Legionário, N.º 510, 21 de junho de 1942

Rumos da Ação Católica sob o Pontificado de Pio XII - I

Para o católico realmente imbuído de sentimentos filiais para com a Santa Sé, nada há de mais interessante do que acompanhar o desenvolvimento que tem sido dado ao conceito de Ação Católica no pontificado de Pio XII. Seria temerário ver uma ruptura de continuidade na vida da Ação Católica com a ascensão do novo Papa ao Trono de S. Pedro. Considerando as coisas da Igreja com olhos filiais, esforcemo-nos por discernir, nos vários atos do atual Pontífice, a continuidade do pensamento e da ação do seu preclaro antecessor.

Procuraremos demonstrar esta continuidade em dois artigos, tomando por base um documento emanado de Pio XI - os Estatutos da Ação Católica Brasileira - e os principais documentos de Pio XII, sobre o mesmo assunto.

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Como se sabe, os Estatutos da Ação Católica Brasileira promulgados por todo o Episcopado Nacional foram cuidadosamente revistos e examinados de antemão pela Santa Sé. Eles constituem, pois, um ato oficial da Hierarquia, revestidos de toda a autoridade que lhes vem não só da aprovação de nossos Bispos como ainda da chancela da Santa Sé. Seria infantil alegar que esta autoridade é apenas relativa, porquanto os Estatutos podem ser reformados a qualquer momento. Com efeito, enquanto os Estatutos estiverem em vigência e não forem alterados, tem eles plena força de lei, e não podem ser desobedecidos por quem quer que seja. Mais ainda, eles só podem ser reformados por quem os promulgou, e o laicato, que não tem autoridade para tanto, deve abster-se cuidadosamente de conjeturas, de previsões e interferências em campo que não lhe pertence. Deixemos este assunto à Hierarquia. Quanto a nós, lembremo-nos somente de que enquanto ela não fizer esta reforma que poderá vir logo, demorar muito ou não vir de todo, estamos absolutamente tão obrigados a obedecer a tais Estatutos quanto se eles fossem eternos. Se amanhã a Santa Sé os reformar, tê-lo-á feito com sua habitual sabedoria e nos inclinaremos de bom grado, mas este dia de amanhã não tem eficácia para alterar antecipadamente o que ainda hoje está em vigor.

A nós, leigos, não compete o direito de fazer sobre os Estatutos  da A.C. apreciações de qualquer natureza, mas apenas obedecer-lhes com júbilo, porque são a expressão atual da vontade da Igreja, que com idêntico júbilo obedeceremos se algum dia ela mandar o contrário. Isto posto, entremos em nossos assuntos.

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Os Estatutos da A.C.B. consideram três espécies de organizações: a) os quadros fundamentais da A.C., a saber os Homens da A.C., a Juventude com os Benjamins e os Aspirantes; e as entidades que lhes correspondem no plano feminino; b) as associações auxiliares, em cujo número se incluem todas as associações de piedade e apostolado pré-existentes à fundação da A.C., ou instituídas depois dela; c)  as obras econômico-sociais, que não têm um fim imediato de apostolado nem de piedade, mas que se dedicam diretamente à solução de questões econômico-sociais ligadas à realização das diretrizes da Igreja  neste assunto.

Estes Estatutos [têm] uma verdadeira originalidade no assunto. Com efeito, essa pluralidade de organizações não se encontra, senão muito raramente, nos Estatutos da A.C. de outros países, e se deve à previdência do nosso zeloso Episcopado que bem compreendeu o grave erro que havia em se dissociar do trabalho da A.C. toda a magnífica rede de organização de piedade e de apostolado a ela pré-existente.

Mas esta pluralidade criou um duplo problema. De um lado, tornou mais nítida do que nunca a questão da essência jurídica das várias categorias: será real que são umas participantes e outras meras colaboradoras da Hierarquia? Em segundo lugar, já que às varias categorias está franqueado o terreno do Apostolado, pergunta-se: qual o teor das relações que entre elas devem existir?

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À primeira questão, respondeu um artigo de S.E. o Cardeal Piazza, presidente da Comissão Cardinalícia instituída pelo Santo Padre para tratar das questões da A.C. na Itália. Seria temerário subestimar-se o verdadeiro alcance de tal documento. Em matéria de A.C., não há problema mais importante do que o da natureza jurídica dessa organização. É evidente. Nenhum ser tem problema mais fundamental do que o conhecimento de sua própria natureza. Todos os outros problemas da A.C. ficam subordinados a essa importantíssima questão. Quer se responda de um, quer de outro modo, daí decorre uma série de conseqüências que se projetam sobre a vida e organização da A.C.

Ora, é evidente que o Santo Padre Pio XII não poderia ter nomeado para cargo de tal importância um Cardeal que não tivesse, sobre essa questão fundamental, vital, que influencia todas as outras questões, o próprio pensamento do Pontífice. Quem conhece o acendrado zelo com que S.S. Pio XII governa a Igreja percebe logo a prudência e o critério que o guiou na escolha de um auxiliar numa questão de importância capital para a dilatação do reinado de N. S. Jesus Cristo. Esta mesma consideração leva-nos a crer que S.E. o Cardeal Piazza só se externou publicamente depois de se inteirar perfeitamente do pensamento do Romano Pontífice. Tudo isto bem o sentiu o “Boletim da A.C.B.”, transcrevendo o artigo de S.E. o Cardeal Piazza, tão claro, tão harmonioso, tão preciso, sobre o assunto.

Com efeito, se esse artigo não tivesse qualquer relação com a A.C. Brasileira, sua transcrição no Boletim não se explicaria. É óbvia entre o artigo e nossa A.C.. A essência jurídica da A.C. é a mesma no mundo inteiro, e o pensamento do Santo Padre sobre a essência da A.C. italiana interessa tanto a esta quanto à do Brasil ou a de qualquer outro país. A estrutura jurídica da A.C., ou seja sua organização interna pode variar de um país para outro. Sua essência jurídica, isto é sua qualificação como elemento integrante da Igreja docente ou discente, participantes das funções hierárquicas ou órgão de atividade inteiramente súdito, é o mesmo em todo o orbe católico.

Aliás, o artigo do Cardeal Piazza tem o título “Desenvolvimento de uma Definição”. E é comentário e interpretação autorizada de uma definição que o Santo Padre Pio XI deu para o mundo inteiro.

Como dissemos, a opinião do Cardeal Piazza exprime o pensamento do próprio Pontífice. E, em seu artigo, o ilustre Prelado elucida, sob a égide de Pio XII, com sabedoria e prudência, o problema suscitado a propósito da atualidade de expressões “participação” e “colaboração”, usadas pelo Santo Padre Pio XI, indiferentemente, em suas definições de A.C. Depois de várias considerações doutrinárias e jurídicas importantíssimas, o porta-voz do Santo Padre conclui que a A.C. é de essência jurídica absolutamente idêntico à dos órgãos do apostolado leigo pré-existentes, e demonstra que quando o Santo Padre Pio XI falou em “participação”, teve em mente dar a esta palavra o sentido, aliás legítimo, de mera colaboração.

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Como se vê, sem ruído, sem afirmações estrepitosas, o Santo Padre Pio XII, com uma firmeza suave que lhe é muito característica, já deu solução ao mais importante dos problemas da A.C.. Entretanto, S.S. não se limitou a falar pela autoridade do Cardeal Piazza. Na alocução de 5 de dezembro de 1940 aos representantes  da A.C. Italiana se referiu insistentemente à A.C. o Sumo Pontífice. E, nesse documento, aludiu à A.C. 13 vezes como uma “cooperação” ou “colaboração” com o apostolado hierárquico, e nem uma só vez como “participação”. Silêncio cauteloso e eloqüente, mostra ele muito bem que o Santo Padre entende, também ele, que a participação da A.C. no [apostolado] hierárquico da Igreja é uma simples colaboração.

“Simples colaboração” - a palavra não deixa de ser curiosa. Com efeito, a colaboração é simples, como são simples todas as coisa grandes e belas. E que pode haver de mais belo para um leigo do que auxiliar a Hierarquia na realização de sua missão providencial?

Uma rápida reflexão elucidará nosso pensamento a este respeito. O Cireneu não participou do Sacrifício Redentor de N. S. Jesus Cristo, mas colaborou humildemente com o Salvador nessa obra das obras, carregando modestamente a Cruz do Divino Redentor. Entretanto, a santa inveja de todas as gerações cristãs, durante perto de vinte séculos, se concentrou sobre essa figura de eleição, chamada à excelsa dignidade dessa “simples” colaboração. Sejamos como Cireneu: contentamo-nos em ser meros colaboradores da Hierarquia Eclesiástica, dando graças a Deus por essa grande honra, e pedindo a Nossa Senhora que nos obtenha a docilidade, obediência e fidelidade de colaboradores sans peur et sans reproche, isto é, sem medo dos adversários da Igreja, e sem qualquer falta para com a Sagrada Hierarquia.

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A A.C. tem absoluta necessidade de que esta doutrina sadia se difunda cada vez mais. Com efeito, urge que a A.C. entre por toda a parte, isto é nos colégios, nas fábricas, nos quartéis e nos escritórios das grandes organizações modernas. É este o desejo do Pontífice. E necessário se torna que esse trabalho de expansão não encontre cerradas em seu caminho tantas portas que a difusão de doutrinas errôneas cerrou.