Legionário, N.º 529, 27 de setembro de 1942

Ainda o Congresso Eucarístico

O Santo Padre ocupa, na piedade católica, uma posição tão central e tão relevante que de modo algum pode deixar de nos interessar altamente tudo quanto diga respeito à intensificação dos sentimentos que lhe devem tributar os fiéis.

Merece, neste sentido, um registro especial a alocução que o Sumo Pontífice dirigiu ao povo brasileiro, por ocasião do recente Congresso Eucarístico.

Antes de entrar na análise do relevante documento, façamos uma observação preliminar altamente confortadora. Refere-se ela ao modo por que o povo recebeu a palavra do Santo Padre.

É curioso como, nas coisas de Deus, as circunstâncias as mais adversas podem redundar para a Sua maior glória! Certamente, os organizadores do Congresso empenhando-se, como de fato se empenharam, para que a palavra augusta do Sumo Pontífice fosse ouvida com a máxima nitidez por seus filhos brasileiros, não imaginaram que, a despeito de toda a boa vontade com que a irradiação foi secundada, quer aqui quer no Vaticano, a palavra do Papa não seria ouvida distintamente, se, nisso mesmo, houvesse uma nota muito particular do Congresso a registrar.

Terminado o soleníssimo Pontifical, todas as autoridades eclesiásticas, civis e militares e a imensa mole de povo ficaram no vale do Anhangabaú à espera da palavra do Papa, que, entretanto, se fez esperar um pouco. A expectativa aumentava, à medida que ia correndo o tempo. Não era a expectativa impaciente de quem deseja chegar logo ao último número do programa para voltar ao conforto do lar, mas a expectativa afetuosa e feliz de uma grande família que se sente contente por estar reunida, e espera com afetuosa solicitude a palavra do Pai.

Por isto, foi intensa a emoção quando a saudação Louvado seja Jesus Cristo anunciou que o Santo Padre ia começar a falar.

Infelizmente, as condições atmosféricas não permitiram uma irradiação clara. Por isto, se bem que o Santo Padre falasse em nosso idioma, para a grande maioria das pessoas tornou-se dificílimo entender o que dizia. Mas precisamente aí esteve uma das mais belas notas do Congresso. Não se ouvia a palavra do Papa, mas entendia-se nítida, a voz paternal e amavelmente grave do Sumo Pontífice. Tanto bastou para que aquelas centenas de milhares de pessoas se conservassem em um silêncio verdadeiramente impressionante, para recolher no coração, afetuosamente, meticulosamente, uma a uma todas as vibrações daquela voz que vinha da Roma Eterna, e era um eco fiel da própria voz do Divino Mestre. Foram longos e deleituosos minutos de um recolhimento empolgante. O mais eloqüente dos oradores, o que melhor se fizesse ouvir e compreender pelas massas, não poderia lograr nem silêncio maior, nem atenção tão grande. Na imensa praça do Congresso, todos rezavam, meditavam ou se recolhiam enquanto o Papa falava. E quando, finalmente, Sua Santidade anunciou a bênção apostólica, foi um espetáculo emocionante ver-se todo aquele povo, tendo à testa as autoridades eclesiásticas, civis e militares, ajoelhar-se instantaneamente, para receber com fundo respeito a bênção do Pontífice.

Seria impossível uma mais eloqüente manifestação de Fé, Fé viva e profunda, no Primado de São Pedro e na Infalibilidade do Papa, do que a que deu o povo nesta grande e gloriosa solenidade.

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Pela segunda vez, o Santo Padre Pio XII, sabidamente um poliglota, dirigindo-se aos brasileiros, se serve de nosso idioma. Com isto, indica o Sumo Pontífice o agrado especial em que tem os seus filhos de língua portuguesa e, ao mesmo tempo, afirma de modo muitíssimo oportuno a universalidade da Igreja.

Para que entendamos devidamente o alcance do delicadíssimo gesto do Pontífice, será necessário que tomemos em consideração o que, a respeito do uso de idiomas estrangeiros por parte de Chefes de Estado, dispõe o protocolo de todos os países.

Um princípio, universalmente admitido a este respeito, estatui que quando entram em contato países de língua diferente, o fato de um deles usar o idioma do outro para se fazer entender significa uma inferioridade. Com efeito, se de dois povos, um conhece o idioma do outro, e a recíproca não se verifica, daí se deduz que o primeiro possui uma expansão cultural de que o segundo não dispõe. Assim, é natural que um indígena de Lourenço Marques saiba português. Mas não é natural que um português ou brasileiro conheça o idioma dos nativos de Lourenço Marques. E, portanto, quando uma autoridade portuguesa tiver de se entender com algum cacique de Lourenço Marques, servir-se-á do Português sempre que possível, e nunca condescenderá em falar outra língua. Demos um exemplo extremo para maior clareza da exposição. Mas há mil outros exemplos que podem ser apontados. Assim, quando se encontram chefes de Estado na Europa em conversações oficiais, ou usam um terceiro idioma ou falam por meio de intérprete e isto ainda que, por coincidência, um dos Chefes de Estado conheça efetivamente o idioma do outro.

Houve um Presidente de Conselho de Ministros da França - o Sr. Briand, se não me engano - que, em viagem aos Estados Unidos, conversou com o Presidente daquela República por meio de intérprete se bem que, provavelmente, cada um dos interlocutores compreendesse perfeitamente o que o outro dizia.

A Santa Sé também possui uma língua oficial - o Latim. Mas, se a Igreja tem uma língua oficial e quase tão universal como ela, pois que a cultura latina é universal, a realidade é que a Igreja de tal maneira se sobrepõe a todos os nacionalismos, e é de tal forma a alma de todos os países em que vive e floresce, que ela está perfeitamente à vontade usando qualquer outra língua porque Mãe comum de todos os povos, em nenhum ela é estrangeira, e, implicitamente, nenhum idioma é, para ela, um idioma estrangeiro.

Falando em Português o Santo Padre afirmou, pois, uma grande verdade. Ele quis certamente, e em primeira linha, acentuar seu amor para o Brasil e para todos os que falam língua portuguesa. Mas, em segundo lugar, ele afirmou - e quanto isto nos honra - que no Brasil ele não é potência estrangeira nem governo estrangeiro, no sentido de ser alheio a nossas tradições, cultura, mentalidade e interesses, porque, se a medula da alma brasileira é a Religião Católica, como a medula da Religião está na Fé em Jesus Cristo e seu Vigário sobre a terra, está na medula da alma brasileira uma devoção entusiástica, filial, ardente, uma obediência amorosa, profunda e incondicional ao Sumo Pontífice, que em nós tem autênticos e genuínos súditos espirituais. Acentuamos, aqui, a palavra "incondicional". As solidariedades "incondicionais" são sempre aviltantes e imorais, porque significam que se renuncia ao direito sagrado de colocar acima de todas as solidariedades terrenas o respeito aos direitos da Verdade, a observância dos princípios da moral. Entretanto, em se tratando do único poder infalível que existe sobre a terra, a incondicionalidade é absolutamente legítima, pois que a única circunstância que a tornaria imoral - isto é a capacidade de errar - neste caso concreto não existe. De fato, a quem com infalível autoridade define a Verdade e o Bem, nossa obediência é estrita e absolutamente incondicional. Creremos sempre o que ele nos definir como Verdade e Bem, e obedeceremos sempre ao que nos ordenar com sua suprema e apostólica autoridade, para a maior glória de Deus e exaltação da Santa Madre Igreja.