O saudoso Cardeal Dom Sebastião Leme encerrou como devia
a sua nobre e edificante vida terrena. Pode-se bem dizer que se a famosa norma
“ora et labora” foi a regra constante de sua vida em todos os dias de sua
piedosa existência, ela atingiu, nos meses que antecederam seu inesperado
falecimento, uma intensidade de cumprimentos que não podemos ocultar, para a
edificação de nossos leitores.
Não é bem exato dizer-se que o falecimento de sua
eminência foi repentino. Todos sabemos a gravidade da crise de saúde que o
impediu de vir a S. Paulo, a fim de representar na qualidade de legado, o Santo
Padre Pio XII. Depois, investidas da
moléstia se repetiram e os íntimos do insigne Purpurado não tiveram mais
dúvidas sobre a precariedade de seu estado. Dotado de inteligência viva e ágil,
encarando a morte como a encararam os homens que tem fé e espírito de fé, o
grande Cardeal não seria pessoa para fechar os olhos sobre sua melindrosa
situação. Mas, apesar disto, continuou a trabalhar intensamente, ocupando-se
dia e noite dos assuntos a seu cargo e dedicando à solução destes os últimos
instantes de sua vida.
Nada teria sido mais fácil para D. Sebastião Leme
do que ausentar-se por alguns meses ao menos da Capital da República, a fim de
cuidar seriamente de sua saúde. Entretanto, a suma complexidade que tem na
quadra atual os assuntos eclesiásticos exigia sua constante vigilância, a sua
permanente atenção. A alternativa era clara: descuidar os interesses da Igreja,
ou menosprezar as exigências da saúde. Corajosamente, simplesmente, como quem
cumpre o mais natural dos deveres, o Cardeal-Arcebispo do Rio de Janeiro seguiu
o segundo caminho, sem encarar sequer de frente a outra possibilidade.
Sua Eminência não morreu apenas no trabalho, mas
morreu do trabalho. Sua moléstia exigia absoluta despreocupação de espírito.
Entretanto, suas atividades o forçavam a se manter em estado de permanente supertensão intelectual e moral, seu organismo já
depauperado com as fadigas anteriores, e minado pela moléstia, vergou. Mas
vergou colhendo em plena luta esse extremo lidador.
* * *
Para o saudoso Cardeal, os dias de grande trabalho
não eram implicitamente os dias de pouca oração. Pelo contrário, era
precisamente quando a complexidade dos assuntos a seu cargo atingia aspectos
por vezes tenebrosos, que seu espírito de oração parecia crescer com a
adversidade, e, supresso o parco lazer de sua existência quotidiana, todo o seu
tempo se dividia entre o trabalho e a oração piedosa, humilde, insistente,
evangélica. Ouvi que, certa vez, quando lhe parecia particularmente delicada a
escolha de uma solução para complexíssimo problema dependente de sua análise e
julgamento, expôs durante quarenta horas o Santíssimo Sacramento na capela do
Palácio São Joaquim, empolgando a todos os íntimos e serviçais pela
extraordinária piedade com que, aos pés de Nosso Senhor Sacramentado, orava
ardentemente e pensava com minúcia as vantagens e desvantagens das várias
perspectivas entre as quais teria de escolher.
Especialmente a piedade eucarística era um dos
traços salientes da fisionomia espiritual desse Príncipe da Igreja. Suas
palavras pareciam encontrar assentos especialmente comovedores quando tratava
da Sagrada Eucaristia. Tudo quanto dissesse respeito ao culto eucarístico o
empolgava. Não havia aspecto deste grande, central e augustíssimo
assunto que não fosse objeto de sua atenção mais ardentemente zelosa. Devotíssimo também do Sagrado Coração de Jesus, nunca
poupou seu mais alto estímulo à devoção ao Coração Eucarístico de Jesus.
Ardentíssimo propugnador da obra da Adoração
Perpétua, o piedoso Cardeal a quis instalada em sua Arquidiocese, de onde
começou a se irradiar, sempre sob seu beneplácito, por todo o Brasil.
Quem procura afastar-se de Maria a fim de melhor
concentrar em Jesus seu amor, afasta-se simultaneamente de Jesus e de Maria.
Maria Santíssima é o caminho que vai a Jesus, o canal único de todas as suas
graças, o único meio que temos para chegar realmente a Ele. E, por isto mesmo,
a devoção filial e ardente a Nossa Senhora é sempre uma prova de bom espírito,
enquanto a tibieza nessa devoção é dos mais alarmantes sintomas da vida
espiritual. Toda a existência desse eminente Cardeal eucarístico que acaba de
falecer foi, neste sentido, um ensinamento. A piedade mariana
do Cardeal Dom Sebastião Leme era extraordinária. Devotíssimo
de Nossa Senhora Aparecida, preparou em honra e louvor da Rainha do Céu
esplêndidas glorificações como, por exemplo, sua soleníssima coroação no Rio de
Janeiro. Não tem conta as ocasiões em que empenhou toda a sua grande alma de
Bispo na preparação da devoção marial. E quando um amontoado de sofismas
desassisados se ergueu contra as Congregações Marianas, procurando confiná-las a um terreno onde necessariamente
morreriam à mingua de espaço e de ar para sua expansão, já bem antes da providencialíssima carta do Santo Padre Pio XII, o Cardeal
Dom Sebastião Leme havia, pelo exemplo e pela palavra, condenado este erro,
dando todo o seu apoio à Confederação Mariana em sua
ação através de todo o Brasil, e timbrou em comparecer às solenidades
marianas ostentando sobre suas vestes cardinalícias a
fita azul de Congregado, a fim de exortar ao apostolado, à piedade, à expansão,
ao florescimento, as Congregações Marianas.
* * *
Cardeal da Eucaristia, Cardeal mariano, o saudoso
Dom Sebastião Leme timbrava em ser também o Cardeal da Ação Católica, o que,
como Presidente da A. C. me é gratíssimo recordar. Tive a honra insigne de
conversar com ele, um ano antes da promulgação dos Estatutos da A. C., sobre
esse magno e palpitante assunto. Lembro-me de que foi um momento fugaz.
Encontrava-me com ele e Alceu Amoroso Lima na sala de trabalho
do Palácio São Joaquim, e ali examinávamos vários assuntos atinentes às
reivindicações católicas na Assembléia Constituinte. Não me lembro como, o
assunto à certa altura mudou de curso, e o Cardeal-Arcebispo entrou a falar da
Ação Católica, cujos estatutos estavam em anteprojeto sobre sua mesa, para
estudo. Era de se ver o entusiasmo com que se referia à Ação Católica, e as
esperanças que nela depositava. Dedicou-se de corpo e alma à confecção dos
estatutos da A.C. Foi um dos grandes anelos de sua vida, uma grande e larga
Ação Católica, uma Ação Católica larga e grande como seu coração. E, sob a
direção dela, desejava ver as imensas falanges católicas fraternalmente unidas
em torno dos esquadrões vigorosos das organizações fundamentais, formando todo
aquele exército combativo e invencível que, em fileiras de aço, soubesse lançar
o assalto contra a cidade de Satanás.
Por isso mesmo, conseguiu sua Eminência, para
nossos Estatutos, uma originalidade sapientíssima que teve funda repercussão em
outros países. A título individual, só fazem parte da A.C. os membros das
organizações fundamentais. Mas a título coletivo fazem parte da A.C. todas as
associações auxiliares. Assim, não há esforço católico com que a A.C. não possa
contar, para a consecução de suas altas e nobre finalidades. E, a fim de
encaminhar a A.C. nas vias destas realizações, o saudoso Cardeal deu-lhe uma
grande prova de amizade colocando à testa dela Alceu Amoroso Lima que, como
sabemos todos, foi, no laicato, a pessoa a quem confiou com entusiasmo a
realização de suas maiores esperanças.
Podemos dizer que a A.C. não teve maior guia nem
pai mais esclarecido do que o Cardeal Leme. Defendeu-a ele resolutamente contra
os dois grandes perigos que a ameaçavam, isto é, ao mesmo tempo o perigo de alguns
que dela quereriam fazer mero rótulo, e dos que dela quereriam fazer uma
novidade temerária dentro da vida da Igreja.
Aliás, ninguém melhor do que quem imerecidamente
ocupa o lugar de presidente da A.C. de São Paulo pode atestar o entusiasmo do
ilustre Antístite pela A.C., já que seria impossível que de sua Eminência
recebesse alguém maiores expressões de apoio, de aplauso, de compreensão e de
estímulo, do que a Junta Arquidiocesana de São Paulo.
* * *
Hoje, repousa no silêncio do mais ilustre Santuário
Eucarístico do Brasil, na matriz de Santana, o primeiro templo da Adoração
Perpétua entre nós, o corpo desse saudoso Cardeal. A intenção que inspirou este
seu último desejo é evidente e comovedora. Esse grande paladino da Eucaristia
quis que repousassem aos pés de Jesus Sacramentado seus despojos mortais,
enquanto sua alma cantava no Céu os louvores de Deus. E, em sua humildade, terá
certamente querido recomendar-se com isto às orações e sufrágios de quantos ali
fossem adorar a Nosso Senhor. Muito mais inclinados a pedir que ele reze por
nós do que a rezar por ele, dobramos comovidos nossos joelhos aos pés de sua
sepultura, pedindo sua intercessão para que o Brasil, sendo realmente um país
eucarístico, seja ao mesmo tempo e por excelência o país devoto da Sagrada
Eucaristia, de Nossa Senhora e do Papa, que jamais tenha existido sobre a face
da terra.