Legionário,  N.º 511, 28 de junho de 1942

Rumos da AC no Pontificado de Pio XII -II

Chegamos em artigo anterior a duas conclusões de capital importância:

1 – tem força plenamente obrigatória e pleno vigor jurídico os Estatutos Provisórios da Ação Católica Brasileira enquanto não forem reformados.

2 – Além disto, Pio XII já deixou bem claro que se deve entender que a dualidade de situações criada pela fundação da AC - associações fundamentais e auxiliares - não implica, de modo algum, em uma diversidade de essência jurídica.

Isto posto, pergunta-se: implica em diversidade de situação jurídica? É preciso distinguir entre essência jurídica e situação jurídica. Por exemplo, uma Federação Mariana tem situação jurídica diversa de uma simples Congregação. Entretanto, a essência jurídica de ambas as organizações é a mesma: obras de colaboração no apostolado hierárquico da Igreja.

Mas, se há dois tipos de associações, umas fundamentais, outras auxiliares, que diversidade real e objetiva decorre desta diversidade de denominação? Atendendo bem aos termos, auxiliares do quê? Fundamentais do quê? Da Ação Católica. Logo, existe uma grande obra que a Ação Católica  deve realizar, e para cuja consecução estas duas entidades devem concorrer de modo diverso, umas como fundamentais, e outras como auxiliares. Diante disto, qual o panorama que vemos? Há um grande fim geral, para o qual o Santo Padre conclama todos os fiéis. Os modos de obter este fim, cada Bispo em sua Diocese as determina e realiza, servindo-se para tanto, entre outros meios, de uma Junta Diocesana ou central, que deve superintender todos os esforços do laicato católico. A esta Junta cabe fornecer as diretrizes emanadas da Autoridade, e coordenar os trabalhos na realização destas diretrizes. Para a obtenção desta finalidade coletiva, tem a Junta dois tipos de organismos, uns, fundamentais, vivem sob uma dependência mais direta e são como que os fundamentais normais, os meios de execução imediatos e habituais dos desígnios expressos pela Autoridade por meio da Junta. Outros, pelo contrário, são elementos que ocupam nas atividades da AC uma função subsidiária, que a Junta deve utilizar na medida em que, na realização de suas atividade normais, não for suficiente o concurso das organizações fundamentais.

Analisemos mais detidamente este conceito. O fim geral da AC é, evidentemente, a instauração do Reinado de Nosso Senhor Jesus Cristo. Entretanto, ela não pode procurar a realização simultânea de toda a grande variedade de esforços que esta tarefa imensa exige. Por isto, no mundo inteiro a AC tem tomado o hábito de estabelecer programas anuais, que constituem os marcos de progresso, a trajetória metódica e segura por ela seguida na realização de suas altas finalidades. Os meios, por excelência, da AC na execução deste programa são os organismos fundamentais. Entretanto, pode ela apelar para o concurso dos organismos auxiliares, sempre que sinta a insuficiência dos recursos dos organismos fundamentais para tal trabalho.

Ora, acontece que, paralelamente ao programa anual da AC, há uma imensa seara de apostolado em que se pode trabalhar. Desde que a AC não peça às A. A. uma atividade de colaboração direta em seu programa, podem as associações auxiliares consagrar todos os seus esforços e recursos na colaboração com a Hierarquia em quaisquer campos do apostolado, e, ainda assim, elas continuarão a funcionar como verdadeiras auxiliares da AC, pois que estarão desbastando um campo que, dia mais dia menos, a AC terá de trilhar. Entretanto  - note-se bem - neste último gênero de tarefa, as A. A. não estão sujeitas direta e normalmente à Junta Diocesana, mas exclusivamente à Hierarquia, de modo direto e imediato. Nisto há uma diferença importante de situação jurídica. Com efeito, as A. A. podem desenvolver trabalhos que estejam à margem das atividades próprias e oficiais da A. A. O mesmo, evidentemente, não se pode dar com as organizações fundamentais.

Por outro lado, os Estatutos da A.C.B. diferenciam claramente a autoridade direta que a Junta Diocesana exerce sobre as diretrizes das organizações fundamentais, da autoridade apenas indireta que exerce sobre as A. A. por meio da Confederação Católica. E todas estas diferenças de situação provam à saciedade que há uma real e objetiva diferença, segundo os presentes estatutos da A.C.B., entre as organizações fundamentais e auxiliares.

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Porém, toda esta situação criada sob o glorioso pontificado do inolvidável Pio XI não deixava de suscitar alguns problemas que preocuparam os espíritos esclarecidos. São tão evidentes e tão freqüentes  os motivos de dupla incidência de atividades em um mesmo campo, no caso das organizações auxiliares e fundamentais da AC, que se torna absolutamente claro que seria preciso fixar princípios, ou abrir diretrizes para a solução deste problema concreto nascido com a prática. De que modo o fez a Santa Sé?

Primeiramente, traçou o Santo Padre sábias e importantes regras de cooperação, na alocução que pronunciou aos 5 de Setembro de 1940, e que o boletim da AC publicou. Destacamos da alocução pontifícia os seguintes tópicos:

“Mas além da união entre si, será uma vantagem de afeição amistosa e cordial se reinar união entre os membros da Ação Católica e os de outras associações. A organização da Ação Católica Italiana, embora seja órgão principal dos católicos militantes, não obstante, comporta a seu lado outras associações também dependentes da Autoridade Eclesiástica, das quais algumas que tem fins e formas de apostolado bem se podem dizer colaboradores no apostolado Hierárquico. Entre essas Associações e as da Ação Católica, quem não vê como seja necessário que exista uma benevolência mútua, uma larga compreensão, uma cooperação sincera: dotes e virtudes que têm suas raízes, de um lado, no zelo puríssimo da glória de Deus e da salvação das almas que inflama a todas; de outro lado em pertencer, aí atingindo à seiva de vida, ao mesmo Corpo Místico de Cristo? Umas e outras não se perturbarão nos trabalhos aos quais segundo os seus próprios estatutos, aprovados pela autoridade da Igreja, se consagram; ao contrário, mutuamente com emulação se auxiliarão, e sustentarão, a fim de que na verdade espiritual que se ajusta, se adapta, se amolda aos diversos costumes, a mudanças das circunstâncias, à índole dos temperamentos, apareça e fulgure a luminosa insígnia característica do cristão: a caridade.”

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Entretanto, é preciso acentuar que o Santo Padre considera também para a AC Italiana uma outra possibilidade nova  e digna de atenção na alocução que proferiu aos peregrinos e representantes da AC Italiana. Diz o Pontífice: “E, se nos institutos católicos de educação, não de outro modo como nas associações religiosas  que tem fins e formas organizadas de apostolado, se estabelecerem associações internas de AC, esta aí entre com discreção e reserva, nada perturbando da estrutura e da vida do instituto ou da associação, mas apenas imprimindo novo impulso ao espírito e às formas de apostolado, enquadrando-as na grande organização central”.

Assim, o Santo Padre Pio XII não se limitou a indicar as normas de mútua prudência e caridade que devem ser observadas pelas organizações fundamentais e auxiliares da A.C. Ele vai mais longe, e aponta à A.C. Italiana a visibilidade de uma solução que, em muitos casos concretos, pode sentir os melhores e mais auspiciosos resultados: é a fundação de núcleos da AC dentro das próprias organizações auxiliares, o que evidentemente constitui um poderoso vínculo de união e coordenação entre todos.

Esta verdadeira inovação introduzida por Pio XII na estrutura da AC Italiana constitui um harmonioso desenvolvimento das diretrizes dadas a esta pelo imortal Pio XI. Sabemos que, há alguns anos, essa solução vinha sendo experimentada na Itália. Deve ter dado certamente resultados satisfatórios no ambiente peculiar àquele país, já que o Santo Padre consagrou a legitimidade dessa interpenetração de estruturas em sua mencionada alocução.

Quais os resultados que o Santo Padre espera dessa interpenetração da AC Italiana nas associações e instituições católicas? Ele mesmo as enumera:

1 - um novo impulso no espírito e na forma de apostolado de cada instituição onde a AC penetrar; o que significa, em outros termos, que a AC longe de constituir um perigo de desvirtuamento do espírito da associação ou instituição, deve agir como um fermento sutil, que tornará mais genuíno, mais autêntico, mais real o espírito próprio a cada obra, e mais vivazes os seus esforços de apostolado;

2 - que com isto não haja fortalecimento da estrutura de todo o apostolado leigo dentro dos quadros gerais da AC.

E o Santo Padre exclui categoricamente um perigo que a muitos espíritos poderiam causar apreensão: essa penetração da AC pode ser feita  “nada perturbando da estrutura e da vida do instituto e da associação”.

Como se vê, essa solução oferece largo campo para o estudo e as digressões dos doutrinadores, que poderão encontrar uma forte substância doutrinária subjacente nessa solução prática estabelecida, na Itália, pelo Sumo Pontífice.

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Pio XII gosta de se dizer continuador de Pio XI, e realmente tem o ex-secretário de Estado do grande Papa falecido todos os títulos para fazer de seu Pontificado um prolongamento luminoso do Pontificado anterior. Além de Sucessor de Pio XI, Pio XII é seu continuador. Mas um continuador de grande envergadura como Pio XII não se limita a andar pelos caminhos abertos pelo seu antecessor. Faz mais. Abre ele próprio novos caminhos que constituam o prolongamento harmonioso das vastas e fecundas perspectivas que Pio XI traçou.

Seria supérfluo acrescentar que, nessa obra personalíssima de completar inovando, Pio XII introduziu as características de sua individualidade de escol. Competia ao seu espírito tão apaixonado de colaboração, de cordura, de caridade, demonstrar por meio de realizações práticas que a grande obra de Pio XI poderia ser levada a feliz termo, em todos os sentidos, dentro daquele ambiente típico da Igreja que se traduz no anelo de nosso Divino Salvador: “que todos sejam um”. Esta a preocupação dominante da alocução de 5 de setembro, quando o Santo Padre traçou à Ação Católica esse belo programa, a que com todo o entusiasmo devemos aderir:

1 - “União com a Hierarquia”.

2 - “União com Deus”.

3 - “União com as outras associações”.

Para isto, tem a A.C. de S. Paulo um motivo particular. Jamais deve ela esquecer-se de que no brasão de armas de seu amantíssimo Arcebispo é o mesmo programa de união que se inscreve, como norma inspiradora de todos os esforços de sua infatigável atividade.