Legionário, N.º 542, 27 de dezembro de 1942

AINDA O JOGO

Não podemos encerrar nossas considerações sobre o que diz com referência ao jogo a recente Carta Pastoral, sem analisar toda a extensão dos princípios ali estabelecidos.

De modo direto e imediato, a voz de nossos Bispos se ergueu para estigmatizar principalmente as faustosas casas de jogo que, com tantos inconvenientes para a moralidade pública, se transformaram em verdadeiras trincheiras de onde diariamente se ataca a instituição da família. Isto, não obstante, os princípios enunciados pela Pastoral abrangem indistintamente todos os jogos de azar, e, por isto, se aplicam também àqueles que se fazem fora do ambiente dos cassinos. Estão neste caso as grandes especulações de bolsa, tão do agrado de muitos businessman contemporâneos. Não podemos deixar de, sobre eles, dizer também algumas palavras. Fazendo-o, limitar-nos-emos a aplicar os princípios enunciados por nosso Episcopado.

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Ensina a doutrina católica que a profissão de comerciante é não só perfeitamente lícita, mas verdadeiramente indispensável ao desenvolvimento dos povos, desde que entendida conforme sua razão natural de ser. O comerciante é um intermediário. Intermediário operoso, diligente, indispensável; intermediário que por isso mesmo faz  jus ao louvor geral e a lucros condignos; mas a função essencial do comércio consiste em transferir a mercadoria do produtor ao consumidor, e, por isto, é essencialmente uma função intermediária.

Ora, na estrutura econômica geral de um povo, como em qualquer outro organismo, non sunt multiplicanda entia sine necessitate, isto é, não se devem multiplicar ou desdobrar os órgãos sem necessidade. Assim, qualquer organização comercial sadia deverá transmitir a mercadoria do produtor ao consumidor pelo processo mais simples, evitando cuidadosamente o número excessivo dos intermediários. Seria ingenuidade imaginar-se que, em uma civilização de economia tão imensamente complexa quanto a nossa, a mercadoria pudesse passar sempre, na sua trajetória do produtor ao consumidor, por um só intermediário. Evidentemente, o número de intermediários variará indefinidamente, conforme as exigências próprias a cada ramo de comércio. Tudo isto não obstante, o princípio continua inalterado: quanto menor for o número de intermediários, tanto melhor será a organização comercial de um país.

Seria impossível resumir em poucas linhas todos os inconvenientes que um número supérfluo de intermediários pode acarretar. Os dois mais salientes, que desde logo acodem a qualquer observador, consistem em que de um lado o preço da mercadoria sobe sem proveito real para a coletividade e, do outro lado, energias e talentos que poderiam ser aplicados em outro campo se consomem, assim, em esforços inteiramente estéreis.

Por isto, a mercadoria há de circular pela mão dos intermediários obedecendo ao princípio invariável de que, para ela, o único curso normal consiste em chegar, o mais depressa e o mais economicamente possível, às mãos do consumidor.

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Compreende-se, pois, que toda a máquina econômica de um país fica profundamente viciada em sua estrutura, pelo trabalho habitual de intermediários supérfluos. Infelizmente, esse mal se tornou crônico na economia moderna. E a fonte do mal está, principalmente, na especulação.

Nos grandes centros comerciais, tornam-se cada vez mais numerosos os intermediários que não tem a menor intenção real de encaminhar a mercadoria ao consumidor. Intermediários de intermediários, limitam-se eles a adquirir pela manhã um artigo, revendendo-o à tarde a outro intermediário, e apurando com isto alguma diferença de preço. Negociam com sacos de café, de milho, de trigo; com cabeças de gado ou partidas de algodão; com metas ou títulos de sociedades anônimas; e, em tudo isto, não prestam ao comércio o menor serviço real. Limitam-se a viver das diferenças apuradas nas operações de bolsa.

Este mal, já bem grave de per si, assume proporções gigantescas, dadas as facilidades de comunicação modernas. A especulação inútil já não se limita a uma praça ou a um mercado, mas estende seus tentáculos pelo mundo inteiro. Compra-se na China, vende-se por telegrama oito ou dez horas depois em Nova York, e, com o lucro apurado na transação, compra-se em São Paulo ou no Rio Grande do Sul, para vender pouco depois em  Buenos Aires ou Genebra. Assim, é toda a economia mundial que sofre com a ação perfeitamente estéril de intermediários inúteis.

Mais ainda. Muitas vezes, o intermediário chega a intervir intencionalmente nas operações, força artificialmente a alta ou a baixa de certos produtos, reduz à miséria regiões inteiras, ou põe outras em delírio pela vertigem de uma prosperidade efêmera, tudo a fim de obter um lucro na diferença de preços.

A jogatina dos cassinos arruina particulares. A jogatina da bolsa pode arruinar zonas inteiras, votar à decadência industriais prospérrimos, anarquizar a economia de toda uma região, e, assim, transformar em paradas de jogo os interesses de famílias sem conta, não apenas em uma, mas em inúmeras gerações.

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Acrescente-se a tudo isto que a jogatina comercial, se por vezes dá origem a fortunas fabulosas, por vezes também atrai para os azares e as seduções das grandes aventuras comerciais pessoas de vida econômica perfeitamente organizada, e, ali, as reduz à mesma miséria a que a roleta expõe comumente o jogador. Da noite para o dia, uma fortuna imensa poderá estar desfeita, atirada à desgraça uma família, arruinado um lar, simplesmente porque seu chefe, alucinado pela perspectiva de ganhos fabulosos, não quis contar, em seus cálculos, com a precariedade de todas as operações de bolsa.

Evidentemente não é nosso propósito criar conflitos de consciência. Postas as atuais condições econômicas do mundo, a Igreja não condena aqueles que, sem usar meios fraudulentos nem prejudicar direitos alheios, apurem lucros na alta ou baixa dos produtos comerciais. Entretanto, não deixa de ser certo que os males decorrentes dessa situação são sem conta, incomensuravelmente mais graves que a dos cassinos, e incidem na mesma reprovação que a Pastoral Coletiva, em boa hora, atirou sobre a jogatina dos faustosos palácios que, um pouco por toda a parte se vão construindo e se construiriam em número ainda maior, não fosse a salutar providência de nossos Bispos.