É regra psicológica elementar que qualquer fato que
nos causa ou uma grande irritação ou um grande tédio, ou finalmente um grande
contentamento, se perpetua, em geral, em nossa recordação.
Por esta razão, ou pelo menos em conseqüência das
duas primeiras, espero que alguns dos leitores do “Legionário” ainda não se
tenham esquecido de um artigo que escrevi sobre o lema pontifício “opus justitiae pax”. Este lema teve, no mundo contemporâneo, uma tal
repercussão, tantos foram os discursos de gregos e troianos falando sobre “paz
com justiça”, e tão numerosas foram as aplicações indébitas que recebeu, que o
assunto bem merece ser mais uma vez tratado no “Legionário”.
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Em síntese, o que disse em meu artigo foi simples.
Outra coisa não fiz senão analisar os vários termos da máxima de Pio XII. Para que se compreenda em que sentido “a paz é fruto da
justiça”, é necessário, evidentemente, que se tenha um conceito certo sobre o
que seja “paz” e o que seja “justiça”. No meu mencionado artigo, tratei
sobretudo de mostrar o que era a paz. A paz, segundo São Tomás de Aquino
[citando Santo Agostinho, n.d.c.], é a
tranqüilidade da ordem. A definição do Santo Doutor deixa entrever que há duas
espécies de tranqüilidade: a que provém da ordem e a que provém da desordem.
Tome-se um adolescente saudável que dorme. Todo o seu físico está em uma ordem
perfeita. Todos os órgãos funcionam admiravelmente bem. Nenhuma dor, nenhum
mal-estar lhe perturba o repouso. A saúde, que é a ordem do corpo, gera nele
uma tranqüilidade física que se traduz freqüentemente pela placidez do sono.
Fisicamente, o sono é, para este adolescente, uma situação de paz, pois que é
um momento de tranqüilidade gerada pela sua ordem orgânica.
* * *
O mesmo conceito se pode aplicar a um povo.
Suponha-se que nele tudo se encontre em ordem: as inteligências, pela posse
segura e firme da Verdade que é a Religião Católica; as vontades, pela sua
vigorosa adesão à virtude que a Igreja ensina e ajuda a praticar; as
sensibilidades, pelo completo domínio a que a sujeitaram a inteligência e a
vontade; os corpos, pela existência de um alto padrão coletivo de saúde; a vida
econômica, por um perfeito aproveitamento dos abundantes recursos naturais do
lugar. Evidentemente, uma grande e benfazeja tranqüilidade reinará sobre toda a
sociedade, como fecundo e feliz transbordamento da
tranqüilidade interior de cada alma. Esta tranqüilidade completa, decorrente da
ordem intelectual, moral e econômica existente no país, é o que se pode chamar
paz: será a paz interior. A paz externa se somará a esta, se também as relações
do país com outros povos estiver em ordem.
Assim, a paz é realmente a tranqüilidade da ordem.
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Retomemos o exemplo do adolescente. Em dado
momento, durante seu sono plácido, alguma perturbação orgânica ocorre: será,
por exemplo, uma nevralgia violentíssima. Imediatamente, com a cessação da
ordem orgânica, desaparecerá a paz: o sono cessa, e o paciente começa a dar
mostras agudas da sua dor. É a desordem, gerando a intranqüilidade. Imagine-se,
entretanto, que a dor aumente tanto que chegue a causar um desmaio do paciente:
a desordem orgânica terá chegado a seu auge, e a perda dos sentidos e a
completa tranqüilidade do desmaio não serão senão a consumação da desordem
física. Essa desordem, exatamente por se ter tornado muito aguda e ter com isto
suprimido todos os meios de resistência, causará, com a aparente cessação da
reação orgânica, uma tranqüilidade profunda. Esta tranqüilidade será o reinado
da desordem, será o cúmulo da desordem, será a desordem erigida em soberania
absoluta do corpo: ela não será senão uma caricatura da tranqüilidade da ordem.
Em suma, o sono do adolescente, tranqüilo e
saudável, e o desmaio profundo e perigoso que imaginamos em seguida, estão nos
extremos opostos. Nos exemplos que figuramos, o maior bem orgânico do corpo
terá sido a tranqüilidade da ordem; a intranqüilidade decorrente da desordem
será um mal; mas o mal supremo será sem dúvida a tranqüilidade da desordem, ou
seja o desmaio, para não dizer a morte.
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O mesmo conceito se pode aplicar à vida espiritual.
Tome-se um homem de consciência limpa e reta: sua consciência estará em ordem,
e esta ordem gerará nele uma tranqüilidade que se chama paz. O que não se tem
dito e escrito sobre os encantos da paz de consciência! E no que consistem
estes encantos senão na suave e deleitosa tranqüilidade que a ordem origina?
Se, por desgraça, a consciência deste homem passa a ser perturbada por uma ação
má, esta perturbação suprime a ordem espiritual e imediatamente a paz
desaparece. É a luta terrível dos remorsos que cruciam a alma, e, ou a elevam
pela humildade e pelo auxílio da graça de Deus até as alturas da contrição, ou
a abatem, pelo desprezo da graça e pelo desespero, até os extremos a que Judas chegou.
Imagine-se, entretanto, que nesta alma desgraçada,
pouco a pouco, os remorsos vão desaparecendo
até se transformarem em um vago rumor, que só de quando em vez perturba a
consciência, logo abafado pelo ruído das distrações mundanas. Evidentemente, o
desaparecimento do remorso gera o desaparecimento da luta espiritual, e uma
tranqüilidade embrutecida e opaca baixa sobre aquela alma em que os últimos
lampejos de virtude se extinguiram.
Nesta alma, haverá novamente tranqüilidade.
Mas uma tranqüilidade que, sendo o triunfo da
desordem, constitui uma desgraça mil vezes maior que a intranqüilidade das
torturas de consciência, e se encontra no extremo oposto da tranqüilidade
ordenada e feliz, em uma palavra da paz de consciência autêntica, do homem
limpo e reto de espírito.
Para resumir: a tranqüilidade da ordem é um grande
bem, e só ela merece o nome de paz; a luta gerada pela desordem é um mal
incontestável, mas o maior dos males será, certamente, a tranqüilidade da
desordem, a tranqüilidade das consciências embrutecidas no vício, dos corpos
desmaiados pela moléstia, dos cemitérios onde a morte campeia como soberana, e
onde não penetra nada que seja vivo.
* * *
Estes conceitos merecem ser transpostos para o
plano internacional. Só merece o nome de verdadeira paz a tranqüilidade decorrente da ordem nas relações entre as nações. E como
a ordem supõe obediência a Deus, só haverá ordem internacional quando houver obediência à Lei de Deus nas relações
entre os povos.
Mas o assunto é por demais grave para que nos
esquivemos de falar mais concretamente. A Lei de Deus não reinará entre os
povos se prevalecer como princípio de moral internacional que os povos grandes
tenham direito de absorver os povos pequenos; a Lei de Deus não reinará entre os
povos se a igualdade natural e fundamental entre todos os povos for contestada,
e um povo reputado superior a todos os outros for tido como termo supremo de
toda a moral, o possuidor legítimo e natural de todas as riquezas, o patrão
nato de todos os outros povos, a flor orgulhosa de civilização e de cultura,
que, se consente em colaborar com outros povos, só o fará sob a condição de se
apropriar unilateralmente de todos os esforços
aceitando em benefício de sua grandeza o concurso do suor e do sangue dos outros
povos, como uma flor aceitaria, orgulhosa, o inevitável concurso que, para sua
beleza, prestaria o adubo de que ela se alimentasse.
Evidentemente, violações da Lei de Deus sempre as
houve e sempre as haverá, com freqüência maior ou menor, na História da
humanidade. Mas que se transforme a violação em direito, a desordem em
hierarquia legítima e permanente, e se arvore como princípio básico e
fundamental aquilo que é a negação radical e absoluta de toda a Lei de Deus, há
nisto uma desordem monstruosa e profunda, com a tendência de se tornar
definitiva, que deve apavorar todo o espírito em que ainda bruxuleiam alguns
lampejos, já não direi do senso católico, mas de simples e reta razão natural.
Com efeito, o risco a que aludimos não consiste em uma simples injustiça. É na
glorificação da injustiça como tal. É na consolidação da injustiça. É na
entronização da injustiça como regra fundamental de ação e norma basilar das
relações entre os povos.
* * *
A paz internacional
será uma paz autêntica se ela for a conseqüência da aplicação dos princípios da
Lei de Deus à vida internacional. Realmente, a Lei cumprida gera ordem, e a
ordem gera a tranqüilidade, e esta tranqüilidade da ordem será a paz.
Será uma desgraça, já é agora uma desgraça
catastrófica, que a tranqüilidade da ordem seja violada, e que esta violação
traga lutas cruentas como aquelas que atualmente assistimos. A humanidade
contemporânea pode ser comparada a um homem doente que se contorce tragicamente
nos paroxismos da dor. E este espetáculo não pode deixar de concitar à piedade
e à prece os espíritos compassivos.
Mas por mais trágicas que sejam as contorções, por
mais pavorosa que seja a intranqüilidade dantesca da
desordem a que presenciamos, há um mal ainda maior: é a tranqüilidade da
desordem.
Realmente, se a moléstia é pior do que a saúde, a
morte é pior do que a moléstia. Um mundo que se tranqüilize na desordem, do
qual desapareça qualquer reação de vulto contra a desordem cristalizada em
instituto de direito internacional, é um mundo mil vezes mais indigente, mais
desamparado e mais infeliz do que aquele que ainda dispõe de heróis em que pode
confiar, ainda conta com exércitos atrás dos quais se possa escudar, ainda vê
luzir, com a esperança de uma próxima vitória do Bem, a possibilidade de uma
ordem completa não tardar a reinar.
* * *
Por isso, é que Pio XII, se deseja a paz, só a deseja com ordem. E por isso é que
cometem um pavoroso atentado contra o senso católico aqueles que, desgovernados
por uma sensibilidade mórbida, preferem a paz na abominação e na desordem, em
vez de que venha logo a paz com ordem, que todos devemos pedir a Deus.