A "Folha" publicou, há pouco, um
interessante artigo de uma jornalista inglesa, Freda Utley, que suscita, a respeito do mundo de pós-guerra,
problemas dignos de atento exame.
Mostra aquela publicista britânica que a
necessidade de preparar a guerra total contra o III Reich e o Japão está forçando as
potências democráticas a intervir em todas as esferas da atividade privada.
Este fenômeno é patente. Com efeito, "guerra total" significa a
mobilização de todos os recursos nacionais. Logo significa, implicitamente, a
direção e coordenação de todas as atividades pelo Estado. Portanto, implica no
estabelecimento de uma ordem de coisas tipicamente totalitária. Não é preciso
ter sequer dois grãos de talento para perceber que é este o único meio de
vencer a coligação nazi-nipônica. Uma transitória
imersão no totalitarismo é para todos os países anti-totalitários
uma fundamental necessidade imposta pelas modernas condições de luta.
Até aí, as considerações da articulista são
irrepreensíveis. Entretanto, não podemos dizer o mesmo de suas demais
reflexões. Acentua ela — e nisto ainda estamos de acordo — que o liberalismo
democrático fracassou inteiramente, pelo que não se pode pensar em um retorno
às fórmulas políticas do século passado. Acrescenta — e nisto já estamos menos
de acordo — que a profunda perturbação de todas as atividades sociais, que já
se pode prever depois da guerra, será tão profunda, que os governos dos países
democráticos não terão remédio senão praticar uma intervenção sistemática em
todas as atividades sociais, individuais, sob pena de votar as massas populares
das nações vencedoras — que dizer-se então das nações vencidas! — a uma verdadeira
catástrofe. Tudo isto posto, - conclui a articulista - que o jogo inelutável, e
por assim dizer mecânico das circunstâncias, arrastará o mundo democrático à
adoção de processos de governo tipicamente totalitários de tal sorte que,
vencedora no campo de batalha, a democracia correria o risco de soçobrar nos
próprios gabinetes dos países vencedores.
Assim, desde já se entrevem futuros e grandes
perigos para as democracias que deverão encontrar uma fórmula para sobreviver a
esta nova crise. Que fórmula? A articulista não o sabe. Por isto, seu artigo
termina com um apelo mais ou menos explícito para que todos trabalhem até que
encontrem a panacéia de uma democracia que saiba não ser liberal, nem
totalitária.
* * *
Muito há de sensato no pessimismo destas previsões.
Mas nem por isto achamos que elas se justificam inteiramente. Por mais
profundas que sejam as comoções sociais de post-guerra
nos países vencedores, elas não serão talvez muito mais fortes do que em 1918.
Por outro lado, admitir que a salvaguarda dos interesses nacionais durante tais
comoções exija necessariamente o sacrifício quase completo, ou quiçá completo,
da autonomia das iniciativas particulares é um erro. Certamente, nos momentos
de crise a autoridade precisa de ser reforçada. Mas, seria o caso de se
perguntar se, depois de alguns anos de violentíssima torção de toda a vida
econômica e social, a verdadeira sabedoria não consistiria, ao menos em larga
escala, em abster-se em matéria econômica e social de novas intervenções falseadoras, permitindo que a liberdade e espontaneidade de
ação dos particulares reconduzisse lentamente a sociedade a um regime real e
não fictício, espontâneo e não forçado, vital e não apenas artificial.
Os que só vêem uma possibilidade de ordem e
grandeza nos campos em que o Estado suprime inteiramente a liberdade das
iniciativas individuais, adotam princípios tipicamente totalitários, e por uma
curiosa inversão entendem que "todo o bem que os particulares fazem é mal
feito; e todo o mal que fazem é bem feito". Sem que neguemos a importância
da ação do Estado, salutar às vezes e indispensável outras, livre-nos Deus de
chegar a tão hediondo e detestável excesso.
Mas está justamente aí o risco. Uma pessoa que se
manifesta sincera e até ardentemente democrática como a Sra. Freda Utley, não percebe que, no
fundo, é uma totalitária; uma alma cândida que crê romântica e ingenuamente na
onipotência da ação saneadora do Estado, no valor
infalível de suas panacéias jurídicas e orçamentárias, bem como na irremediável
e universal inocuidade da ação particular em qualquer
campo. De todos os lados, vemos aparecer mentalidades semelhantes à sua;
pessoas que desejam ardentemente a queda do Sr. Hitler e de seus satélites, mas
que, quando se ocupam do mundo de post-guerra,
revelam sempre uma mentalidade tão imbuída de espírito totalitário que quando
sonham em um mundo melhor, decorrente da vitória, não concebem uma ordem de
coisas muito diversa da que o Sr. Hitler realizou.
É esta, na realidade, a grande tragédia. Por mais que
o jogo mecânico das circunstâncias pareça justificar todas as apreensões,
nenhuma sombra é tão escura e tão vasta, no quadro de nossas perspectivas, do
que esta sedução ideológica, sub-reptícia por vezes e clara outras vezes, dos
princípios totalitários no espírito até dos que com maior ardor os combatem.
Quando, abatido Napoleão, os soberanos europeus se
reuniram em Viena com o louvável intuito de "pôr entre parêntesis a
Revolução Francesa", o mesmo fenômeno se observou.
Com efeito, mesmo os homens mais empenhados em
destruir a obra diabólica dos revolucionários, se mostraram muitas vezes
profundamente afetados por seus princípios. E foi assim que essa assembléia de
Reis aboliu — o único voto discordante foi do representante do Papa — o
organismo que era a arquitrave do sistema monárquico europeu, isto é, o Santo
Império Romano Alemão. (...)
Dar-se-á o mesmo quando se tratar de abater esse diabolicíssimo e genuiníssimo
rebento da Revolução, que é o nazismo? Queira Deus que não. De qualquer maneira, não é fora de
propósito que comecemos a nos ocupar do que, sobre o mundo de amanhã, deve
pensar um católico autêntico.