Legionário, N.º 433, 29 de dezembro de 1940

Justitia

É regra psicológica elementar que qualquer fato que nos causa ou uma grande irritação ou um grande tédio, ou finalmente um grande contentamento, se perpetua, em geral, em nossa recordação.

Por esta razão, ou pelo menos em conseqüência das duas primeiras, espero que alguns dos leitores do “Legionário” ainda não se tenham esquecido de um artigo que escrevi sobre o lema pontifício “opus justitiae pax”. Este lema teve, no mundo contemporâneo, uma tal repercussão, tantos foram os discursos de gregos e troianos falando sobre “paz com justiça”, e tão numerosas foram as aplicações indébitas que recebeu, que o assunto bem merece ser mais uma vez tratado no “Legionário”.

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Em síntese, o que disse em meu artigo foi simples. Outra coisa não fiz senão analisar os vários termos da máxima de Pio XII. Para que se compreenda em que sentido “a paz é fruto da justiça”, é necessário, evidentemente, que se tenha um conceito certo sobre o que seja “paz” e o que seja “justiça”. No meu mencionado artigo, tratei sobretudo de mostrar o que era a paz. A paz, segundo São Tomás de Aquino [citando Santo Agostinho, n.d.c.], é a tranqüilidade da ordem. A definição do Santo Doutor deixa entrever que há duas espécies de tranqüilidade: a que provém da ordem e a que provém da desordem. Tome-se um adolescente saudável que dorme. Todo o seu físico está em uma ordem perfeita. Todos os órgãos funcionam admiravelmente bem. Nenhuma dor, nenhum mal-estar lhe perturba o repouso. A saúde, que é a ordem do corpo, gera nele uma tranqüilidade física que se traduz freqüentemente pela placidez do sono. Fisicamente, o sono é, para este adolescente, uma situação de paz, pois que é um momento de tranqüilidade gerada pela sua ordem orgânica.

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O mesmo conceito se pode aplicar a um povo. Suponha-se que nele tudo se encontre em ordem: as inteligências, pela posse segura e firme da Verdade que é a Religião Católica; as vontades, pela sua vigorosa adesão à virtude que a Igreja ensina e ajuda a praticar; as sensibilidades, pelo completo domínio a que a sujeitaram a inteligência e a vontade; os corpos, pela existência de um alto padrão coletivo de saúde; a vida econômica, por um perfeito aproveitamento dos abundantes recursos naturais do lugar. Evidentemente, uma grande e benfazeja tranqüilidade reinará sobre toda a sociedade, como fecundo e feliz transbordamento da tranqüilidade interior de cada alma. Esta tranqüilidade completa, decorrente da ordem intelectual, moral e econômica existente no país, é o que se pode chamar paz: será a paz interior. A paz externa se somará a esta, se também as relações do país com outros povos estiver em ordem.

Assim, a paz é realmente a tranqüilidade da ordem.

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Retomemos o exemplo do adolescente. Em dado momento, durante seu sono plácido, alguma perturbação orgânica ocorre: será, por exemplo, uma nevralgia violentíssima. Imediatamente, com a cessação da ordem orgânica, desaparecerá a paz: o sono cessa, e o paciente começa a dar mostras agudas da sua dor. É a desordem, gerando a intranqüilidade. Imagine-se, entretanto, que a dor aumente tanto que chegue a causar um desmaio do paciente: a desordem orgânica terá chegado a seu auge, e a perda dos sentidos e a completa tranqüilidade do desmaio não serão senão a consumação da desordem física. Essa desordem, exatamente por se ter tornado muito aguda e ter com isto suprimido todos os meios de resistência, causará, com a aparente cessação da reação orgânica, uma tranqüilidade profunda. Esta tranqüilidade será o reinado da desordem, será o cúmulo da desordem, será a desordem erigida em soberania absoluta do corpo: ela não será senão uma caricatura da tranqüilidade da ordem.

Em suma, o sono do adolescente, tranqüilo e saudável, e o desmaio profundo e perigoso que imaginamos em seguida, estão nos extremos opostos. Nos exemplos que figuramos, o maior bem orgânico do corpo terá sido a tranqüilidade da ordem; a intranqüilidade decorrente da desordem será um mal; mas o mal supremo será sem dúvida a tranqüilidade da desordem, ou seja o desmaio, para não dizer a morte.

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O mesmo conceito se pode aplicar à vida espiritual. Tome-se um homem de consciência limpa e reta: sua consciência estará em ordem, e esta ordem gerará nele uma tranqüilidade que se chama paz. O que não se tem dito e escrito sobre os encantos da paz de consciência! E no que consistem estes encantos senão na suave e deleitosa tranqüilidade que a ordem origina? Se, por desgraça, a consciência deste homem passa a ser perturbada por uma ação má, esta perturbação suprime a ordem espiritual e imediatamente a paz desaparece. É a luta terrível dos remorsos que cruciam a alma, e, ou a elevam pela humildade e pelo auxílio da graça de Deus até as alturas da contrição, ou a abatem, pelo desprezo da graça e pelo desespero, até os extremos a que Judas chegou.

Imagine-se, entretanto, que nesta alma desgraçada, pouco a pouco, os remorsos vão desaparecendo até se transformarem em um vago rumor, que só de quando em vez perturba a consciência, logo abafado pelo ruído das distrações mundanas. Evidentemente, o desaparecimento do remorso gera o desaparecimento da luta espiritual, e uma tranqüilidade embrutecida e opaca baixa sobre aquela alma em que os últimos lampejos de virtude se extinguiram.

Nesta alma, haverá novamente tranqüilidade.

Mas uma tranqüilidade que, sendo o triunfo da desordem, constitui uma desgraça mil vezes maior que a intranqüilidade das torturas de consciência, e se encontra no extremo oposto da tranqüilidade ordenada e feliz, em uma palavra da paz de consciência autêntica, do homem limpo e reto de espírito.

Para resumir: a tranqüilidade da ordem é um grande bem, e só ela merece o nome de paz; a luta gerada pela desordem é um mal incontestável, mas o maior dos males será, certamente, a tranqüilidade da desordem, a tranqüilidade das consciências embrutecidas no vício, dos corpos desmaiados pela moléstia, dos cemitérios onde a morte campeia como soberana, e onde não penetra nada que seja vivo.

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Estes conceitos merecem ser transpostos para o plano internacional. Só merece o nome de verdadeira paz a tranqüilidade decorrente da ordem nas relações entre as nações. E como a ordem supõe obediência a Deus, só haverá ordem internacional quando  houver obediência à Lei de Deus nas relações entre os povos.

Mas o assunto é por demais grave para que nos esquivemos de falar mais concretamente. A Lei de Deus não reinará entre os povos se prevalecer como princípio de moral internacional que os povos grandes tenham direito de absorver os povos pequenos; a Lei de Deus não reinará entre os povos se a igualdade natural e fundamental entre todos os povos for contestada, e um povo reputado superior a todos os outros for tido como termo supremo de toda a moral, o possuidor legítimo e natural de todas as riquezas, o patrão nato de todos os outros povos, a flor orgulhosa de civilização e de cultura, que, se consente em colaborar com outros povos, só o fará sob a condição de se apropriar unilateralmente de todos os esforços aceitando em benefício de sua grandeza o concurso do suor e do sangue dos outros povos, como uma flor aceitaria, orgulhosa, o inevitável concurso que, para sua beleza, prestaria o adubo de que ela se alimentasse.

Evidentemente, violações da Lei de Deus sempre as houve e sempre as haverá, com freqüência maior ou menor, na História da humanidade. Mas que se transforme a violação em direito, a desordem em hierarquia legítima e permanente, e se arvore como princípio básico e fundamental aquilo que é a negação radical e absoluta de toda a Lei de Deus, há nisto uma desordem monstruosa e profunda, com a tendência de se tornar definitiva, que deve apavorar todo o espírito em que ainda bruxuleiam alguns lampejos, já não direi do senso católico, mas de simples e reta razão natural. Com efeito, o risco a que aludimos não consiste em uma simples injustiça. É na glorificação da injustiça como tal. É na consolidação da injustiça. É na entronização da injustiça como regra fundamental de ação e norma basilar das relações entre os povos.

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A paz internacional será uma paz autêntica se ela for a conseqüência da aplicação dos princípios da Lei de Deus à vida internacional. Realmente, a Lei cumprida gera ordem, e a ordem gera a tranqüilidade, e esta tranqüilidade da ordem será a paz.

Será uma desgraça, já é agora uma desgraça catastrófica, que a tranqüilidade da ordem seja violada, e que esta violação traga lutas cruentas como aquelas que atualmente assistimos. A humanidade contemporânea pode ser comparada a um homem doente que se contorce tragicamente nos paroxismos da dor. E este espetáculo não pode deixar de concitar à piedade e à prece os espíritos compassivos.

Mas por mais trágicas que sejam as contorções, por mais pavorosa que seja a intranqüilidade dantesca da desordem a que presenciamos, há um mal ainda maior: é a tranqüilidade da desordem.

Realmente, se a moléstia é pior do que a saúde, a morte é pior do que a moléstia. Um mundo que se tranqüilize na desordem, do qual desapareça qualquer reação de vulto contra a desordem cristalizada em instituto de direito internacional, é um mundo mil vezes mais indigente, mais desamparado e mais infeliz do que aquele que ainda dispõe de heróis em que pode confiar, ainda conta com exércitos atrás dos quais se possa escudar, ainda vê luzir, com a esperança de uma próxima vitória do Bem, a possibilidade de uma ordem completa não tardar a reinar.

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Por isso, é que Pio XII, se deseja a paz, só a deseja com ordem. E por isso é que cometem um pavoroso atentado contra o senso católico aqueles que, desgovernados por uma sensibilidade mórbida, preferem a paz na abominação e na desordem, em vez de que venha logo a paz com ordem, que todos devemos pedir a Deus.