Legionário, N.º 483, 14 de dezembro de 1941

“A Pastoral Coletiva

A recente Pastoral Coletiva do Episcopado Paulista, mais um elo de ouro na série de brilhantes documentos com que nossos Bispos vem brindando a Província Eclesiástica desde a ascensão do Ex.mo e Rev.mo Sr. Dom José Gaspar de Afonseca e Silva ao sólio arquiepiscopal, constitui um verdadeiro lenitivo para a alma. Realmente, oferece-nos ele nestes dias em que a imoralidade, a anarquia e a decadência ameaçam apoderar-se do universo, um padrão de obra doutrinária e literária, em que a clareza e elevação dos conceitos se casa harmoniosamente à elegância da linguagem brilhante, de um brilho doce e discreto, de modo a fazer da forma um verdadeiro realce da verdade.

Se nos fosse lícito, cederíamos até à tentação de publicar por estas linhas um pequeno estudo literário sobre a Pastoral. Não somos peritos nesta matéria: quem quer que leia os rudes artigos de fundo do “Legionário” disto se certificará. Mas esta tarefa, além de agradável, constituiria merecida homenagem à pena ilustre que redigiu a Pastoral, vazando-a em um estilo tão típico que ninguém terá dúvida sobre sua verdadeira autoria.

Mas a verdade e o bem devem vir antes da beleza. E, por isto, deixando de lado as notáveis qualidades de estilo da Pastoral, tratemos de analisar seus tópicos mais importantes.

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Por hoje, queremos comentar esta passagem magistral, que reproduzimos na íntegra, a fim de mais uma vez a oferecer ao estudo de nossos leitores.

“SITUAÇÃO INTERNACIONAL”

Pontuemos esta carta Pastoral com algumas ligeiras considerações sobre a situação internacional, que sabemos todos sumamente aflitiva, como talvez nunca o tenha sido tanto em toda a história do mundo. Os acontecimentos envolveram de tal forma os povos, que estes hoje tateiam apenas, ignorando os caminhos de amanhã. O que é certo é que o sangue corre pelos campos da terra e pelos oceanos imensos. Se olhamos para os guerreiros, convimos em que se lhes ajusta o pensamento do salmo 13: “Suas bocas estão cheias de maldição e amargura e seus pés tão velozes para derramar sangue”. “Quarun os maledictione et amaritudine plenum est: veloces pedes eorum ad effundendum sanguinem.(16)

As arengas dos chefes militares ressumam amargor e maldições contra os adversários, enquanto os soldados se precipitam em todas as direções ou cruzam os ares em asas metálicas, para a espantosa chacina. Melancólico e tristíssimo ocaso de uma civilização que baniu o nome de Deus das convenções internacionais!

Nossa atitude perante o cataclismo deve ser profundamente cristã.

Superando mesmo as simpatias que poderíamos ter para com este ou aquele contendor, cumpre-nos bradar, cheios de horror e indignação, contra a devastação e mortandade que misera a Europa e aflige o mundo inteiro. As lágrimas de tantas viúvas e órfãos, a destruição de cidades, a fome, o extermínio de nações clamam aos céus, parecendo levantar-se dos corações triturados o lancinante ulular dos oprimidos:

Ostendisti populo tuo dura. Sujeitaste o teu povo a duras provações!(17)

Entrementes, caros diocesanos, tomemos nesta contenda o partido mais acertado: fiquemos com Deus e a Santa Igreja que na sua imperturbável serenidade tem sabido sobrepairar a todas as paixões. Condenemos com ela a injustiça, a opressão de povos inermes, a violação da palavra empenhada em solenes tratados, a supressão da independência das nações pequenas, a execução dos inocentes, a violência qualquer que seja, pelas armas ou pelo dinheiro, que tanto se eqüivalem na prática da iniquidade. Não nos é lícito almejar o aniquilamento deste ou daquele povo, de tal ou tal nação, pois cabe a todas igual direito à vida e à liberdade. Trabalhemos sim pela verdadeira paz, porfiemos pelo desarmamento do ódio, condição primeira que o Santo Padre Pio XII estabelece para a restauração do equilíbrio internacional.

Oremos diariamente por essa intenção e façamos o que o apóstolo São Paulo aconselha: quae pacis sunt, sectemur, abracemos tudo o que conduz à paz. (18) Acima de tudo, porém, vivamos vida perfeitamente cristã, cuidando de impregnar nossos atos, palavras, pensamentos e intenções, daquela sinceridade própria dos autênticos discípulos de Cristo. E se a tormenta crescer, toldando por completo o firmamento, nem mesmo então nos deixaremos saltear pelo desânimo. Ouçamos a exortação do Papa São Zeferino aos nossos irmãos do século segundo: “Depositai a vossa confiança unicamente na onipotência de Deus e transmiti aos que vierem depois de vós estas palavras da Escritura: Nosso Deus é o Deus da eternidade, que nos governa por todos os séculos dos séculos. Amém.”(19)

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Não é difícil perceber que aquilo a que a Pastoral dá o nome modesto de “algumas ligeiras considerações sobre a situação internacional”, que “pontuam” apenas o documento, é uma lapidar declaração de princípios na qual a nobre serenidade da linguagem não priva as alusões de uma fina e oportuna transparência. Não é preciso, por exemplo, depois dos históricos telegramas de Pio XII aos soberanos da Bélgica, Luxemburgo e Holanda, indagar onde se encontra a “injustiça, a opressão de povos inermes, a violação da palavra empenhada em solenes tratados, a supressão da independência das nações pequenas, a execução de inocentes, a violência qualquer que seja”, nem pensar muito para atinar a quem cabe a advertência referente ao “aniquilamento deste ou daquele povo, de tal ou tal nação”.

Bem como não é preciso ser grande observador da vida econômica de nossos dias para perceber qual o endereço da justíssima alusão sobre a “violência pelo dinheiro”, que, di-lo a Pastoral, “eqüivale à das armas na prática da iniquidade.”

 De onde tão grande clareza de visão? Dessa preocupação que a Pastoral nos recomenda: “nossa atitude perante o cataclismo deve ser profundamente cristã. Superando mesmo as simpatias que poderíamos ter para com este ou aquele contendor, cumpre-nos bradar cheios de horror e indignação contra a devastação e mortalidade que misera a Europa e aflige o mundo inteiro”.

Sim, antes de tudo, acima de tudo devemos ser filhos da Igreja, pensando e sentindo com ela. Sem isto, jamais nos será possível agir com ela. Se tanta gente perde o senso do equilíbrio católico nas atuais emergências, a culpa que tem reside em que não soube essa gente sobrepor ao patriotismo, que não é muitas vezes senão uma vergôntea do egoísmo em almas de uma formação católica deficiente, o amor de Deus, que não só é superior ao patriotismo, mas é a única fonte do patriotismo verdadeiro, nobre, puro, desinteressado e fecundo.

Ah, se muitos católicos tivessem sabido ver claramente esta obrigação, como compreenderiam melhor o “Legionário”.

 Mas o que nossas argumentações não foram suficientes para conseguir, obtenham-no pelo menos as preces e bênçãos de nossos Pastores, cujas palavras, assim fecundadas pelo Senhor, e dotadas daquela vitalidade de tudo que vem da Igreja e brota da Hierarquia, certamente tem todos os elementos para mover os corações nos quais a semente das boas intenções ainda não ficou inteiramente abafada.