Plinio Corrêa de Oliveira

 

Mais um passo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Legionário, 2 de março de 1941, N. 442

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Tornou-se um lugar comum, em todos os círculos anticomunistas, a afirmação de que o regime soviético tal qual é praticado na Rússia, não constitui senão um grosseiro falseamento das idéias igualitárias que Karl Marx pregou.

Em lugar de dar início a uma era de igualdade, o comunismo se converteu, na Rússia, em uma ditadura sanguinária de meia dúzia de privilegiados que, por detrás da máscara do comunismo, sugavam o povo russo e levavam, acobertados por um terrível regime de força, uma vida dissipada ou opulenta, em diametral contraste com os princípios essenciais do comunismo.

Evidentemente, não significa isto que a doutrina comunista seja bela e que o que nela se deve condenar é a aplicação falsa que recebe. Do comunismo de Marx pode dizer-se o que de Judas disse a Escritura: do alto da cabeça até a planta dos pés nada existe nele que seja são. Mas, sendo embora hedionda, ou antes precisamente por isto, a máscara da doutrina comunista entusiasmava as multidões cúpidas e sanguinárias de nossos dias, e por detrás delas, rindo-se da imbecilidade do homem contemporâneo, os atuais senhores do Kremlin vem submetendo a Rússia a uma tirania perto da qual a tão decantada crueldade dos Tzares não passa de um sonho dourado.

Assim, pois, entre a Rússia real e a Rússia fictícia, entre a Rússia que a III Internacional realizou e a que ela pintava para o exterior com intuito de propaganda, havia uma diferença profunda, que qualquer observador superficial poderia verificar.

* * *

O noticiário telegráfico desta semana trouxe, nesta ordem de idéias, informações preciosas. Chegou-nos pelo telégrafo a notícia de que importantes modificações seriam introduzidas na Rússia soviética. A primeira afetaria o exército. Em obediência aos pruridos revolucionários do comunismo, nunca permitiriam os ditadores russos que o exército vermelho se organizasse à moda do Ocidente, com uma hierarquia de oficiais nitidamente definida e dependente, de modo exclusivo e direto, do Ministério da Guerra. Pelo contrário, ao lado da hierarquia militar, dentro do próprio exército havia uma hierarquia civil que controlava os militares e ao mesmo tempo se incumbia da propaganda do comunismo. Essa hierarquia parecia incumbida também de mitigar o que a disciplina militar tivesse de excessivamente rígido e, assim, acomodar a vida de caserna aos princípios bolchevistas. Ora, informa-nos o telégrafo que, agora, essa hierarquia foi abolida e o exército soviético, “pondo de lado preocupações demasiadamente democráticas”, resolveu tornar mais rígida sua organização hierárquica, jogando, caserna afora, os pobres civis que ali existiam.

Por outro lado - e isto toca as raias do inconcebível - para realçar a dignidade da hierarquia militar, os sovietes restauraram para certas patentes do exército vermelho o uso do espadim decorativo, daquela mesma espada que era, antes da Revolução Francesa, distintivo de fidalguia e que ficou de tal maneira ligada à idéia de distinção e elegância aristocrática, que dela se servem com razão todos os exércitos civilizados de hoje, ainda mesmo que não tenha mais qualquer utilidade bélica, e até os inofensivos membros das Academias de Letras não julgam completa sua indumentária de gala sem que por sua vez a cinjam luzentes sobre o fardão dos grandes dias.

Evidentemente, a Rússia oficial, convencional, irreal, a Rússia que pintavam para os agitadores está morrendo e, através de sua casca em decomposição, a Rússia verdadeira está começando a mostrar sua fisionomia.

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Para tanto, contribui um importantíssimo fator. Além da “desdemocratização” do exército, outra “desdemocratização” também foi empreendida: a das fábricas. A liberdade do operário - ou antes a libertinagem do operário, pois que o comunismo jamais quis a liberdade real do operariado - era, pela legislação soviética, protegida de mil modos. Assim, em toda a indústria soviética não havia autoridade efetiva dos chefes de seção sobre os operários.

Realmente, na Rússia todas as autoridades eram proibidas, excetuada a da Tcheka. Assim, a indústria soviética conservava aparência democrática, desmentida apenas pelo fato de que o poder, que havia talvez escapado inteiramente à mão de quem de direito, se encontrava concentrada, de modo brutal e absoluto, nas mãos dos tiranos da polícia soviética.

Ora, o mesmo telegrama que anunciava a expressiva e ridícula restauração do espadim anunciava também que os chefes de oficina se veriam, de agora em diante, investidos em autoridades real, e que os sovietes passariam a lhes garantir plenamente o exercício de funções diretoras.

Para quem conhece todo o barulho feito pelos bolchevistas a respeito da “liberdade” operária, não é difícil imaginar a transformação que tudo isso significa.

* * *

Um pormenor, entretanto, muito interessante em tudo isto, e que reservamos expressamente para o fim, consiste em que, de agora em diante, não se exigirá mais que os militares estejam filiados ao partido comunista russo para merecerem promoção.

O que significa isto? Todo o mundo sabe que dos bolchevistas tudo se pode com razão dizer, exceto que são tolos. Ora, eles não podem ignorar o risco que corre o regime com a promoção de oficiais que se recusam a filiar-se no único partido oficial existente no país. Por que recusam eles a tal filiação, quando esta lhes traria todas as vantagens possíveis? Evidentemente, a razão não pode ser outra senão esta: tais oficiais não apoiam o partido. Ora, sua promoção o que significa neste caso? Não é preciso ser um Machiavel para responder a isto.

Assim, pois, o comunismo começa a rejeitar a máscara comunista sem rejeitar nem seu espírito, nem seus processos. A Rússia real, a Rússia objetiva, a Rússia que os comunistas quiseram fazer e fizeram de fato quando estavam “com a faca e o queijo na mão”, esta Rússia se despe do “travesti” comunista e aparece tal e qual é aos olhos do mundo inteiro: oligárquica, autoritária, tirânica, absorvente, perigosa.

Evidentemente, o que pode significar isso? Que os comunistas estão ensaiando alguma tática nova. Qual será ela? Ainda é cedo para dizê-lo. Mas nossa geração, que já assistiu à aliança de quase todas as potências do pacto anti-Komintern com a Rússia, assistirá, talvez, a alguma outra cena do gênero. Será, por exemplo, a Rússia se transformar em potência anti-Komintern. E se não for isso, será qualquer outra farsa neste gênero. Os ingênuos que se preparem.

Deve haver pelo ar algum “menu” rico em fraudes de toda ordem e que estou certo de que, com sua voracidade habitual, não deixarão de deglutir e degustar a todas elas, sem exceção.


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