Legionário, N.o 452, 11 de maio de 1941

As curas de Poá

A “Folha da Noite” publicou há dias uma série de entrevistas com médicos paulistas acerca das curas que se tem verificado em Poá, curas estas que tem beneficiado as pessoas que recebem a bênção do Rev.mo Pe. Eustachio [Pe. Eustáquio van Lieshout (1890-1943) beatificado em 2006, nota do datilógrafo], vigário daquela paróquia. Entre os entrevistados muitos são profissionais de reconhecida notoriedade e a alguns destes me prendem relações pessoais antigas e cordiais. Por todas estas razões, não pretendo dar ao presente artigo outro caráter que não o de uma retificação serena de certos conceitos que expenderam sobre o assunto, conceitos estes que colidem com a doutrina católica e, por isto, devem ser objeto de uma elucidação por parte do “Legionário”.

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A doutrina católica se caracteriza por uma coerência admirável que tem arrancado a seus próprios adversários os maiores testemunhos de admiração. Cada afirmação feita pela Igreja se liga intimamente a toda uma ordem de princípios fundamentais de que não pode ser dissociada. Negados os princípios, as conseqüências ruem por terra. E, reciprocamente, negadas as conseqüências, estão por terra os princípios.

É   exatamente isto que se observa quanto ao milagre. Afirma a Igreja que Deus, Criador  infinitamente sábio e poderoso do Universo, determinou que este se governasse por determinadas leis, que constituem as chamadas leis da natureza, cujo estudo cabe à ciência efetuar. As leis que regem o curso dos astros, as que governam o mundo mineral, vegetal e animal, todas elas devem ser estudadas pela ciência de acordo com as luzes naturais da razão humana. Este estudo não é somente legítimo, mas conveniente e necessário e por esta razão os Papas, em todo o decurso da História, não tem regateado esforços a fim de a estimular, incentivando todos os esforços humanos no sentido do desenvolvimento do saber.

Entretanto, organizando o Universo e dando à natureza as leis que a governam, Deus não alienou o supremo poder que tem sobre todas as coisas. Por isto, pode Ele a qualquer momento intervir no curso normal dos fenômenos naturais, alterando-os segundo quiser. Negá-lo seria negar a onipotência de Deus.

Evidentemente, a suspensão das leis da natureza constitui um fenômeno que atesta a existência de Deus, uma vez que evidencia a ação de um Ser estranho e superior à natureza, Ser este cuja  existência o homem ipso facto deve reconhecer.

O milagre não  é outra coisa senão isto: uma suspensão das leis da natureza, através da qual se manifesta a ação de Deus.

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       Católico, crendo na existência de Deus e sabendo que os milagres narrados pelo Antigo e Novo Testamento são fatos historicamente demonstrados e cientificamente  miraculosos, não deve sentir repugnância em admitir que estes milagres, repetindo-se como se tem repetido efetivamente em todos os séculos na Igreja Católica, ainda em nossos dias se verifiquem.

Entretanto, como as leis da natureza tem mistérios que a ciência ainda não desvendou inteiramente, não seria difícil que um espírito incauto, desprevenido ou exaltado, chegasse a atribuir caráter miraculoso a fatos que se poderiam normalmente atribuir à exclusiva ação de leis naturais ainda desconhecidas, ou talvez a leis naturais já conhecidas, mas às quais um exame superficial dos fatos supostos miraculosos não teria dado o devido valor.

Para este efeito, para o discernimento dos fatos miraculosos dos que são simplesmente naturais, a Igreja não tem melhor auxiliar do que a ciência, e não há exagero em afirmar que é com verdadeira sofreguidão que a Santa Sé se utiliza do concurso da ciência para este efeito.

Assim, não há uma só canonização que não seja proclamada com base em milagres reconhecidos tais por médicos de notoriedade, indicados pela Igreja e que estão obrigados em  consciência a empregar todos os recursos para apurar se efetivamente os fatos representam uma violação patente e incontestável de todas as leis naturais.

O mesmo se dá em Lourdes. Um bureau de investigações médicas, em cujos trabalhos tomam parte médicos de quaisquer crenças e até médicos sem crença, deve investigar rigorosamente se o doente estava realmente enfermo do mal que o levou a Lourdes e, depois da cura, verificar se esta efetivamente se deu e se causas de caráter psíquico ou fisiológico explicam a cura. É só depois de resolvidas estas questões que a cura pode ser proclamada miraculosa.

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Postas estas preliminares, não será difícil verificar-se que mais de um dos entrevistados da “Folha” – alguns dos quais, como dissemos, ilustres – emitiram sobre o conceito do que seja milagre e sobre sua possível explicação científica, afirmações inteiramente infundadas.

Vamos agora à situação em Poá, a respeito da qual correm à boca pequena no público certos comentários que queremos refutar.

Trata-se de curas miraculosas? Evidentemente há a maior liberdade de opinião a este respeito entre os católicos. Os fatos ocorridos naquela pequena localidade podem ser considerados miraculosos, ou objeto de pura sugestão. Isto depende exclusivamente da apreciação de fatores e de circunstâncias a respeito das  quais a Igreja ainda não emitiu juízo.

Entretanto há uma afirmação a fazer com vigor: é que não se trata de charlatanismo e que o que em Poá se verifica, se pode ser considerado miraculoso ou não, deve em todo o caso ser considerado com o maior respeito.

Todas as circunstâncias constituem prova do que afirmamos. A bênção que o Rev.mo Sr. Pe. Eustachio dá é feita na mais  estrita conformidade com o ritual católico e não comporta a adição de quaisquer outros ritos ou práticas. A água que ele abençoa é água natural, muitas vezes trazidas pelos próprios pacientes e, pois, sua ação não pode deixar de ser inteiramente diversa dos remédios de charlatães. Quanto ao lucro de que os charlatães são tão ávidos, ele não se verifica. Depois de um dia de trabalho exaustivo, que certamente faria adoecer pessoas menos vigorosas fisicamente, o Rev.mo Sr. Pe. Eustachio não leva consigo outra consolação senão a de ter aliviado um número considerável de sofrimentos físicos e morais. Em que, pois, o charlatanismo que, segundo acusações à boca pequena, se propala que existe em Poá?

As curas de Poá constituem fatos maravilhosos, se bem que possivelmente não miraculosos. De qualquer maneira, é em um ambiente de grande respeito que se deve observar e considerar o que ali vem ocorrendo.