Legionário, N.º 606, 19 de março de 1944

MANUEL LUBAMBO

Por uma coincidência que me passara inteiramente inadvertida, dediquei meu artigo de fundo a um livro do Revmo. Pe. Antônio Fernandes, precisamente nas vésperas do primeiro aniversário [de falecimento] de Manuel Lubambo. Assim, é só hoje, e portanto com pequeno atraso, que escrevo sobre outro livro que acaba de me chegar de Pernambuco: "Manuel Lubambo", da autoria do Sr. João Vasconcelos, Revista "Tradição" editora, Recife, 1944.

Já era tarde da noite quando me entregaram o trabalho que o Sr. João Vasconcellos acaba de publicar. Desejando escrever algo sobre Lubambo em nossa edição de hoje, comecei a folhear o livro com a esperança de encontrar nele em poucos minutos as notas biográficas que me faltavam. Conheci Manuel Lubambo através de sua obra, através de seus amigos, através de seus inimigos. Inútil é dizer que participo da admiração geral por seu estupendo talento, incontestável aos olhos de quem quer que lesse sua admirável revista "Fronteiras". Inútil dizer também que acompanhei com o mais vivo interesse o desenvolvimento de sua obra. Os amigos dele, que cheguei a conhecer, o abonaram ainda mais em meu conceito. E o mesmo serviço lhe prestaram seus inimigos. Mas tenho a impressão de que a personalidade de Manuel Lubambo excedia de muito à sua obra, por mais relevante que esta tenha sido.

Mazarino disse de Luís XIV que havia nele estofo para quatro reis. Tive sempre a impressão de que no Manuel Lubambo íntimo havia estofo para quatro homens da estatura do Manuel Lubambo visível à distância. E, por isto, tinha eu uma velha curiosidade de conhecer mais de perto a personalidade de Lubambo, de aquilatar por meio do valor de cada um de seus aspectos, de penetrar no segredo mais profundo daquela estrutura psicológica relevantíssima, na qual o talento ocupava sem dúvida um lugar de relevo, mas cuja nota característica foi, a meu ver, a têmpera inconfundível da personalidade. Recolhi, nas poucas oportunidades que se me ofereceram, os fatos mais elucidativos a este respeito: eram poucos, desconexos, apresentando apenas aspectos fragmentários de uma realidade psicológica que eu queria conhecer mais a fundo. É verdade que, extremamente lógico em tudo, Lubambo poderia ser conhecido por dedução, e não somente por observação. Mas a observação é sempre insubstituível em matéria de indagação psicológica. Folheando o livro do Sr. João Vasconcellos vi desde logo que era o que eu de há muito procurava. Não se trata de um livro sobre a obra de Lubambo, historiando sua atuação na vida religiosa, intelectual e política de nosso País. O autor deixa de lado tudo isto, para abordar diretamente o tema especial que me interessava: o Lubambo íntimo, o interior doméstico e psicológico do grande lutador do Norte. Por isto, começando por folhear distraidamente o trabalho, eu o li de um só lance, até o fim, com um interesse que não sofreu a menor "pane" em todo o curso da leitura.

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Lubambo foi, a meu ver, em todo o sentido uma pessoa nascida para conduzir homens. Dotado de uma inteligência privilegiada, que tinha a seu alcance os temas mais nobres ou subtis da investigação especulativa, todo o "ressort" íntimo de sua personalidade o levava entretanto para outros campos. Não que lhe faltasse gosto pela especulação, nem conhecimento do papel fundamental dos temas especulativos, no que diz respeito ao governo da vida humana. Imaginá-lo seria reduzir Lubambo ao nível de um "meneur" de gênio, quando ele foi muito mais do que isto. Lubambo foi um homem de doutrinas que compreendeu a fundo os princípios que sustentava, que descortinou todo o panorama da crise contemporânea e o analisou à luz de suas doutrinas, e que desceu resolutamente à liça para obter a vitória de seus ideais. Entretanto, há um erro em imaginar que essas várias fases da formação interior de Lubambo foram sucessivas. O Sr. João Vasconcellos nos mostra, à luz de reminiscências de interesse, que Lubambo passou a vida inteira filosofando, observando e lutando a um tempo, que cresceu simetricamente nos três sentidos desde os primeiros albores de sua vida intelectual até a maturidade de seus últimos dias, e que ele nunca foi um filósofo que em belo dia, concluídas suas leituras, resolveu fechar os livros para analisar a vida, ou um observador que, analisado o panorama contemporâneo resolvesse por via de silogismo tomar parte no embate das idéias do século. A observação objetiva da vida conduziu-o naturalmente às indagações de doutrina, a doutrina por sua vez frutificava imediatamente em conseqüências ou conclusões de ordem prática, e o impelia à ação. O tipo de inteligência de Manuel Lubambo lhe facilitava o trabalho. Ele era além de doutrinador um artista. "Fronteiras" criou propriamente uma corrente artística no Norte do País. Lubambo tinha o dom muito raro e imensamente invejável de fazer apologia de suas idéias não somente pela argumentação, mas pela figura, pelo desenho, pela manifestação exterior dos símbolos com que a idéia atinge a sensibilidade e completa o trabalho persuasivo da argumentação. E, finalmente, todas as suas virtudes eram de um chefe: a dedicação sem reservas, perseverança, nitidez de propósitos, coerência, amplitude de personalidade que despertava nos que aceitavam sua doutrinação uma confiança sem reservas em sua capacidade de lutar por elas e de as fazer vencer.

O Sr. João Vasconcellos tem uma verdadeira vocação para biografar Lubambo. Anatole France, o lamentável Anatole France, edição minguada e modernista de Voltaire, escreveu que ninguém é grande homem para seu secretário. De feito, logo que Anatole morreu, seu secretário publicou sobre ele um livro de recordações íntimas que desfavorecia quanto possível a memória deixada pelo "mestre": foi o famoso "Anatole France en pantoufles". Lubambo ao que me parece não teve secretário: mas teve íntimos. Os pormenores que de um deles ouvi me revelaram que Lubambo tinha por vezes uma franqueza rude e até descompassada, que com dificuldade se suportava. O Sr. João de Vasconcellos, como biógrafo probo, deixa entrever algo desta particularidade que o trato de Lubambo possuía. Mas com que dignidade, com que superioridade de espírito em relação ao comum das pessoas, o Sr. João Vasconcellos soube ver e apreciar tudo isto!  Para ele, como aliás para o amigo de Lubambo, que acabo de mencionar, tudo isto eram pequenos senões, que passavam desapercebidos à vista da grandeza do homem e de sua obra, e que aumentam até o travo amargo das saudades. O Sr. João Vasconcellos foi dos mais íntimos companheiros de luta de Lubambo. Por seu livro, percebe-se que seu temperamento natural é muito sensível - perdoe-me o autor essa indiscrição - e de uma sensibilidade por vezes levada até a susceptibilidade. Entretanto, uma honestidade intelectual que tanto o dignifica nesse livro chega nele a ponto de não procurar uma só vez ocultar, diminuir, subestimar em qualquer sentido a importância de Lubambo na formação de idéias e no curso geral da vida do autor. Os romanos não compreendiam a humildade dos cristãos. Os pagãos de nossos dias também já não sabem o que é essa palavra, o que ela tem de genuinamente nobre, e ignoram que ela é a condição única da verdadeira dignidade pessoal. Dizer-se hoje de alguém que é humilde dá a impressão de que possui poucos dotes intelectuais, de que é pobre de personalidade. Leia-se o livro do Sr. João Vasconcelos e se verá o contrário pelo nobre e belo exemplo do autor. A leitura desse livro feito para a apologia do talento e da personalidade de Lubambo é também o melhor elogio do Sr. João Vasconcellos. Seu estilo simples, corrente, que exprime um genuíno talento literário, encanta. Suas qualidades de observador ágil, penetrante, de narrador cheio de significado porém discreto, são hoje muito raras. Sobretudo, seus predicados de fortaleza intelectual, de amor à verdade, de constante fidelidade ao dever da coerência, impressionam profundamente, e fazem de todo leitor que tenha sido amigo de Lubambo, ou que teria sido se o conhecesse, um amigo e um admirador do Sr. João Vasconcellos, não no sentido vulgar e surrado destas expressões, mas na realidade das idéias que elas contêm.

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Passo agora a cumprir um difícil dever que os amigos de Lubambo, formados por ele na escola do respeito absoluto à coerência das idéias e das atitudes, na escola da lealdade sem jaça, compreenderão por certo, Lubambo escreveu, e seus livros foram lidos no Brasil inteiro. O LEGIONÁRIO sempre foi, pela graça de Deus, "sans peur et sans reproche" no que diz respeito ao dever de externar plena e claramente seu pensamento. Não posso portanto deixar de dizer que se o livro do Sr. João Vasconcellos satisfez em larga medida a minha curiosidade sobre Lubambo, não deixou de acentuar certas interrogações que a própria obra do saudoso batalhador de quando em vez trazia a meu espírito.

O LEGIONÁRIO e "Fronteiras" sempre tiveram orientação parecida, nas grandes questões gerais. Entretanto, em problemas práticos ou teórico-práticos, tive ocasião de verificar mais de uma vez que dissentimos. Por que? Houve aspectos do problema contemporâneo que Lubambo não me parece haver visto com aquela intransigência meticulosa que era entretanto a característica de seu talento solar. Por exemplo, como esperar de certos quadrantes ideológicos qualquer vantagem para a Igreja e para a recristianização do mundo? A meu ver, essa esperança revela que Lubambo, talvez não haja conhecido até seus mais íntimos e miseráveis segredos a mentalidade do homem contemporâneo. O Moloch de nossos dias é o chamado "espírito moderno", cabeça de serpente, cuja cauda se estende pelo passado a dentro, até chegar em Lutero e João Huss. Esse espírito é de tal maneira poderoso, asfixiante, penetrante, que raros escapam à sua influência. Só as almas inteiramente imaculadas de qualquer contaminação do espírito moderno poderão salvar o mundo, e se o não salvarem é provável que cheguemos ao fim. Ora, a experiência de todos os dias nos mostra que entre os nossos há tanta e tanta gente que se deixou macular, senão pela lama dos caminhos, ao menos pela poeira que enche o ar. Como esperar então que certos homens que não tem a verdadeira Fé, ou que não a praticam, hajam de estar de tal maneira livres desse espírito moderno que saibam destruir inteiramente todos os seus germes até o último e mais insignificante, e reconstruir depois um mundo inteiramente limpo de qualquer fermento da corrupção moderna? O espírito moderno é substancialmente impiedade e tibieza. Não é pelas mãos de ímpios ou de tíbios que ele morrerá.

Lubambo, a meu ver, não atingiu ao fundo muita coisa assim. Daí entre muitas de suas concepções e as do LEGIONÁRIO uma diversidade de orientação que por amor à honestidade sou obrigado a lembrar aqui, certo de que Lubambo, inimigo dos necrológios convencionais e dos laudatórios totais seria o primeiro a me revelar esta franqueza.

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E, agora, para o Pe. Fernandes, para Guilherme Auler, para João Vasconcellos, para tantos outros no Norte uma pergunta que já fiz a um amigo de Lubambo em São Paulo: que vão fazer? Morto Lubambo, não morre a causa, não pode, não deve morrer a luta. O "grupo de Fronteiras" não se pode dispersar. E, para isto, é preciso que não deixem prescrever a obrigação de lutar juntos, em que todos se encontram. Havia em “Fronteiras”, há em todo o legado ideológico de Lubambo uma sementeira que não pode ficar guardada junto às relíquias do herói que tombou.