Convém que
nosso entusiasmo pelas grandezas do último Congresso Eucarístico não se limitem
a impressões confusas e emocionais, se bem que vibrantes. O Congresso foi uma
das páginas mais brilhantes de nossa história religiosa. E, como toda a página
histórica, merece ele ser atentamente analisado a fim de que se conheça a fundo
toda sua significação.
Por isto,
convém que reflitamos um pouco acerca da grande procissão de encerramento, que
foi quanto ao esplendor, indiscutivelmente, o episódio culminante do Congresso.
Todas as
estimativas orçam em cerca de um milhão as pessoas que assistiram a procissão,
incluídas neste cálculo, evidentemente, não só as que desfilaram precedendo ou
acompanhando o Santíssimo Sacramento, como ainda as que se comprimiam nas ruas
à espera do carro triunfal, ou assistiam das janelas, sacadas e tetos dos
prédios situados no trajeto, o grande triunfo do Rei Eucarístico.
Ainda que deste
magnífico total se descontem os congressistas de outras cidades, é fácil
perceber-se que a participação de São Paulo no Congresso foi algo de inédito e
impressionante, que excedeu a expectativa mais otimista. Com efeito, a
impressão que em todos se notava - ricos ou pobres, aristocratas ou plebeus -
doutos ou iletrados - era não somente de entusiasmo delirante à vista da
magnitude da cena, como ainda de surpresa. Uma surpresa ligeira em uns, e funda
em outros, alegre em quase todos e mal humorada em alguns, mas enfim uma
surpresa. Ninguém seria capaz de supor que o Congresso tivesse encontrado na
alma paulista uma sonoridade tão viva.
Com efeito,
sabemos todos que o paulista é pouco afeito a quaisquer manifestações, e
mormente a manifestações de rua. Nosso
temperamento discreto e fechado converte muito mais facilmente nossos
entusiasmos em resoluções duráveis e por vezes heróicas, do que em brados de
júbilo e clamores públicos. Desta vez, porém, foi tanto o entusiasmo, tão fundo
o fervor, que não lhe bastou a sobriedade das expansões comuns, e o paulista
foi à praça pública, encheu as ruas da cidade, superlotou os prédios do
trajeto, e externou publicamente o que lhe ia na alma.
Mais admirável,
porém, do que o número imenso de pessoas presentes, era o ambiente dentro do
qual a procissão se realizou. O dia era nublado e melancólico. Ameaçava chuva.
Nosso povo, discreto e sisudo mesmo nas grandes ocasiões de júbilo coletivo, se
mantinha sério. Nada, absolutamente nada havia que desse ao conjunto aquela
impressão de algazarra popular, de grande festa pública e foliona, que se nota
às vezes em manifestações, os frívolos, os joisseurs. Na mesma mole popular
que se comprimia ao longo da Av. S. João e ruas adjacentes, nenhum brincalhão a
fazer pilhérias, nenhum desordeiro a provocar rixas, nem sequer algum pequeno
comerciante ambulante a vender balões ou doces para crianças, refrescos para os
adultos etc., etc. Tudo que não fosse respeito, recolhimento, fervor, estava
severamente proscrito do ambiente. Rezava-se. Aguardava-se de chapéu na mão, e
em silêncio, a procissão. Era Deus que ia passar. O recolhimento piedoso, a
ordem impecável, a disciplina maravilhosa do povo valeu, em sua esplêndida
seriedade, por um grande Credo cantado coletivamente por um milhão de vozes.
Realmente, só com Fé, e com muita Fé, tamanha ordem e tamanho silêncio se
poderiam explicar. A presença dos paulistas, sua conduta, seu porte, tudo foi
um grande ato de Fé. Conversei, a este respeito, com mais de um estrangeiro. Em
todos, a impressão era de simples assombro. "Que povo, me dizia um, que
magnífico povo". E outro, a quem tinham enchido a cabeça a respeito da
frivolidade brasileira, me disse que saiu da procissão com sincero afeto por
essa população tão crente.
* * *
São Paulo é São
Paulo. A presença de um milhão de paulistas para homenagear o Rei Eucarístico
não quer dizer um fervor de momento, mas exprime uma convicção, um propósito,
uma resolução inexoravelmente traduzida em fatos.
Desde nossos
tempos coloniais até os dias de hoje, tem esta terra sido visitada por quanto
morubixaba, capitão-mor, governador geral, dignitário da corte, parlamentar ou
político se tem alçado algum tanto em nossos horizontes nacionais. Brasileiros
que somos, gostamos de efusões afetivas e por isto não temos regateado
manifestações em praça pública a quanta notabilidade, muitas vezes autêntica, e
muitas vezes fictícia, entre nós se tem erguido. Compulsem-se, porém, nossos
fastos, e nem uma só vez se terá visto coisa que de longe se assemelhe ao
Congresso Eucarístico. Ficou claro, ficou patente que entre Nosso Senhor Jesus
Cristo e qualquer outro nome, a distância é verdadeiramente infinita, no
coração brasileiro. Entre a Santa Igreja de Deus e qualquer outro programa, os
fatos o provaram com uma clareza meridiana, não há
para nós paralelos possíveis. Nosso supremo anelo é Cristo. Nosso maior ideal é
a Igreja. Mais ainda: nosso único ideal e nosso único anelo, nossa única
aspiração e nosso único amor são Nosso Senhor Jesus Cristo e a Santa Igreja, e
é à luz deste amor que sentimos todos os outros afetos, por mais nobres que
sejam, de nosso coração.
Isto eqüivale a
dizer que, em São Paulo e no Brasil, a Santa Igreja é realmente uma potência.
Não há meio termo. Ou cometemos contra a piedosa multidão que ovacionou Nosso
Senhor a injúria de dizer que é frívola, inconstante, superficial, insincera ou
havemos de reconhecer que a Santa Igreja é, como deve ser, verdadeira rainha
daquela almas. Ficou demonstrado que uma diretriz da Igreja, uma palavra do
Episcopado um gesto qualquer, por mais leve ou menor que seja, do Santo Padre,
tem para nós, como devem ter, o valor de leis vindas do próprio Deus.
Retenhamos bem
esta conseqüência, porque ela é confortadora: é uma potência, é uma grande
potência, é a grande potência, a Santa Igreja no Brasil. Para a Pátria, nenhum
fato é mais animador. O Brasil só será grande na medida em que souber ser filho
de Deus.
* * *
Por isto mesmo,
percamos de vez, em todos os círculos católicos, aquilo que, com muito
espírito, um redator desta folha chama "moralidade de parente pobre".
Há muita gente que entende que a Igreja é a prima pobre de todo o mundo. Se há
parentes pobres que são cheios de linha e de dignidade (Nosso Senhor foi
parente pobre de muita gente, em sua vida terrena) e não é a estes que me
refiro; há outros parentes pobres, prontos a se extraviarem diante das menores condescendências, ou a interpretarem como gentilezas os
menores gestos dos parentes ricos, e a receber como favores até o desdém dos
figurões da família. Assim, muita gente pensa que é de bom aviso que a Igreja,
em todos os campos da vida social, se contente com tudo, aceite tudo, recolha
avidamente como esmola qualquer quinquilharia, e se contente perpetuamente com
o segundo lugar em tudo e por tudo, na convicção de que, por pouco
intransigente que ela se mostre, "arrebenta a corda" e ela sai
perdendo.
Para quem, como
nós, vive de princípios e da graça de Deus, essas considerações de corda que
arrebenta realmente quando deixamos a pureza de nossa doutrina ou perdemos a
graça de Deus. Quanto ao mais não há cordas arrebentadas. Mas, desde que a todo
custo se quer conservar cordas ligando-nos, não só a Deus, como ainda há mil
outras coisas, lembremo-nos de que a potência somos nós, e que nada devemos
temer, porque a corda arrebenta do lado mais fraco. Ora, ou o Congresso foi um bluff ou
demonstrou, no Brasil o lado mais fraco da corda, graças a Deus, estará com
aqueles que estiveram contra nós.