Legionário, N.º 604, 5 de março de 1944

UMA "CAUSERIE" SOBRE O GRANDE TEMA

A agência telegráfica oficiosa da Inglaterra, "Reuters", divulgou o seguinte resumo de uma alocução verdadeiramente patética do Santo Padre em prol da Cidade Eterna:

"Ameaça crescente está por certo pesando sobre Roma e, no entanto, nós não podemos dizer isso abertamente. Se Atenas e o Cairo foram poupados de ataques militares, por motivos religiosos e políticos, nós não perdemos a esperança de que os beligerantes acabem compreendendo que a Cidade Eterna tem muito mais direitos a reivindicar igual respeito à sua integridade. Imorredoura mancha e vergonha cairá sobre a humanidade se, por motivos militares, considerações ou dificuldades que devem sempre e em todos os casos ser vencidas pela boa vontade - Roma, a única e incomparável no desenvolvimento político, cultural e espiritual, que há vinte séculos vem sendo a madre da Civilização Cristã, se tornasse vítima da fúria destruidora desta terrível guerra, no curso da qual tantas esplêndidas construções, na Itália e no estrangeiro - das quais a última, mas não a menor, pelas suas caríssimas e antiquíssimas memórias, foi a famosa abadia de Monte Cassino - têm sido irreparavelmente danificadas ou destruídas".

Estas palavras devem ser lidas com emoção. Mas a emoção não basta. Ela precisa de se transformar em oração e ação, se não quiser perder toda a sua autenticidade e nobreza. Não haverá realmente o que fazer para desafogar a situação do Soberano Pontífice?

Estamos longe da atmosfera turva e agitada dos campos de guerra e de suas imediações. Ignoramos, portanto, muitos dos pormenores concretos mais essenciais que existem no problema da preservação de Roma. Sem querermos fazer o ridículo papel dos "generais de mesa", que discorrem gravemente sobre as operações militares e, no mármore das mesinhas de café desenham campos de operações, movimentam tropas e vencem batalhas sem jamais terem estado em um curso militar, e sem querer dar portanto a nossas reflexões outro valor que o de algumas conjecturas ou reflexões sugeridas pelo simples bom senso, aqui deixamos consignada uma série de idéias que talvez ainda possam ser utilizadas para a solução do problema. Fazemo-lo por zelo de filho que embora sabendo que não pode ser de utilidade imediata, não cessa de pensar na situação tormentosa do Pai.

* * *

Da mensagem do Santo Padre decorre claramente a convicção de que alguma coisa pode ser tentada de prático, de eficaz, de decisivo para a salvação de Roma. Ora, não sendo embora especialista em questões militares, o Santo Padre não lançaria tal afirmativa sem se ter informado cuidadosamente da situação. As tradições de suma prudência do Vaticano, tão caracteristicamente acentuadas no atual Pontífice, excluem qualquer idéia em sentido contrário. Dentro de que ordem de idéias poderia ser encontrada tal solução?

Em suas linhas gerais o problema de Roma parece colocar-se assim:

a) os nazistas ocuparam a cidade que constitui um centro estratégico muito favorável e o nó de toda uma rede ferroviária, rodoviária, elétrica de que depende toda a península;

b) por outro lado, sendo a Capital da Itália, Roma é cidade muito importante do ponto de vista moral e político, obedecendo a massa geral do povo, como a legítimo governo, ao grupo que estiver de posse da cidade;

c) assim, a ocupação de Roma é para os nazistas de uma suma importância militar e política, e sua ocupação pelos Aliados implicaria necessariamente em um desequilíbrio da balança de forças que os germânicos procuram estabelecer na península. Logo, a posse de Roma é muito importante e deve ser disputada de armas na mão.

Evidentemente, não perderemos tempo em afirmar e muito menos em demonstrar o que de si é óbvio: os nazistas não têm o menor direito de argumentar assim porque são intrusos e ilegítimos ocupantes. Isto posto e diante de uma situação que portanto só deve ser considerada de fato e não de jure, façamos algumas reflexões.

*  *  *

Para os Aliados, com quem está todo o direito segundo é absolutamente patente, o ideal seria conquistar Roma. Mas eles representam o partido da civilização, do direito, da moral, contra a barbárie nazista que tiraniza a Europa. Logo, estarão no seu papel ascendendo a alguns sacrifícios possíveis e prudentes, para salvar Roma. Devemos crer que sinceramente o desejem fazer. O Papa lembra muito bem que foi à custa de prudência, de espírito de tradição, de concessões razoáveis que foi possível "por motivos religiosos e políticos", salvar o Cairo e Atenas. Logo, o mesmo se fará em sã lógica por Roma.

Evidentemente, os Aliados não darão aos nazistas a honra de esperar que eles reconheçam o papel vil que estão fazendo e abandonem a Cidade. E quando o Santo Padre fala de poupar Roma, é certamente uma coisa diferente disto que ele espera. Porque esperar cortesia e linha em nazistas é o mesmo que fazer planos contando com a doçura e suavidade dos chacais.

É preciso, portanto, ver se há uma saída que, sem comprometer o êxito dos Aliados, ao mesmo tempo torne possível evitar-se a horrível hecatombe a que os nazistas querem empurrar o mundo cristão.

Em princípio, isto só se conseguirá de um modo: permitindo que os nazistas se entrincheirem mais para trás, em posições geográficas aceitáveis, e deixando Roma como cidade neutra e extra-beligerante, fora das mãos de qualquer facção em luta. Estudemos mais de perto estas duas condições de qualquer solução exeqüível.

*  *  *

Não cremos que a retirada dos nazistas para ponto mais remoto do território peninsular represente para os Aliados fundo prejuízo. Com efeito, os nazistas poderão presentemente deixar Roma a qualquer momento e se fortificar em outro lugar. Concordando em que o façam, os Aliados não aumentarão de um fio ou de uma linha as facilidades de movimento e de resolução do Q.G. germânico. Por outro lado, dada a configuração peculiar do território peninsular, muito bem exposta por Churchill em seu último discurso, não será difícil encontrar na Itália ponto conveniente que substitua Roma como posição militar.

Mas, dir-se-á, do ponto de vista dos Aliados tudo isto é razoável. Do ponto de vista dos nazistas, não. O LEGIONÁRIO é o primeiro a apontá-los como os piores inimigos da Igreja. Por que espera então que eles façam um sacrifício em favor da Igreja? A resposta é simples. Os nazistas estão manobrando de sorte a tentarem "limpar-se" da responsabilidade do bombardeio, de que serão culpados. Se não querem fazer o menor sacrifício para o evitar, arquem então com toda a responsabilidade moral, toda a vergonha de sua miserável conduta.

*  *  *

E Roma? Quem garantirá sua neutralidade? Quem a governará? A solução é simples. O governo pontifício pode administrar provisoriamente a Cidade Eterna, sem permitir dentro dela a ingerência de forças de qualquer potência beligerante. O Exército Suíço, especialmente transportado para Roma, e que é hoje uma excelente força militar, asseguraria o cumprimento do pacto.

Roma se salvaria. Roma não constituiria perigo para qualquer dos beligerantes. A pessoa do Pontífice ficaria intacta, intacta a sepultura dos Apóstolos, intactas as inúmeras relíquias e obras de arte da cidade. Que mais?

*  *  *

É possível que a esta hora isso esteja sendo tentado pela diplomacia aliada. Quais os intermediários entre as potências de um e outro lado para a negociação? Nada mais simples: Portugal, a Suíça, a Suécia, o próprio Vaticano. Quem sabe se de um momento para outro seremos surpreendidos por esse esplêndido desfecho? Quem sabe também se essa solução, dadas [as] circunstâncias concretas, seria indesejável para o próprio Vaticano? Quem sabe se seus termos essenciais, aproveitáveis embora, deveriam sofrer em seu modo de execução fundas alterações? Os diplomatas de jornal e os marechais de mesa de café devem ao menos ter suficiente prudência para desconfiarem de suas próprias soluções, reconhecendo que contam na melhor das hipóteses como meros argumentos de probabilidade. Em favor desta tese, os argumentos de viabilidade são indiscutivelmente muito ponderosos. Eles aqui ficam expostos com toda a reserva de quem sabe que não vê senão os contornos gerais dos acontecimentos que são muitíssimo complexos em seus inúmeros pormenores.