A “Folha da
Noite” publicou há dias uma série de entrevistas com médicos paulistas acerca
das curas que se tem verificado em Poá, curas estas
que tem beneficiado as pessoas que recebem a bênção do Rev.mo Pe. Eustachio [Pe. Eustáquio van
Lieshout (1890-1943) beatificado em 2006, nota do
datilógrafo], vigário daquela paróquia. Entre os
entrevistados muitos são profissionais de reconhecida notoriedade e a alguns
destes me prendem relações pessoais antigas e cordiais. Por todas estas razões,
não pretendo dar ao presente artigo outro caráter que não o de uma retificação
serena de certos conceitos que expenderam sobre o assunto, conceitos estes que
colidem com a doutrina católica e, por isto, devem ser objeto de uma elucidação
por parte do “Legionário”.
* * *
A doutrina
católica se caracteriza por uma coerência admirável que tem arrancado a seus
próprios adversários os maiores testemunhos de admiração. Cada afirmação feita
pela Igreja se liga intimamente a toda uma ordem de princípios fundamentais de
que não pode ser dissociada. Negados os princípios, as conseqüências ruem por
terra. E, reciprocamente, negadas as conseqüências, estão por terra os
princípios.
É exatamente isto que se observa quanto ao
milagre. Afirma a Igreja que Deus, Criador
infinitamente sábio e poderoso do Universo, determinou que este se
governasse por determinadas leis, que constituem as chamadas leis da natureza,
cujo estudo cabe à ciência efetuar. As leis que regem o curso dos astros, as
que governam o mundo mineral, vegetal e animal, todas elas devem ser estudadas
pela ciência de acordo com as luzes naturais da razão humana. Este estudo não é
somente legítimo, mas conveniente e necessário e por esta razão os Papas, em todo
o decurso da História, não tem regateado esforços a fim de a estimular,
incentivando todos os esforços humanos no sentido do desenvolvimento do saber.
Entretanto,
organizando o Universo e dando à natureza as leis que a governam, Deus não
alienou o supremo poder que tem sobre todas as coisas. Por isto, pode Ele a
qualquer momento intervir no curso normal dos fenômenos naturais, alterando-os
segundo quiser. Negá-lo seria negar a onipotência de Deus.
Evidentemente,
a suspensão das leis da natureza constitui um fenômeno que atesta a existência
de Deus, uma vez que evidencia a ação de um Ser estranho e superior à natureza,
Ser este cuja existência o homem ipso facto deve
reconhecer.
O milagre
não é outra coisa senão isto: uma
suspensão das leis da natureza, através da qual se manifesta a ação de Deus.
* * *
Católico, crendo na existência de Deus e
sabendo que os milagres narrados pelo Antigo e Novo Testamento são fatos
historicamente demonstrados e cientificamente
miraculosos, não deve sentir repugnância em admitir que estes milagres,
repetindo-se como se tem repetido efetivamente em todos os séculos na Igreja
Católica, ainda em nossos dias se verifiquem.
Entretanto,
como as leis da natureza tem mistérios que a ciência ainda não desvendou
inteiramente, não seria difícil que um espírito incauto, desprevenido ou
exaltado, chegasse a atribuir caráter miraculoso a fatos que se poderiam
normalmente atribuir à exclusiva ação de leis naturais ainda desconhecidas, ou
talvez a leis naturais já conhecidas, mas às quais um exame superficial dos
fatos supostos miraculosos não teria dado o devido valor.
Para este
efeito, para o discernimento dos fatos miraculosos dos que são simplesmente
naturais, a Igreja não tem melhor auxiliar do que a ciência, e não há exagero
em afirmar que é com verdadeira sofreguidão que a Santa Sé se utiliza do
concurso da ciência para este efeito.
Assim, não há
uma só canonização que não seja proclamada com base em milagres reconhecidos
tais por médicos de notoriedade, indicados pela Igreja e que estão obrigados
em consciência a empregar todos os
recursos para apurar se efetivamente os fatos representam uma violação patente
e incontestável de todas as leis naturais.
O mesmo se dá
em Lourdes. Um bureau de investigações médicas,
em cujos trabalhos tomam parte médicos de quaisquer crenças e até médicos sem
crença, deve investigar rigorosamente se o doente estava realmente enfermo do
mal que o levou a Lourdes e, depois da cura,
verificar se esta efetivamente se deu e se causas de caráter psíquico ou
fisiológico explicam a cura. É só depois de resolvidas estas questões que a
cura pode ser proclamada miraculosa.
* * *
Postas estas
preliminares, não será difícil verificar-se que mais de um dos entrevistados da
“Folha” – alguns dos quais, como dissemos, ilustres – emitiram sobre o conceito
do que seja milagre e sobre sua possível explicação científica, afirmações
inteiramente infundadas.
Vamos agora à
situação em Poá, a respeito da qual correm à boca
pequena no público certos comentários que queremos refutar.
Trata-se de
curas miraculosas? Evidentemente há a maior liberdade de opinião a este respeito
entre os católicos. Os fatos ocorridos naquela pequena localidade podem ser
considerados miraculosos, ou objeto de pura sugestão. Isto depende exclusivamente
da apreciação de fatores e de circunstâncias a respeito das quais a Igreja ainda não emitiu juízo.
Entretanto há
uma afirmação a fazer com vigor: é que não se trata de charlatanismo e que o
que em Poá se verifica, se pode ser considerado
miraculoso ou não, deve em todo o caso ser considerado com o maior respeito.
Todas as
circunstâncias constituem prova do que afirmamos. A bênção que o Rev.mo Sr. Pe.
Eustachio dá é feita na mais estrita conformidade com o ritual católico e
não comporta a adição de quaisquer outros ritos ou práticas. A água que ele
abençoa é água natural, muitas vezes trazidas pelos próprios pacientes e, pois,
sua ação não pode deixar de ser inteiramente diversa dos remédios de
charlatães. Quanto ao lucro de que os charlatães são tão ávidos, ele não se
verifica. Depois de um dia de trabalho exaustivo, que certamente faria adoecer
pessoas menos vigorosas fisicamente, o Rev.mo Sr. Pe. Eustachio
não leva consigo outra consolação senão a de ter aliviado um número
considerável de sofrimentos físicos e morais. Em que, pois, o charlatanismo
que, segundo acusações à boca pequena, se propala que existe em Poá?
As curas de Poá
constituem fatos maravilhosos, se bem que possivelmente não miraculosos. De
qualquer maneira, é em um ambiente de grande respeito que se deve observar e
considerar o que ali vem ocorrendo.