A recente Pastoral Coletiva do Episcopado Paulista, mais um elo de ouro na série de brilhantes documentos
com que nossos Bispos vem brindando a Província Eclesiástica desde a ascensão
do Ex.mo e Rev.mo Sr. Dom José Gaspar de Afonseca e Silva
ao sólio arquiepiscopal, constitui um verdadeiro lenitivo para a alma.
Realmente, oferece-nos ele nestes dias em que a imoralidade, a anarquia e a
decadência ameaçam apoderar-se do universo, um padrão de obra doutrinária e
literária, em que a clareza e elevação dos conceitos se casa harmoniosamente à
elegância da linguagem brilhante, de um brilho doce e discreto, de modo a fazer
da forma um verdadeiro realce da verdade.
Se nos fosse lícito, cederíamos até à tentação de
publicar por estas linhas um pequeno estudo literário sobre a Pastoral. Não
somos peritos nesta matéria: quem quer que leia os rudes artigos de fundo do
“Legionário” disto se certificará. Mas esta tarefa, além de agradável,
constituiria merecida homenagem à pena ilustre que redigiu a Pastoral,
vazando-a em um estilo tão típico que ninguém terá dúvida sobre sua verdadeira
autoria.
* * *
Por hoje, queremos comentar esta passagem
magistral, que reproduzimos na íntegra, a fim de mais uma vez a oferecer ao
estudo de nossos leitores.
“SITUAÇÃO INTERNACIONAL”
Pontuemos esta carta Pastoral com algumas ligeiras
considerações sobre a situação internacional, que sabemos todos sumamente
aflitiva, como talvez nunca o tenha sido tanto em toda a história do mundo. Os
acontecimentos envolveram de tal forma os povos, que estes hoje tateiam apenas,
ignorando os caminhos de amanhã. O que é certo é que o sangue corre pelos
campos da terra e pelos oceanos imensos. Se olhamos para os guerreiros,
convimos em que se lhes ajusta o pensamento do salmo 13: “Suas bocas estão
cheias de maldição e amargura e seus pés tão velozes para derramar sangue”. “Quarun os maledictione
et amaritudine plenum est: veloces pedes eorum ad effundendum
sanguinem.(16)
As arengas dos chefes militares ressumam amargor e
maldições contra os adversários, enquanto os soldados se precipitam em todas as
direções ou cruzam os ares em asas metálicas, para a espantosa chacina.
Melancólico e tristíssimo ocaso de uma civilização que baniu o nome de Deus das
convenções internacionais!
Nossa atitude perante o cataclismo deve ser
profundamente cristã.
Superando mesmo as simpatias que poderíamos ter
para com este ou aquele contendor, cumpre-nos bradar, cheios de horror e
indignação, contra a devastação e mortandade que misera
a Europa e aflige o mundo inteiro. As lágrimas de tantas viúvas e órfãos, a
destruição de cidades, a fome, o extermínio de nações clamam aos céus,
parecendo levantar-se dos corações triturados o lancinante ulular dos
oprimidos:
Ostendisti populo tuo dura. Sujeitaste o teu povo
a duras provações!(17)
Entrementes, caros diocesanos, tomemos nesta
contenda o partido mais acertado: fiquemos com Deus e a Santa Igreja que na sua
imperturbável serenidade tem sabido sobrepairar a todas as paixões. Condenemos
com ela a injustiça, a opressão de povos inermes, a violação da palavra
empenhada em solenes tratados, a supressão da independência das nações
pequenas, a execução dos inocentes, a violência qualquer que seja, pelas armas
ou pelo dinheiro, que tanto se eqüivalem na prática da iniquidade. Não nos é
lícito almejar o aniquilamento deste ou daquele povo, de tal ou tal nação, pois
cabe a todas igual direito à vida e à liberdade. Trabalhemos sim pela
verdadeira paz, porfiemos pelo desarmamento do ódio, condição primeira que o
Santo Padre Pio XII estabelece para a
restauração do equilíbrio internacional.
Oremos diariamente por essa intenção e façamos o
que o apóstolo São Paulo aconselha: quae pacis sunt, sectemur,
abracemos tudo o que conduz à paz. (18) Acima de tudo, porém, vivamos vida
perfeitamente cristã, cuidando de impregnar nossos atos, palavras, pensamentos
e intenções, daquela sinceridade própria dos autênticos discípulos de Cristo. E
se a tormenta crescer, toldando por completo o firmamento, nem mesmo então nos
deixaremos saltear pelo desânimo. Ouçamos a exortação do Papa São Zeferino aos nossos irmãos
do século segundo: “Depositai a vossa confiança unicamente na onipotência de
Deus e transmiti aos que vierem depois de vós estas palavras da Escritura:
Nosso Deus é o Deus da eternidade, que nos governa por todos os séculos dos
séculos. Amém.”(19)
* * *
Não é difícil perceber que aquilo a que a Pastoral
dá o nome modesto de “algumas ligeiras considerações sobre a situação
internacional”, que “pontuam” apenas o documento, é uma lapidar declaração de
princípios na qual a nobre serenidade da linguagem não priva as alusões de uma
fina e oportuna transparência. Não é preciso, por exemplo, depois dos
históricos telegramas de Pio XII aos soberanos da
Bélgica, Luxemburgo e Holanda, indagar onde se encontra a “injustiça, a
opressão de povos inermes, a violação da palavra empenhada em solenes tratados,
a supressão da independência das nações pequenas, a execução de inocentes, a
violência qualquer que seja”, nem pensar muito para atinar a quem cabe a
advertência referente ao “aniquilamento deste ou daquele povo, de tal ou tal
nação”.
Bem como não é preciso ser grande observador da
vida econômica de nossos dias para perceber qual o endereço da justíssima
alusão sobre a “violência pelo dinheiro”, que, di-lo a Pastoral, “eqüivale à
das armas na prática da iniquidade.”
De onde tão
grande clareza de visão? Dessa preocupação que a Pastoral nos recomenda: “nossa
atitude perante o cataclismo deve ser profundamente cristã. Superando mesmo as
simpatias que poderíamos ter para com este ou aquele contendor, cumpre-nos
bradar cheios de horror e indignação contra a devastação e mortalidade que misera a Europa e aflige o mundo inteiro”.
Sim, antes de tudo, acima de tudo devemos ser
filhos da Igreja, pensando e sentindo com ela. Sem isto, jamais nos será
possível agir com ela. Se tanta gente perde o senso do equilíbrio católico nas
atuais emergências, a culpa que tem reside em que não soube essa gente sobrepor
ao patriotismo, que não é muitas vezes senão uma vergôntea do egoísmo em almas
de uma formação católica deficiente, o amor de Deus, que não só é superior ao
patriotismo, mas é a única fonte do patriotismo verdadeiro, nobre, puro,
desinteressado e fecundo.
Ah, se muitos católicos tivessem sabido ver
claramente esta obrigação, como compreenderiam melhor o “Legionário”.
Mas o que
nossas argumentações não foram suficientes para conseguir, obtenham-no pelo
menos as preces e bênçãos de nossos Pastores, cujas palavras, assim fecundadas
pelo Senhor, e dotadas daquela vitalidade de tudo que vem da Igreja e brota da
Hierarquia, certamente tem todos os elementos para mover os corações nos quais
a semente das boas intenções ainda não ficou inteiramente abafada.