Não podemos encerrar nossas considerações sobre o
que diz com referência ao jogo a recente Carta Pastoral, sem analisar toda a
extensão dos princípios ali estabelecidos.
De modo direto e imediato, a voz de nossos Bispos
se ergueu para estigmatizar principalmente as faustosas casas de jogo que, com
tantos inconvenientes para a moralidade pública, se transformaram em
verdadeiras trincheiras de onde diariamente se ataca a instituição da família.
Isto, não obstante, os princípios enunciados pela Pastoral abrangem
indistintamente todos os jogos de azar, e, por isto, se aplicam também àqueles
que se fazem fora do ambiente dos cassinos. Estão neste caso as grandes
especulações de bolsa, tão do agrado de muitos businessman contemporâneos. Não
podemos deixar de, sobre eles, dizer também algumas palavras. Fazendo-o, limitar-nos-emos a aplicar os princípios enunciados por
nosso Episcopado.
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Ensina a doutrina católica que a profissão de
comerciante é não só perfeitamente lícita, mas verdadeiramente indispensável ao
desenvolvimento dos povos, desde que entendida conforme sua razão natural de
ser. O comerciante é um intermediário.
Intermediário operoso, diligente, indispensável; intermediário que por isso
mesmo faz jus
ao louvor geral e a lucros condignos; mas a função essencial do comércio consiste
em transferir a mercadoria do produtor ao consumidor, e, por isto, é
essencialmente uma função intermediária.
Ora, na estrutura econômica geral de um povo, como
em qualquer outro organismo, non sunt multiplicanda entia sine necessitate,
isto é, não se devem multiplicar ou desdobrar os órgãos sem necessidade. Assim,
qualquer organização comercial sadia deverá transmitir a mercadoria do produtor
ao consumidor pelo processo mais simples, evitando cuidadosamente o número
excessivo dos intermediários. Seria ingenuidade imaginar-se que, em uma
civilização de economia tão imensamente complexa quanto a nossa, a mercadoria
pudesse passar sempre, na sua trajetória do produtor ao consumidor, por um só
intermediário. Evidentemente, o número de intermediários variará
indefinidamente, conforme as exigências próprias a cada ramo de comércio. Tudo
isto não obstante, o princípio continua inalterado: quanto menor for o número
de intermediários, tanto melhor será a organização comercial de um país.
Seria impossível resumir em poucas linhas todos os
inconvenientes que um número supérfluo de intermediários pode acarretar. Os
dois mais salientes, que desde logo acodem a qualquer observador, consistem em
que de um lado o preço da mercadoria sobe sem proveito real para a coletividade
e, do outro lado, energias e talentos que poderiam ser aplicados em outro campo
se consomem, assim, em esforços inteiramente estéreis.
Por isto, a mercadoria há de circular pela mão dos
intermediários obedecendo ao princípio invariável de que, para ela, o único
curso normal consiste em chegar, o mais depressa e o mais economicamente
possível, às mãos do consumidor.
* * *
Compreende-se, pois, que toda a máquina econômica
de um país fica profundamente viciada em sua estrutura, pelo trabalho habitual
de intermediários supérfluos. Infelizmente, esse mal se tornou crônico na
economia moderna. E a fonte do mal está, principalmente, na especulação.
Nos grandes centros comerciais, tornam-se cada vez
mais numerosos os intermediários que não tem a menor intenção real de
encaminhar a mercadoria ao consumidor. Intermediários de intermediários,
limitam-se eles a adquirir pela manhã um artigo, revendendo-o à tarde a outro
intermediário, e apurando com isto alguma diferença de preço. Negociam com
sacos de café, de milho, de trigo; com cabeças de gado ou partidas de algodão;
com metas ou títulos de sociedades anônimas; e, em tudo isto, não prestam ao
comércio o menor serviço real. Limitam-se a viver das diferenças apuradas nas
operações de bolsa.
Este mal, já bem grave de per si, assume proporções
gigantescas, dadas as facilidades de comunicação modernas. A especulação inútil
já não se limita a uma praça ou a um mercado, mas estende seus tentáculos pelo
mundo inteiro. Compra-se na China, vende-se por telegrama oito ou dez horas
depois em Nova York, e, com o lucro apurado na transação, compra-se em São
Paulo ou no Rio Grande do Sul, para vender pouco depois em Buenos Aires ou Genebra. Assim, é toda a
economia mundial que sofre com a ação perfeitamente estéril de intermediários
inúteis.
Mais ainda. Muitas vezes, o intermediário chega a
intervir intencionalmente nas operações, força artificialmente a alta ou a
baixa de certos produtos, reduz à miséria regiões inteiras, ou põe outras em
delírio pela vertigem de uma prosperidade efêmera, tudo a fim de obter um lucro
na diferença de preços.
A jogatina dos cassinos arruina particulares. A
jogatina da bolsa pode arruinar zonas inteiras, votar à decadência industriais
prospérrimos, anarquizar a economia de toda uma região, e, assim, transformar
em paradas de jogo os interesses de famílias sem conta, não apenas em uma, mas
em inúmeras gerações.
* * *
Acrescente-se a tudo isto que a jogatina comercial,
se por vezes dá origem a fortunas fabulosas, por vezes também atrai para os
azares e as seduções das grandes aventuras comerciais pessoas de vida econômica
perfeitamente organizada, e, ali, as reduz à mesma miséria a que a roleta expõe
comumente o jogador. Da noite para o dia, uma fortuna
imensa poderá estar desfeita, atirada à desgraça uma família, arruinado um lar,
simplesmente porque seu chefe, alucinado pela perspectiva de ganhos fabulosos,
não quis contar, em seus cálculos, com a precariedade de todas as operações de
bolsa.
Evidentemente não é nosso propósito criar conflitos
de consciência. Postas as atuais condições econômicas do mundo, a Igreja não
condena aqueles que, sem usar meios fraudulentos nem prejudicar direitos
alheios, apurem lucros na alta ou baixa dos produtos comerciais. Entretanto,
não deixa de ser certo que os males decorrentes dessa situação são sem conta,
incomensuravelmente mais graves que a dos cassinos, e incidem na mesma
reprovação que a Pastoral Coletiva, em boa hora, atirou sobre a jogatina dos
faustosos palácios que, um pouco por toda a parte se vão construindo e se
construiriam em número ainda maior, não fosse a salutar providência de nossos
Bispos.