Legionário n.o. 582,  5/10/1943

Cinco mil Cruzeiros

Embora sempre de atalaia contra os múltiplos perigos que podem assaltar a Santa Igreja de Deus, não devemos permitir que o pessimismo nos domine. E isto tanto mais quanto, no meio de muitas razões para apreensão, se encontram incontestavelmente em nossos dias motivos de vivo júbilo. Como já temos dito, em meio da confusão contemporânea, a posição dos católicos deve ser de um perseverante e inalterável realismo. Vejamos as coisas como são, nem piores, nem melhores. Só assim poderemos desempenharmos inteiramente de nossas obrigações de apostolado.

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Ora, indiscutivelmente, um dos aspectos mais animadores da situação contemporânea está no fracasso completo da grande ofensiva ideológica tentada contra a Igreja no século passado, e nos três primeiros decênios deste século. O ateísmo, o materialismo, o ceticismo, estão em franca decadência. Há ainda ateus, cépticos, materialistas. Mas são soldados sem entusiasmo nem esperança, de uma causa que sentem morta, e da qual começam a se despreocupar. Nos altos círculos intelectuais, faria triste figura quem quisesse investir contra a Igreja com a maior parte dos argumentos lançados contra ela há alguns anos atrás, se não com sucesso científico, ao menos com o mais pleno sucesso de galerias. E, por isto, as produções ideológicas da incredulidade já não procuram ser o contrário da Igreja. Todo o seu esforço consiste em dar vida, dar consistência, dar irradiação, fora do âmbito da Igreja, a fragmentos isolados de verdades que a Igreja professa.

No fundo de todas as tendências mais modernas do pensamento contemporâneo, existe a afirmação vigorosa de uma ou algumas verdades que há anos atrás só a Igreja defendia; a tentativa de isolar esta verdade, transformá-la, construir sobre este fragmento da rocha desprendido do granito católico, um edifício completo. Não se combate mais a Igreja dizendo que ela é inteiramente errada, mas procurando arrancar-lhe e fazer viver fora dela algumas verdades que ela defende. Neste século de sucedâneos sintéticos de ersatz [substituição], a grande fórmula consiste em encontrar um ersatz filosófico ou quiçá teológico para o Catolicismo. A impiedade no século passado tinha como tese a Igreja caverna de trevas; a igreja impostora; a igreja tirana; a igreja semeadora de erros. A impiedade contemporânea é menos radical sem ser menos insolente. Ela vê a Igreja com olhos desdenhosos e cúpidos com que uma parisiense ou uma londrina destituída de jóias contemplaria lindos brilhantes engastados sem gosto nem graça, no pendentif de uma dama provinciana. Ela procura arrancar à Igreja alguns dos seus brilhantes, para se enfeitar com eles, achando que a impiedade dará a algumas verdades assim roubadas muito mais brilho e prestígio do que o Catolicismo.

Seja como for, caminhamos. É um passo grande, que vai da injúria soez à admiração cúpida e velada. Não sei se com isto o mundo ficou melhor. Mas, ao menos, podemos dizer que, se nossos inimigos não estão todos convertidos, estão todos confundidos. Ora, se a confusão revoltada é fonte de impiedade, a confusão penitente é caminho de emenda. Demos, pois, graças a Deus que glorificou mais uma vez sua Igreja. Dia virá em que se compreenderá que a impiedade não é para a Igreja senão uma caricatura, e que a Igreja, longe de ser a camponesa que o gosto depravado dos neo-pagãos de hoje por vezes procura ver na Igreja, ela é a “dama sem ruga nem mácula”, a “cidade de uma beleza perfeita, alegria do mundo inteiro”, de que nos falam as escrituras e a Sagrada Liturgia.

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Demos graças a Deus pelos dons que recebemos. Mas não nos esqueçamos de que um dos modos indispensáveis que temos de mostrar nossa gratidão consiste em defender contra terceiros os dons recebidos. A negligência nessa defesa seria um desprezo destes dons, e portanto, a mais flagrante ingratidão.

Ora, devemos reconhecer que, se no terreno da impiedade ideológica, que milita nas academias e universidades, o ersatz cultural do Catolicismo é o grande diploma do dia, nos meios jurídicos e políticos, o que se procura é um ersatz da civilização cristã. Em outros termos, algo com ares cristãos, feito de fragmentos doutrinários arrancados ao Catolicismo, sabiamente mesclados com princípios socialistas e pagãos, um autêntico campo de joio e de trigo, que agrade aos maus pelo joio e aos bons pelo trigo. Uma bandeira que arrasta atrás de si uma adiposa unanimidade de pessoas [...], colcha de retalhos na qual cada um possa reconhecer frangalhos de seu próprio estandarte, e onde a Cruz, a foice e o martelo, a suástica e o fascio, o sol levante e a lua crescente, o lema do livre exame protestante, ou o auto-governo cismático coexistam, sendo um pouco de tudo isto, e não sendo no fundo nada disto.

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E a manobra rende. Os filhos das trevas procuram calorosamente a amizade dos filhos da luz. E estes, por sua vez, atiram-se infelizmente em plenas trevas à busca dos filhos do erro.

Assim, o gesto diabolicamente sagaz do “camarada” Stalin recebendo em visita o “patriarca” cismático de Moscou começa a produzir seu fruto que é nos arraiais cismáticos uma franca subordinação de todos os títeres que, sob as vestes de patriarcas, arquimandritas, etc., o governo soviético instalou nas igrejas russas.

A coisa é triste, jornal genuína e radicalmente católico, o “Legionário” é o “inimigo número um” de tudo quanto signifique dissensão da unidade romana, fora da qual se está fora da Igreja. Entretanto, cumpre acentuar, que Roma sempre anelou com extraordinário afeto a reversão dos cismáticos ao grêmio da unidade, sob o infalível báculo de São Pedro. E, por isto, qualquer evolução ideológica que, aproximando-se do comunismo, os distancie ainda mais de nós, nos faz cruelmente sofrer. Sobretudo porque, nesta diabólica manobra, o comunismo vai tragar ardilosamente a solidariedade dos elementos “russos brancos”, espalhados pelo mundo inteiro.

E a manobra já vai tão longe, que até em São Paulo produz seus efeitos. O “Diário da Noite”, com o alarde que dá a tudo quanto é mau, publicou há dias a fotografia de um cismático, o presbítero Dmitri Taktachenko, incitando todos os cismáticos russos do Brasil a se unirem ao títere moscovita que é um certo “patriarca” Sérgio, incitando-os ao mesmo tempo a abandonar a obediência de um “concílio de Karlovatz”, que acusa, com ou sem fundamento, de nazista! Pobre igreja russa, rebelde ao báculo do Vigário de Cristo, joguete hoje do comunismo e do nazismo!

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E em São Paulo não foi só entre os círculos cismáticos que a notícia teve repercussão. Os jornais deram a notícia, que profundamente lamentamos, de que os retratos de Timochenko e Stalin foram postos em leilão em certa quermesse, onde um dos retratos chegou a alcançar preço superior a 5 mil cruzeiros! Em terra cristã, 5 mil cruzeiros para o retrato de um comunista! E isto enquanto há tanta pobreza em torno de nós!

Mas, dirá alguém, os comunistas são aí considerados apenas como estadistas e técnicos militares. Não se atende a suas doutrinas, atende-se a suas obras. O raciocínio é especioso. O que predomina em um homem são suas idéias. Ele não vale tanto pelo que faz, (e que não vem a propósito discutir aqui) quanto pelo ideal ao serviço do qual ele constrói... ou destrói. Por suas idéias, Stalin e Timochenko são inimigos figadais da doutrina de Nosso Senhor Jesus Cristo. Fizessem eles maravilhas, que continuariam a ser para nós antes de tudo os inimigos da Igreja de Cristo.

Ora, assim como nenhum de nós daria cinco mil cruzeiros pelo retrato de um inimigo mortal de seu próprio pai, ainda que fosse o maior homem da terra, ninguém poderia dar cinco mil cruzeiros em terras brasileiras e cristãs pelo retrato de um Stalin ou de um Timochenko, inimigos capitais da Igreja, que é nossa mãe. O raciocínio é simples. Mas em sã lógica católica não há outro meio de raciocinar.