Legionário, N.º 587, 7 de novembro de 1943

"COM QUEM ESTÁ O PAPA?"

Antes de darmos uma resposta cabal ao artigo "Com quem está o Papa", do deão de Canterbury, publicamos aqui alguns comentários parcelados sobre alguns de seus tópicos.

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Começa o autor por lisonjear a opinião católica. Em estilo dulçuroso, afirma: "A política do Vaticano no cenário mundial é um dos pontos mais obscuros, mais fascinantes e mais desconcertantes da guerra atual. Que faz o Papa? Que quer o Papa desta guerra? Que partido tomou o Papa nesta luta sangrenta pela liberdade e pela vida dos povos chamados cristãos do mundo de nossos dias? Eis três perguntas específicas de importância mais que fundamental, mas de resposta extremamente difícil em vista de dispormos de poucos dados para penetrar nas lucubrações subtis e multisseculares do Papa e de sua diplomacia, que é em um sentido muito amplo a diplomacia mais consumada, mais fina e mais experimentada de todos os tempos". Como se vê, um campo de flores que exalam veneno. Com o intuito de se cobrir com o prestígio da imparcialidade, o autor reconhece aquilo que aliás é evidente: a importância fundamental que tem na vida internacional de nossos dias qualquer atitude do Papado. Há quantos séculos vem os protestantes proclamando o declínio da "Igreja de Roma", sua radical incompatibilidade com as atuais condições do homem, etc., etc. Pois em 1943, o deão de Canterbury, isto é da mais ilustre das Igrejas protestantes inglesas, tem que reconhecer que o prestígio da Santa Sé é tal que a análise de sua atitude é essencial para a compreensão dos acontecimentos. O deão, de tão impressionado, chega mesmo à hipérbole. Não é apenas essencial, mas "mais do que essencial", o estudo da atitude do Papa. Deixamos ao deão a difícil tarefa de explicar aos seus leitores o que possa ser, em filosofia, uma "coisa mais do que essencial"... o estudo da atitude do Papa. Baste-nos este conhecimento do alto grau do prestígio, de influência, de autoridade, que a força puramente espiritual do Papado conserva nesta era de Minerva e de Mamon.

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Mas o texto que transcrevemos tem suas nuvens. Nuvens hábeis. Nuvens tênues. Mas nuvens venenosas. Há um conflito em que estão empenhadas a vida e a liberdade dos povos "chamados cristãos". De passagem, gostaríamos de perguntar quais são esses povos a quem o deão recusa a honra de serem cristãos. Serão os católicos? Em todo caso, não é curioso que não se possa dizer qual a atitude assumida em tal luta pelo Pastor Supremo de toda a Cristandade? Por que uma tão estranha discrição? O Vaticano aprecia as "lucubrações subtis". Sua diplomacia é a "diplomacia... mais consumada de todos os tempos". Estranho! Estas palavras não querem dizer necessariamente que a diplomacia do Vaticano seja maquiavélica. Mas são tais que deixam uma impressão muito vizinha desta. Entretanto, a elas não se segue qualquer declaração que exclua esta interpretação desairosa. Enfim, prossigamos...

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"O Papa já tem falado muitas vezes nesta guerra, mas a obscuridade e a ambigüidade de suas declarações estão bem traduzidas no fato de que tanto os aliados como o eixo consideram as suas palavras favoráveis a si próprios e desfavoráveis ao inimigo", esclarece o "Rev." Johnson. Mas como? Então, o Papa não tem a menor lealdade? Por que o "Rev." Johnson não cita em [seu] abono [uma] declaração "ambígua" do Pontífice? Para uma acusação de tão alto alcance, basta ao "Rev." Johnson um fato: os nazistas, tanto quanto os aliados, dizem que o Papa está com eles. Não sabe o “Rev.” que os nazistas personificam o próprio espírito da mentira, que Pio XI os chamou "a mentira encarnada", e que, portanto, ainda que eles entendam muito bem que a Santa Igreja não pode senão lhes desejar uma fragorosa derrota, eles mentirão contra toda a evidência dos fatos, e proclamarão o contrário? Conhece o "Rev." Johnson a Encíclica "Mit Brennender Sorge" de Pio XI, em que o Papa condenou radicalmente o nazismo? E ignora que mesmo depois disto os nazistas continuaram a se proclamar cinicamente amigos da Igreja?

Em última análise, é com base em uma afirmação dos nazistas  -  dos maiores mentirosos do mundo  -  que o Sr. Johnson estriba sua acusação contra o Papado. Francamente, não se poderia argumentar pior.

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 O "Rev." Johnson sente perfeitamente que seu ódio contra Roma o traiu, e que suas últimas palavras o fizeram sair da primitiva serenidade de seus conceitos. Por isto vem, para soprar a ferida aberta, este elogio que parece um ato de Fé na divindade da Igreja: "...a Igreja Romana, dum ponto de vista eterno, está acima das lutas das nações, das guerras e de tudo o que seja temporal. Ela precedeu a democracia, precedeu o nazismo, precedeu a todas as formas de governo do mundo moderno; a face política do universo tem mudado radicalmente, por vezes, e a Igreja Romana sempre conseguiu sobreviver, embora com uma progressiva diminuição de força. É mais do que certo que a Igreja Romana sobreviverá sempre, seja qual for a estrutura que o mundo assuma em qualquer tempo... ". Mas os que odeiam têm um fôlego curto para soprar. O deão se cansa rapidamente nesses dulçorosos e alambicados elogios. E arranha logo a seguir: "a única possibilidade em contrário seria uma vitória mundial do comunismo. Mas neste ponto a Igreja Romana não luta sozinha''. Contradição flagrante! Há linhas atrás, o autor afirmava que a Igreja é indestrutível, e agora afirma que ela pode ser destruída, e insinuando até que ela está tão fraca que suas possibilidades de vitória vêm do fato de que ''não luta sozinha''. Entretanto, o próprio deão reconhece que ela tem tal autoridade no mundo atual, que a análise de sua atitude é de uma importância ''mais que fundamental''. Contradição sobre contradições. Mas o deão é bom protestante: sente-se bem no meio das contradições.

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E assim continua o artigo, contradizendo-se de grand coeur a cada passo, e empurrando sinuosamente suas acusações, por entre ambíguos e floridos elogios. Mas cheguemos logo ao ponto central. É com ênfase, com satisfação, com a certeza do bom efeito que produzirá, que o deão lança esta enormidade: “a única objeção do Papado contra o nazismo, como ele já o demonstrou várias vezes, é o paganismo do mesmo, e sua perseguição contra a Igreja”. Se há afirmação concreta que corresponda idealmente ao conceito de ''mentira'' é esta! Basta folhear ainda que por alto todas as Encíclicas sociais dos Pontífices e especialmente a Mit Brennender Sorge, para se ver que ainda quando o nazismo desse à Igreja toda liberdade, a estrutura política e social por ele apregoada continuaria condenada pela Igreja. Qualquer calouro em estudos sociais sabe disto. O deão de Canterbury não se peja de afirmar claramente o contrário. Tem razão, lhe diria o velho Voltaire, “mentez, mentez, iI restera toujours quelque chose.

E vem agora outra mentira. Aludindo ao Pacto de Latrão, o deão afirma: “desde que o fascismo saiba dar ao Papa o que é do Papa, ele saberá dar ao fascismo o que é do fascismo, inclusive a liberdade de muitos milhões de indivíduos”. O deão ignora porventura que a concepção corporativa do fascismo foi condenada pela Igreja, não porque lesasse qualquer direito desta, mas porque, sendo contrária ao direito natural, tolhia a justa liberdade ''de muitos milhões de indivíduos''? Ignora o deão que as doutrinas de Gentile e Croce sobre o Estado, por totalitárias, estão condenadas pela Igreja? Não vê ele que a Igreja defendeu assim tudo quanto há de justo e nobre na palavra “liberdade” da qual ele, deão, e seus sequazes, costumam fazer um tão abominável abuso? E como dizer então que o Vaticano traficou com o direito natural, de que a Igreja é tutora? Onde está a boa fé? Quanto a Franco, o deão o apresenta como o homem da “Igreja Romana”, militar velhaco, cúmplice de Prelados velhacos, na obra de provocar uma guerra religiosa que conviria à diplomacia vaticana!

Ignora o “deão” que longe de ser um instrumento nas mãos da Igreja, Franco mantém relação tão tensas com o Vaticano que até agora não saiu a esperada concordata entre a Espanha e a Santa Sé, porque o “caudilho” não quer dar à Igreja sequer a liberdade que ela tem nos países em que a Igreja é separada do Estado? Não é isto notório? Não está isto no noticiário de todos os jornais?

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E assim vão prosseguindo as inverdades. Seria preciso escrever um livro para as refutar uma a uma. Vamos diretamente ao fim. Onde quer chegar o deão? Afirma ele no final de seu artigo que com o triunfo diplomático do Vaticano "não se sabe ainda o que ganharão as forças democráticas e revolucionárias do mundo", que encontrarão no Papado "um dos maiores obstáculos à sua expansão, como indica praticamente o bloco anti-soviético da Europa Central que a Igreja Romana procura constituir há mais de um ano".

Aí está a razão da ira! Não sabemos o que seja este "bloco anti-soviétivo". Mas o certo é que, ferrenhamente anti-nazista, a Igreja não é menos ferrenhamente anticomunista. Certamente, ela lucrará muito com a vitória dos aliados. Os católicos devem desejar tal vitória, e foi sempre neste sentido que se externou o “Legionário”. Nem por isto, entretanto, deixa de ser verdade que ela continuará a ser sempre um formidável obstáculo à expansão comunista. E é o que o deão não quer, não pode suportar.

   Eis a razão de toda a sua ira de "meneur" comunista "camuflado" de pastor de almas.