. Não obstante sua habilidade proverbial, e o supremo interesse
que os nazistas têm, nesta hora de catástrofes, de impressionar bem a opinião
católica, deixaram transparecer seu verdadeiro espírito em dois notáveis
pormenores de sua resposta.
Primeiramente, bem pesados os termos deste
documento, vê-se que a Wilhelmstrasse abstraiu
inteiramente do caráter sagrado de Roma, insistentemente mencionado na mensagem
do "premier" irlandês. Pelo contrário, os
dois únicos motivos que o texto germânico menciona para explicar sua alegada
brandura são "o desejo de preservar os valiosos monumentos e obras de arte
de Roma para o mundo da cultura" [e] a preocupação [que] a Alemanha teve
"sempre e exclusivamente" de "livrar a cidade de Roma e seus
habitantes dos sofrimentos da guerra aérea e de conservar suas obras de arte".
"Exclusivamente"... o advérbio é expressivo. Os dois propósitos
"exclusivos" do governo nazista foram o de preservar as vidas humanas
e monumentos "para o mundo da cultura". Em outros termos, Roma só
merece ser poupada por dois títulos: o humanitário e o cultural. Título
religioso, nenhum!
São os chifres do bode furando inopinadamente a
postiça pele da ovelha!
* * *
Esta foi a primeira "gaffe".
Vejamos a segunda.
Como dissemos, o documento do Reich
foi destinado ao mundo inteiro, e redigido com o propósito evidente de captar
as boas graças da opinião católica. No momento presente, a atitude germânica
tem mesmo uma importância política transcendental. Como é notório, os
irlandeses são geralmente católicos e ao mesmo tempo tradicionais inimigos da
Inglaterra protestante. Não foi difícil à propaganda alemã persuadir os
irlandeses de que a hostilidade nazista ao Catolicismo não passava de questão
doméstica nascida da desinteligência pessoal dos chefes do Partido Católico com o Sr. Adolf Hitler, e não de uma incompatibilidade fundamental e visceral
entre as ideologias de ambas as correntes. Assim, a vitória do nazismo não representava o
menor perigo para a Igreja Católica fora das fronteiras germânicas. É
lamentável que um grande povo católico se tenha deixado iludir grosseiramente
por estas alegações, sobretudo depois da Encíclica de Pio XI contra o nazismo,
que não deixava a menor sombra de dúvida sobre o propósito do Sr. Adolf Hitler de exterminar o
Catolicismo da face da terra.
Mas nós, católicos brasileiros, sabemos por uma triste experiência como o homem
contemporâneo, viciado pelo sensacionalismo da
imprensa, do rádio, do cinema, tem preguiça de ler na íntegra, de estudar e
meditar os documentos emanados do supremo magistério da Igreja. E, por isto, os
fatos aí estão: como muitos católicos brasileiros antes de nossa declaração de
guerra ao “eixo”, também os católicos
irlandeses se deixaram enganar.
Mas agora chegou o momento crítico desse regime de
mistificação. Os nazistas ocuparam a Cidade Eterna. Se a perseguição contra o
Catolicismo era pura questão doméstica, a conduta das autoridades germânicas
para com a Santa Sé deveria ser modelar. É modelar de fato? Não o é? Deste
problema, pende a simpatia irlandesa para com o "eixo". Ora, esta
simpatia é preciosa para os germânicos. A atitude irlandesa constitui para os
ingleses uma perpétua preocupação. Talvez se deva à diplomacia do Eire, ao menos em parte, o retardamento da invasão da
Europa, que será para o Sr. Adolf Hitler
não o "começo do fim", mas o "fim do fim". Assim, os
germânicos têm o maior empenho em continuar bem vistos pela Irlanda.
Expostos estes dados preliminares do problema,
examinemos outra questão, que o comunicado germânico procura ladear habilmente.
Se a conduta dos teutônicos foi de tal maneira irrepreensível para com a Santa
Sé, não se explica que o Santo Padre tenha, em seus discursos, adotado invariavelmente
palavras que faziam recair, não apenas sobre os anglo-americanos, mas sobre
todos os beligerantes a responsabilidade pelo bombardeio de Roma. Sentindo a
ansiedade de toda a opinião católica pela incolumidade
de sua augusta pessoa, pela integridade da capital pontifícia, o Sumo Pontífice
nem uma só vez se dirigiu ao mundo dizendo-lhe que Roma já era uma cidade
inteiramente desmilitarizada, e que os motivos alegados para seu bombardeio
haviam deixado de existir. Pelo contrário, mesmo as autoridades eclesiásticas
mais chegadas ao Vaticano, como os Cardeais norte-americanos e o do Canadá, os
Bispos de potências neutras, continuaram a ordenar orações pela Santa Sé,
afirmando em seus telegramas que Roma deveria ser poupada por uma providência
bilateral, de ambos os grupos beligerantes, o que excluía expressamente a idéia
de que a desmilitarização de Roma já houvesse sido feita pelos nazistas.
* * *
Ora, tudo isto posto, se de fato Roma foi
desmilitarizada, o que deveria fazer o Reich? Em sua
resposta para a Irlanda, deveria apelar para o testemunho do próprio Vaticano.
Nada lhe seria mais conveniente nem mais fácil do que entender-se previamente
com o Núncio em Berlim e o embaixador germânico em Roma, concertando por via
diplomática uma nota de Mons. Orsenigo, representante do Sumo Pontífice junto à Wilhelmstrasse, em que este declarasse autorizadamente
que a Santa Sé pode noticiar ao mundo inteiro que Roma de fato não está mais
ocupada pelos germânicos. Essa declaração, ao mesmo tempo que consolidaria a
popularidade germânica em Dublin, teria no mundo inteiro a repercussão mais desairosa para
os Aliados. Não penso que a Santa Sé se recusasse a fazê-la. Que melhor meio
teria ela para se defender de agressores que a todo custo, e sem nenhum motivo
plausível, persistem em bombardear a
Cidade Eterna?
Ora, essa declaração não veio. Não veio e, para
maior agravante, o comunicado germânico em resposta ao apelo irlandês afirma
duas vezes que o Vaticano está inteirado por via oficial e diplomática da
evacuação de Roma. Se o Vaticano está informado por via diplomática daquilo que
lhe seria facílimo verificar até por via extra-diplomática,
por que se cala? Que resposta deu o Vaticano à comunicação do Reich? Porque o Reich não publica
esta resposta? O que significa esse silêncio sobre uma situação que inocenta
inteiramente uma das partes e faz recair toda a culpabilidade sobre a outra?
Involuntariamente, a nota germânica acabou pondo o Vaticano em má postura perante
a opinião irlandesa o que, para católicos, eqüivale a raciocinar ao absurdo.
Com efeito, como o Vaticano não pode estar em má postura, os fatos alegados são
falsos.
Foi no que deu toda a filáucia nazista no presente
caso.
Mas houve mais. No mesmo dia em que se divulgou a
nota germânica, o presidente Roosevelt respondeu ao apelo
que a S. Excia. enviou o Sr. Eamon
De Valera. Eis o telegrama que
sobre a atitude do chefe de Estado ianque se publicou na imprensa diária desta
capital.
DUBLIN, 19 (R.) - Em resposta ao recente apelo ao
governo norte-americano, por parte do Sr. De Valera, no sentido de evitar a
destruição de Roma, o presidente Roosevelt assegurou
que os Aliados continuarão evitando escrupulosamente causar a destruição de
monumentos religiosos e culturais. Na resposta estadunidense, cujo texto foi
tornado público hoje nesta capital, o presidente Roosevelt
declara o seguinte:
"Isto se aplica tanto a Roma como a outras partes
da Itália onde lutam as forças dos Estados Unidos. Temos tentado escrupulosamente, freqüentemente à custa
de grandes sacrifícios, poupar da destruição os monumentos religiosos e
culturais. E continuaremos procedendo assim. Não obstante, ao apelar para o
governo dos Estados Unidos pedindo-lhe que Roma seja salva da destruição, V. Excia. se acha consciente, como é de se supor, que os
alemães ocupam com força a capital italiana e estão empregando até o limite de
sua capacidade a rede de comunicações e demais vantagens que Roma lhes oferece,
no sentido de intensificar suas operações militares. Se as forças alemãs não se
entrincheirassem em Roma, não se haveria criado o problema da preservação da
cidade.
"Tomei conhecimento de que V. Excia. enviou comunicação semelhante ao governo alemão. O
destino de Roma haverá de decidir-se ali".
Como se vê, o Sr. Roosevelt
desmente do modo mais formal e categórico as afirmações germânicas. Aí está o
Vaticano para dizer a verdade ao mundo. As declarações que ele tem feito até
aqui são perfeitamente bilaterais, e afirmam que ambas as partes tinham
providências a tomar, e que, portanto, Roma está ocupada. Ninguém duvida da
objetividade, da serenidade, da imparcialidade, da coragem do Vaticano.
Apele o Sr. Hitler para o Vaticano e
peça-lhe que desminta o Sr. Roosevelt. Exija que o
Sr. Roosevelt cumpra a promessa de não bombardear
Roma caso os nazistas a desocuparem. Quando falar o Vaticano, creremos na
desmilitarização de Roma, sem tergiversar e com a alma transbordante
do mais intenso júbilo. E estamos certos de que os Aliados não a alvejarão.
Antes disto, é preciso convir que será cedo, muito e muito cedo para crer em
fato de tamanha monta, com base na palavra desacreditada de uma chancelaria que
tem atrás de si todo um passado de concordatas e tratados violados, e que no
próprio ato em que procura escusar-se de qualquer responsabilidade afirma ao
mesmo tempo que do ponto de vista cristão católico Roma nada quer dizer para ela.
Só do ponto de vista artístico e filantrópico lhe parece que a sede do Papado,
a Capital do mundo cristão, merece não ser transformada em um montão de ruínas.