A opinião pública paulista tomou conhecimento, com
verdadeira admiração da magnífica Pastoral com que os Ex.mos
Rev.mos Srs. Bispos desta Província Eclesiástica
brindaram, mais uma vez, seus diocesanos. Desde que ascendeu ao Sólio
Arquiepiscopal de São Paulo, o Ex.mo e Rev.mo Sr. D. José Gaspar de Afonseca e
Silva tem promovido
reuniões periódicas de seus sufragâneos, depois das
quais dá publicidade a magníficos documentos, notáveis tanto pela fidalga
beleza do estilo quanto pela atualidade dos assuntos tratados, a importância
dos conceitos que contém. Está, entretanto, no consenso unânime que a última
Pastoral constitui, nesta brilhante série, uma nota culminante cuja sonoridade
límpida e forte transporá inevitavelmente as fronteiras do Estado, e ecoará em
todo o Brasil.
Pode-se, pois, imaginar o júbilo com que a imprensa
católica se dispõe a analisar a carta Pastoral. É para o cumprimento desse
gratíssimo se bem que árduo dever, que me disponho a coordenar nestas colunas
algumas reflexões.
É árduo dever, com efeito, fazer acerca da última
Carta Pastoral qualquer comentário. Seu estilo - no qual se reconhecem sem
esforço as qualidades literárias realmente excepcionas de nosso Arcebispo - é
de tal maneira claro e por assim dizer didático, que dispensa comentários
explicativos. A argumentação que ela contém é sempre apresentada de modo tão
acessível, que está ao alcance de qualquer leitor. Por outro lado, é tão completa
que não requer acréscimos ou desenvolvimentos. Sua linguagem é tão franca que
não dá lugar a conjecturas sutis ou a pesquisa maliciosa de subentendidos mais
ou menos velados. Bem se vê que a margem deixada pelo insigne documento à ação
dos gozadores é mínima. O melhor que teríamos a fazer consistiria, certamente,
em recomendar insistentemente a todos que fizessem o que também fizemos: ler,
apreciar e aplaudir.
* * *
Dificilmente se poderia aquilatar todo o alcance
dos horizontes que a Pastoral coletiva abriu, tratando ex-professo da questão do jogo. O
surto extraordinário que entre nós tem tido os grandes cassinos revela um
fenômeno psicológico e moral ao qual não poderia estar alheia a atenção de
nossos Bispos. Para nos certificarmos disto, bastará que coordenemos sobre o
assunto algumas rápidas idéias.
O estado de espírito de qualquer
pessoa que se acerque de certas mesas de jogos, de uma banca de roleta por
exemplo, é muito claro. Todo o prazer do jogador resulta de expectativa de um
lucro fácil e relativamente vultuoso, e a capacidade de absorção da roleta
depende, essencialmente, da tensão psicológica determinada no jogador pela
dupla perspectiva de lucros a realizar ou de prejuízos a sofrer. Quer seja
grande, quer pequena a quantia jogada, é nesta excitação dos nervos, ao mesmo
tempo deleitosa e cruel, que consiste em essência todo o prazer do jogador.
É fácil compreender que é inerente a esse estado de
espírito a tendência de se agravar paulatinamente. Se é agradável a expectativa
de lucros módicos, é deliciosa a de lucros grandes. Se produz uma sensação
picante de aventura a apreensão de pequenos riscos, a volúpia dos grandes
perigos ainda é muito maior. E assim, em muitos e muitos casos, o gosto pelo
jogo determina facilmente uma tendência para que o jogador se empenhe cada vez
mais a fundo. Se são em número não pequenos os temperamentos suficientemente
equilibrados para não se deixarem levar nesta voragem, seria por outro lado
fastidioso recapitular aqui tudo quanto se sabe acerca das ruínas que a paixão
do jogo, acesa em muitos corações até o delírio, pode determinar.
A este respeito têm tão poucas ilusões os organizadores das grandes casas de
jogo, que no Principado de Mônaco os empresários do tristemente famoso Cassino
de Monte Carlo adotaram uma
orientação significativa: já há toda uma organização destinada a se pôr ao
alcance dos jogadores que perdem grandes fortunas a fim de lhes oferecer as
passagens de volta, para que as tragédias das grandes catástrofes se liquidem
longe de suas vistas. E, para o caso em que tal organização tenha falhado,
existe ali uma ponte muito conhecida da qual podem despencar-se cômoda e
discretamente os miseráveis que entregaram sua fortuna aos “banqueiros” da roleta
e quiçá sua alma ao demônio. Graças a Deus nossa “organização” de jogo ainda
não chegou a esta “perfeição”. Entretanto se fôssemos fazer as estatísticas das
ruínas, das lágrimas e até de sangue que os grandes Cassinos acumulam e
multiplicam fora dos salões brilhantes onde a jogatina impera, estamos certos
de que os resultados surpreenderiam até os pessimistas...
Ademais, quem poderia afirmar que este ou aquele jogador, que durante anos borboleteou
de modo mais ou menos inofensivo em torno das bancas dos cassinos, está
vacinado contra a vertigem do jogo que ali domina? O desejo de se obstinar em
vencer o que supersticiosamente se chama “azar” entre os jogadores; o gosto de
exibir perante os conhecidos e amigos uma largueza extraordinária em suas “paradas”;
o prazer infantil de adquirir nos salões de jogo alguma notoriedade pela
importância de certos lances, tudo isto constitui uma série de fraquezas a que
qualquer homem está exposto. E, dado este primeiro passo, quem poderá governar
as reações emocionantes imprevistas que dele podem decorrer? No excesso
psicológico deste ou daquele burguês aparentemente inseparável dos pequenos
hábitos tranqüilos de sua vida ordeira e metódica, há muitas vezes um jogador
desenfreado que dorme. Sabem-no de modo perfeito os “banqueiros” do jogo. E,
por isto, servindo-se de toda a organização de aliciamento a que a Pastoral tão
sabiamente alude, lançam as malhas sobre todos, indistintamente. É que, se
muitos ingênuos pensam estar “vacinados”, eles, os “banqueiros”, sabem exatamente
do contrário, e tem todos os motivos para esperar que a má semente de seus
prosélitos vá brotar com espantoso viço onde talvez menos se pudesse esperar.
* * *
Por tudo isto, se vê que o jogo vive da exploração
de um verdadeiro desequilíbrio psicológico, que ele aguça e desenvolve
indefinidamente. Seria ainda oportuno demonstrar que ele encontra terreno
fértil para a semeadura de suas tentações, em todas as grandes chagas sociais.
Com efeito, das centenas de pessoas que se
aproximam das “bancas” de jogo, muitas vão atraídas pelo desejo de realizar
comodamente lucros imensos que lhe proporcionará a realização de sonhos que não
esperavam ver realizados pelo fruto de seu trabalho honesto. O democratismo exagerado de nossa mentalidade moderna abriu
as comportas de todas as ambições, e excitou ao extremo, em todas as classes
sociais, o desejo de se alçarem aos fastígios do luxo e da opulência. Por outro
lado, o sensualismo contemporâneo inspirou em inúmeros corações verdadeiro
horror ao trabalho. Para o indivíduo moralmente deformado, que sonha com
milhões e não quer se dar ao trabalho de ganhar sequer um tostão, o único
caminho é o jogo. A paixão do jogo nasce, aí, da conjunção de duas outras
paixões péssimas. Esse jogador se agarra a todas as superstições possíveis, a fim
de ver se com a proteção de forças invisíveis e misteriosas logra finalmente a
fortuna que lhe foge diariamente dos dedos. Passa a ser um homem mais
supersticioso do que muito selvagem dos sertões da África. E não tardará muito
que procure no arrombamento de alguma burra aquilo que os amuletos e as fichas
da roleta não lhe sonharam dar...
Não é outra a atitude da esposa e da mãe de família
que arrisca na roleta as parcas economias do marido a fim de ver se obtém o
indispensável para pagar um luxo que a agrura da vida moderna não lhe permite
obter normalmente. Não é outra a atitude do marido desalentado, que procura no
jogo um meio de saciar a ganância de uma esposa que, velada ou explicitamente,
pôs a prêmio sua fidelidade aos compromissos nupciais. Não é outra a atitude do
profissional fracassado, que procura no jogo um remédio para uma situação que
se tornou insustentável, e que com sobranceira dignidade deveria saber
afrontar. Não há desgraça, não há miséria, não há crise nem chaga social que
não veja no jogo a miragem de uma solução inesperada e completa e não encontre ali o remate de suas desgraças.
Daí aquela série de estigmas de degenerescência que a Pastoral aponta como um
indício muito expressivo: a tendência do jogador à mentira.
* * *
Ponha-se agora o leitor diante deste quadro
indiscutivelmente sombrio. Considere com a imaginação todas as esposas
desoladas, as mães em pranto, os lares desfeitos, as industrias ou empresas
comerciais arruinadas, as propriedades agrícolas hipotecadas e por vezes
perdidas pelo jogo; considere o sangue e as lágrimas que o jogo fez verter. E
veja se, à vista de tanta desgraça, poderiam ficar indiferentes os nossos
Bispos justamente alarmados pela eventual multiplicação destas casas de jogos
em suas Dioceses.