Em
um dos maiores matutinos desta capital, ilustre e conhecido jornalista acaba de
lançar ao Clero um premente apelo de coadjuvação com outras classes sociais na
tarefa de orientar o Brasil através das peripécias a que inevitavelmente nos
arrastarão as transformações culturais e sociais da post-guerra.
Ninguém deseja mais ardentemente esta colaboração do que o clero. Sua atitude é
de permanente benevolência para com todos os esforços realmente bem intencionados,
se bem que sua experiência já vinte vezes secular lhe ensine que os lobos
falaciosos por vezes se vestem de cordeiros. Esta invariável benevolência é,
por assim dizer, orgânica na Igreja Católica. Diz Santo Agostinho que Nosso
Senhor Jesus Cristo instituiu a Igreja para a salvação eterna das almas, mas a
fez tal, dotou-a de uma tão inextinguível pujança e capacidade de promover o
bem-estar terreno, que, se ela tivesse sido fundada para tornar grandes e
felizes os povos, não poderia ser, nem mais útil, nem mais fecunda. Ora, se é
próprio da Igreja projetar sobre a ordem temporal uma influência tão
soberanamente benéfica e eficaz, ela deve considerar suas cooperadoras
natas todas as instituições que naturalmente se ordenem para o mesmo fim.
Assim, a Igreja está perpetuamente aberta a todas as cooperações, e se estas
não existem, ou é isto porque as potências temporais desdenharam a mão que a
Igreja lhes estendia, ou porque lhe ofereceram, sob a especiosa aparência de
cooperação, alvitres e soluções que custariam ao Catolicismo um preço que ele
jamais pagará neste mundo: uma transigência, ainda que mínima, com seus
intangíveis princípios, ou com sua missão sobrenatural.
Católicos,
é com prazer, pois, que vemos proclamar-se mais uma vez, de público, a
necessidade de uma cooperação das forças vivas da nacionalidade com o nosso
Clero, para o bem do Brasil.
* * *
Nem
por isto, entretanto, podemos deixar sem reparos algumas das considerações
feitas sobre o assunto pelo jornalista a que aludimos. Começa ele por fazer
ressaltar a importância da cooperação do Clero. Tem toda a razão. Entretanto,
não tem razão nenhuma no que diz respeito ao Clero estrangeiro.
Transcrevemos
o tópico em que ele se refere aos sacerdotes provenientes de outros países, que
aqui exercem seu ministério: “Somos visceralmente brasileiros. Não carecemos,
aliás, de fazer profissão de fé nacionalista. Nestes quase quarenta anos de
atividade jornalística deixamos e vamos deixando farta documentação do espírito
que nos anima, e que sempre nos animou. As nossas palavras, pois, não devem ser
agora consideradas como uma restrição ao exercício do sacerdócio por elementos
que, embora enquadrados no Clero nacional, procedem de outras plagas. Ao
púlpito e ao confessionário, deveriam ser admitidos, no nosso entender,
exclusivamente sacerdotes brasileiros, inteligentes e cultos. Sem inteligência
clara e lúcida, sem cultura e sem o fácil domínio do vernáculo, não poderá
haver sermão ou conselho capaz de exercer influência no espírito daqueles que
procuram o padre para juiz e orientador. Que autoridade poderá ter um pregador,
quando fala em patriotismo, em ordem, em disciplina e no culto à família num
linguajar andrajoso que com tudo se poderá parecer, menos com o nosso idioma?”
Evidentemente,
estas linhas não podem passar sem algumas observações de nossa parte. E isto
não só pela impressão que possam causar como, sobretudo, porque elas exprimem
um pensamento que cada vez se vem externando com maior freqüência entre nós.
* * *
Lembremos
antes de tudo que segundo as intenções da Igreja o clero deve ser, normalmente,
recrutado em cada país entre os próprios filhos do lugar. São por demais
evidentes as razões desta disposição. Lembremos, simplesmente, que um sacerdote
pertencente ao próprio povo que evangeliza, lhe conhece melhor do que ninguém
os defeitos e as qualidades, as cordas sensíveis do coração e os pontos de
resistência habitualmente mais renitentes à ação da graça, os costumes e as
tradições, os hábitos e as convenções sociais, tudo aquilo enfim que se deve
tomar em consideração para falar com eloquência e força persuasiva às massas e
aos indivíduos. Tão longe vai a Igreja neste afã, que até nos países
missionários, onde a hierarquia eclesiástica ainda não está organizada, o
esforço da Santa Sé para recrutar entre os naturais do lugar os padres e os
bispos é verdadeiramente insano. E a Santa Sé impõe aos missionários
estrangeiros que estudem o melhor possível o idioma do país em que estão.
Pensamos que nesta questão de clero indígena, o pontificado de Pio XI se
assinalou de modo especialmente glorioso. E, certamente, o atual pontífice,
logo que a agrura das circunstâncias presentes cessar, seguirá a orientação de
seu antecessor.
Aliás,
não seria supérfluo acrescentar que a carência de vocações nacionais representa,
para qualquer povo, uma espécie de déficit espiritual que por sua vez denuncia
um alarmante relaxamento do fervor religioso nas massas. O espírito católico é
genuíno na medida em que os fiéis admirarem e respeitarem o sacerdócio,
estimarem e ouvirem os sacerdotes. E quando, em um povo, se tornam menos densas
as fileiras dos que, nos dias de ordenação, se apresentam diante dos altares
para receber a honra inestimável do sacerdócio, pode-se ter certeza de que
alguma crise profunda mina toda a mentalidade religiosa do país. A abundância
de bons sacerdotes é e será sempre, em assuntos espirituais, padrão
indiscutível de terra boa.
Como
se vê, por todos os motivos deve a Igreja estimular e apoiar a formação do
maior número dos sacerdotes nacionais.
* * *
Tudo
isto posto, imagine-se a desolação e a angústia da Hierarquia Católica no
Brasil quando, por volta do fim do século XIX, verificou que as vocações
decaiam inexoravelmente, que o número dos sacerdotes falecidos superavam o dos
novos levitas, e que, ano a ano, a morte deixava nas fileiras do Clero lacunas
que não podiam ser mais preenchidas. As ordens religiosas estavam quase
extintas por força de uma legislação pombalina e draconiana. A formação dos
sacerdotes seculares nos seminários fora embaraçada pelos mais variados
tropeços. A tibieza se apoderara da massa dos fiéis. E, nas cumeadas da
organização social, os letrados e os elegantes liam Comte
e seus congêneres, e proclamavam a quatro ventos a morte iminente da Igreja
Católica.
Urgia
remediar a tão catastrófica situação. E, entretanto, ela parecia não ter
remédio. O número dos sacerdotes decaia porque o povo emergia na tibieza e as
elites na incredulidade. E, como decaía o número dos sacerdotes, tornava-se
cada vez mais difícil desenvolver uma ação capaz de remediar o mal.
Começou,
então, a se generalizar em todas as Dioceses o costume de convidar sacerdotes
estrangeiros, regulares e seculares, que aqui viessem coadjuvar o clero
nacional, multiplicando com seus labores a efusão das graças sobrenaturais de
que o ministro de Jesus Cristo é sempre portador.
* * *
Fez
bem ou fez mal a Hierarquia? A se ouvir as reflexões de nosso articulista, ela
teria pelo menos andado com precipitação.
Entretanto,
precisamente no momento em que os nossos bispos abriam os braços ao clero
estrangeiro, nossos governos também abriam os nossos portos, com largueza maior
do que nunca à imigração. Em inúmeras de nossas grandes cidades, ou de regiões
de nosso sertão, os imigrantes dentro em pouco se fundiram com todas as camadas
da população, e, por seu esforço, sua energia, sua economia, dentro em breve
conquistaram entre nós invejáveis situações. Quantos deles conhecemos que
rapidamente misturaram o português à sua língua de origem, falando em idioma
misto com que toda a propriedade poderia ser chamado "linguajar
andrajoso"? Nas fábricas, com os companheiros; na direção das indústrias,
com os sócios; na vida social de todas as camadas, ricas ou pobres, esses
elementos levavam consigo seu "linguajar andrajoso", concorrendo não pouco
para por em circulação entre nós barbarismos de toda
ordem, e, até mesclando algumas de nossas tradições com costumes alienígenas.
Entretanto, ninguém se alarmou com o fato que tanta vantagem econômica nos
trouxe. Creio, por exemplo, que mesmo nestes dias de guerra, noventa por cento
dos brasileiros, para não dizer 100% dos brasileiros, bendizem a imigração
italiana. Por que? Porque todos tivemos o bom senso de não nos abespinhar com
os pequenos fatos que narramos, superados largamente pelas imensas vantagens
que tal imigração nos trouxe como meio insubstituível de dar pleno e urgente
aproveitamento às riquezas do país. E, hoje em dia, esses filhos de
estrangeiros, brasileiros dos mais genuínos vivem como em família entre nós,
amantes de nossas tradições, zeloso da glória de nossa pátria, briosos no seu
civismo brasileiro, formados por quem? Por esse mesmo país de linguagem
andrajosa que, a despeito da insuficiência de sua gramática, não tinham fechado
nem seu espírito nem seu coração à doce influência da terra brasileira.
* * *
Foi
essa geração de imigrantes de "linguagem andrajosa" que preparou e
educou no patriotismo brasileiro esta legião de brasileiros filhos de
estrangeiros, que aqui vive. A "linguagem andrajosa" não prejudicou,
nem seu patriotismo, nem sua plena identificação com o Brasil. Mesmo em
"linguagem andrajosa" foi possível a esses imigrantes, em geral
rústicos, formar admiravelmente o nacionalismo brasileiro de seus filhos. Não
vemos, pois, porque há de concluir nosso articulista com estas palavras:
"Que autoridade poderá ter um pregador, quando fala em patriotismo,
em ordem, em disciplina, e no culto à família num linguajar andrajoso?"
Pelo menos a autoridade dos pais imigrantes que souberam fazer de seus filhos
bons brasileiros.
E
se os conselhos de um pai ou de uma mãe estrangeira puderam calar tão fundo,
como não se admitir a mesma eficácia na palavra do sacerdote? Como sobretudo
desconfiar desta eficácia a ponto de procurar até excluir do confessionário o
sacerdote estrangeiro, sob pretexto de que, falando o mau português, nenhuma
autoridade poderá ter sobre seus penitentes?
* * *
Mas...
e a "quinta coluna?" Não admitirá o “Legionário” nem sequer em
tese, que haja sacerdotes traidores, já que o próprio Judas Iscariotes
foi traidor? Não seria possível afastar do ministério sagrado os sacerdotes de
nações beligerantes, ao menos durante a guerra? Nosso articulista é por demais
inteligente e culto para ter sequer insinuado semelhante argumento. Mas há quem
já o tenha manejado. Não será portanto supérfluo que o enfrentemos.
Em
tese, evidentemente, é possível que um sacerdote seja traidor. Certamente,
porém, é nas fileiras do clero que a traição sempre será mais rara. O fato
entra pelos olhos. A ação conjunta das autoridades eclesiásticas e civis –
aquelas também ciosas no mais alto grau da grandeza do país – bastará
plenamente para nos resguardar de qualquer remoto perigo existente neste ponto.
É o que lembrou, em documento ainda recente, nosso saudoso Cardeal Dom Leme.
Mas,
já que se trata de “quinta coluna”, ouçam nossos leitores uma verdade
importante. Em todos os lugares em que ela se organizou, a quinta coluna não se compôs tanto de estrangeiros,
como ainda e sobretudo de nacionais perdidos pela crapulice,
pelas ambições e pelo desregramento da vida. Não foi aos pés de sacerdotes
estrangeiros, que em nenhum país do mundo a quinta coluna se recrutou, mas
entre os que freqüentam maus ambientes, fazem más leituras, e se entregam à
impiedade e à impureza. O melhor combate à possibilidade de uma quinta coluna
se faria atraindo para junto dos sacerdotes nacionais ou estrangeiros as
pessoas que as más diversões e as más leituras corrompem, e não deixando vazios
os púlpitos e confessionários em que os sacerdotes estrangeiros pregam o reino
de Cristo e abandonando sem pastor e sem assistência espiritual milhares e
milhares de almas de que o vício faria ulteriormente suas presas.
É
assim que a quinta coluna se combate...
* * *
Estes
os fatos. Cumpre agora relembrar os princípios. A Igreja não poder
aceitar jamais a tese de que um sacerdote que não fale convenientemente o
idioma nacional não possa exercer com fruto seu ministério. Como vimos, mais do
que ninguém deseja ela o clero nacional.
Mais
do que ninguém, entretanto, deve ela condenar o exclusivismo nacionalista em
matéria de ministério eclesiástico. A fecundidade do ministério sacerdotal é
sobrenatural. O sacerdote estrangeiro deve procurar conhecer - na medida de
suas forças - nosso idioma. Mas Nosso Senhor, que mandou aos Apóstolos pregarem
a todos os povos, consagrou por isto mesmo o princípio de que, sendo universal
a Igreja de Deus, nenhuma potência temporal poderia impedir ao ministro do
Senhor pregar a boa nova de Jesus Cristo nos países em que o clero local fosse
insuficiente ou totalmente inexistente. E, deste princípio, a Santa Igreja
jamais abrirá mão.
* * *
São numerosos aqui os sacerdotes
estrangeiros. Renunciando por vezes a vantagens e comodidades de toda ordem,
para cá vieram a fim de conservar e desenvolver no Brasil o dom inestimável
da Fé. Nas Casas das Ordens ou Congregações Religiosas que pertencem, começam a
florescer desde há vários anos as vocações nacionais que eles estimularam e
ampararam com sacrifícios que só Deus conhece. Nas matrizes, santuários, e
colégios que dirigem, são o centro da afeição geral. No púlpito pregam a
palavra universal e eterna de Jesus Cristo, muitas e muitas vezes em um
português perfeito, que não raramente alguns doutores recém-diplomados
não conhecem: outras vezes com um acento estrangeiro e com incorreções
gramaticais que denunciam a dificuldade e o esforço hercúleo com que se adaptam
a uma língua tão diferente da sua. E, entretanto, as igrejas se enchem para os
ouvir. Os confessionários em que estão são tão freqüentados como outros
quaisquer. Por que? Senão porque nosso povo vê, sabe e sente que eles tem uma
autoridade sobrenatural e moral que lhes vem do sacerdócio e de suas virtudes.
E que por isto‚ com o máximo proveito que ouve suas palavras e lhes franqueia o
segredo de seus corações?
O
articulista cujo trabalho analisamos timbra em se afirmar católico. Por isto
mesmo suas considerações indicam uma situação singular. É preciso que ao menos
entre os filhos da Igreja se torne opinião incontroversa o que em sã doutrina
católica é absolutamente incontroversível; o
sacerdote estrangeiro‚ um verdadeiro benemérito porque auxilia de modo
inestimável o clero nacional. O problema não consiste em o proscrever do
púlpito e do confessionário - o que, seja dito de passagem, só e só a
Hierarquia caberia fazer - mas em lhe abrir, para o bem e glória da
Igreja e do Brasil, novos campos de ação em nossa pátria e novos tesouros de
reconhecimento em nosso coração.