Legionário, N.º 541, 20 de dezembro de 1942

A PASTORAL 

A opinião pública paulista tomou conhecimento, com verdadeira admiração da magnífica Pastoral com que os Ex.mos Rev.mos Srs. Bispos desta Província Eclesiástica brindaram, mais uma vez, seus diocesanos. Desde que ascendeu ao Sólio Arquiepiscopal de São Paulo, o Ex.mo e Rev.mo Sr. D. José Gaspar de Afonseca e Silva tem promovido reuniões periódicas de seus sufragâneos, depois das quais dá publicidade a magníficos documentos, notáveis tanto pela fidalga beleza do estilo quanto pela atualidade dos assuntos tratados, a importância dos conceitos que contém. Está, entretanto, no consenso unânime que a última Pastoral constitui, nesta brilhante série, uma nota culminante cuja sonoridade límpida e forte transporá inevitavelmente as fronteiras do Estado, e ecoará em todo o Brasil.

Pode-se, pois, imaginar o júbilo com que a imprensa católica se dispõe a analisar a carta Pastoral. É para o cumprimento desse gratíssimo se bem que árduo dever, que me disponho a coordenar nestas colunas algumas reflexões.

É árduo dever, com efeito, fazer acerca da última Carta Pastoral qualquer comentário. Seu estilo - no qual se reconhecem sem esforço as qualidades literárias realmente excepcionas de nosso Arcebispo - é de tal maneira claro e por assim dizer didático, que dispensa comentários explicativos. A argumentação que ela contém é sempre apresentada de modo tão acessível, que está ao alcance de qualquer leitor. Por outro lado, é tão completa que não requer acréscimos ou desenvolvimentos. Sua linguagem é tão franca que não dá lugar a conjecturas sutis ou a pesquisa maliciosa de subentendidos mais ou menos velados. Bem se vê que a margem deixada pelo insigne documento à ação dos gozadores é mínima. O melhor que teríamos a fazer consistiria, certamente, em recomendar insistentemente a todos que fizessem o que também fizemos: ler, apreciar e aplaudir.

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Dificilmente se poderia aquilatar todo o alcance dos horizontes que a Pastoral coletiva abriu, tratando ex-professo da questão do jogo. O surto extraordinário que entre nós tem tido os grandes cassinos revela um fenômeno psicológico e moral ao qual não poderia estar alheia a atenção de nossos Bispos. Para nos certificarmos disto, bastará que coordenemos sobre o assunto algumas rápidas idéias.

O estado de espírito de qualquer pessoa que se acerque de certas mesas de jogos, de uma banca de roleta por exemplo, é muito claro. Todo o prazer do jogador resulta de expectativa de um lucro fácil e relativamente vultuoso, e a capacidade de absorção da roleta depende, essencialmente, da tensão psicológica determinada no jogador pela dupla perspectiva de lucros a realizar ou de prejuízos a sofrer. Quer seja grande, quer pequena a quantia jogada, é nesta excitação dos nervos, ao mesmo tempo deleitosa e cruel, que consiste em essência todo o prazer do jogador.

É fácil compreender que é inerente a esse estado de espírito a tendência de se agravar paulatinamente. Se é agradável a expectativa de lucros módicos, é deliciosa a de lucros grandes. Se produz uma sensação picante de aventura a apreensão de pequenos riscos, a volúpia dos grandes perigos ainda é muito maior. E assim, em muitos e muitos casos, o gosto pelo jogo determina facilmente uma tendência para que o jogador se empenhe cada vez mais a fundo. Se são em número não pequenos os temperamentos suficientemente equilibrados para não se deixarem levar nesta voragem, seria por outro lado fastidioso recapitular aqui tudo quanto se sabe acerca das ruínas que a paixão do jogo, acesa em muitos corações até o delírio, pode determinar. A este respeito têm tão poucas ilusões os organizadores das grandes casas de jogo, que no Principado de Mônaco os empresários do tristemente famoso Cassino de Monte Carlo adotaram uma orientação significativa: já há toda uma organização destinada a se pôr ao alcance dos jogadores que perdem grandes fortunas a fim de lhes oferecer as passagens de volta, para que as tragédias das grandes catástrofes se liquidem longe de suas vistas. E, para o caso em que tal organização tenha falhado, existe ali uma ponte muito conhecida da qual podem despencar-se cômoda e discretamente os miseráveis que entregaram sua fortuna aos “banqueiros” da roleta e quiçá sua alma ao demônio. Graças a Deus nossa “organização” de jogo ainda não chegou a esta “perfeição”. Entretanto se fôssemos fazer as estatísticas das ruínas, das lágrimas e até de sangue que os grandes Cassinos acumulam e multiplicam fora dos salões brilhantes onde a jogatina impera, estamos certos de que os resultados surpreenderiam até os pessimistas...

Ademais, quem poderia afirmar que este ou  aquele jogador, que durante anos borboleteou de modo mais ou menos inofensivo em torno das bancas dos cassinos, está vacinado contra a vertigem do jogo que ali domina? O desejo de se obstinar em vencer o que supersticiosamente se chama “azar” entre os jogadores; o gosto de exibir perante os conhecidos e amigos uma largueza extraordinária em suas “paradas”; o prazer infantil de adquirir nos salões de jogo alguma notoriedade pela importância de certos lances, tudo isto constitui uma série de fraquezas a que qualquer homem está exposto. E, dado este primeiro passo, quem poderá governar as reações emocionantes imprevistas que dele podem decorrer? No excesso psicológico deste ou daquele burguês aparentemente inseparável dos pequenos hábitos tranqüilos de sua vida ordeira e metódica, há muitas vezes um jogador desenfreado que dorme. Sabem-no de modo perfeito os “banqueiros” do jogo. E, por isto, servindo-se de toda a organização de aliciamento a que a Pastoral tão sabiamente alude, lançam as malhas sobre todos, indistintamente. É que, se muitos ingênuos pensam estar “vacinados”, eles, os “banqueiros”, sabem exatamente do contrário, e tem todos os motivos para esperar que a má semente de seus prosélitos vá brotar com espantoso viço onde talvez menos se pudesse esperar.

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Por tudo isto, se vê que o jogo vive da exploração de um verdadeiro desequilíbrio psicológico, que ele aguça e desenvolve indefinidamente. Seria ainda oportuno demonstrar que ele encontra terreno fértil para a semeadura de suas tentações, em todas as grandes chagas sociais.

Com efeito, das centenas de pessoas que se aproximam das “bancas” de jogo, muitas vão atraídas pelo desejo de realizar comodamente lucros imensos que lhe proporcionará a realização de sonhos que não esperavam ver realizados pelo fruto de seu trabalho honesto. O democratismo exagerado de nossa mentalidade moderna abriu as comportas de todas as ambições, e excitou ao extremo, em todas as classes sociais, o desejo de se alçarem aos fastígios do luxo e da opulência. Por outro lado, o sensualismo contemporâneo inspirou em inúmeros corações verdadeiro horror ao trabalho. Para o indivíduo moralmente deformado, que sonha com milhões e não quer se dar ao trabalho de ganhar sequer um tostão, o único caminho é o jogo. A paixão do jogo nasce, aí, da conjunção de duas outras paixões péssimas. Esse jogador se agarra a todas as superstições possíveis, a fim de ver se com a proteção de forças invisíveis e misteriosas logra finalmente a fortuna que lhe foge diariamente dos dedos. Passa a ser um homem mais supersticioso do que muito selvagem dos sertões da África. E não tardará muito que procure no arrombamento de alguma burra aquilo que os amuletos e as fichas da roleta não lhe sonharam dar...

Não é outra a atitude da esposa e da mãe de família que arrisca na roleta as parcas economias do marido a fim de ver se obtém o indispensável para pagar um luxo que a agrura da vida moderna não lhe permite obter normalmente. Não é outra a atitude do marido desalentado, que procura no jogo um meio de saciar a ganância de uma esposa que, velada ou explicitamente, pôs a prêmio sua fidelidade aos compromissos nupciais. Não é outra a atitude do profissional fracassado, que procura no jogo um remédio para uma situação que se tornou insustentável, e que com sobranceira dignidade deveria saber afrontar. Não há desgraça, não há miséria, não há crise nem chaga social que não veja no jogo a miragem de uma solução inesperada e completa e  não encontre ali o remate de suas desgraças. Daí aquela série de estigmas de degenerescência que a Pastoral aponta como um indício muito expressivo: a tendência do jogador à mentira.

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Ponha-se agora o leitor diante deste quadro indiscutivelmente sombrio. Considere com a imaginação todas as esposas desoladas, as mães em pranto, os lares desfeitos, as industrias ou empresas comerciais arruinadas, as propriedades agrícolas hipotecadas e por vezes perdidas pelo jogo; considere o sangue e as lágrimas que o jogo fez verter. E veja se, à vista de tanta desgraça, poderiam ficar indiferentes os nossos Bispos justamente alarmados pela eventual multiplicação destas casas de jogos em suas Dioceses.