Legionário, N.º 431, 15 de dezembro de 1940

A Pastoral Coletiva

A recente Carta Pastoral do Episcopado Paulista a bem dizer não merecia comentários. Constitui ela um documento de clareza meridiana que, pela precisão dos conceitos e limpidez do estilo, se pode fornecer alimento espiritual substancioso e fino para os espíritos do mais alto quilate, nem por isto deixa de estar ao acesso das inteligências menos cultivadas. Cada qual, rico ou pobre, inteligente ou não, culto ou inculto, encontrará naquelas linhas ao mesmo tempo ardentes e suaves, em que o rigor das previsões verdadeiramente apocalípticas não perturba a serenidade do esforço evangelizador, as palavras oportunas para que se compreenda a grande hora por que passa o Brasil contemporâneo.

A Pastoral Coletiva está cheia desses aparentes contrastes, de que é tão fecunda a doutrina católica, que mostram aos espíritos equilibrados e sedentos de verdade, que a Igreja é a depositária da verdade plena, e que por isto exatamente, todas as verdades por mais antagônicas que pareçam, nela encontram seu lugar, e dentro dela se fundem em um maravilhoso corpo de doutrina.

Na contemplação de alguns destes aparentes contrastes, encontrará nossa alma de católicos aquela edificação tão conveniente ao pleno aproveitamento dos frutos espirituais que Ela nos propiciou.

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A Pastoral constitui, nos seus dizeres, um modelo de equilíbrio. O realismo católico nela reluz plenamente. Nem se encontram nela as previsões negras que desanimam os melhores esforços e abatem as mais impávidas coragens, nem se pode nela apontar aquele otimismo fácil, imprevidente que fecha os olhos aos perigos com a esperança de, assim, os eliminar. Não faltam nela quadros aterradores, e a comparação entre a atual situação moral de nosso povo e a do povo francês antes da grande catástrofe, é bastante eloqüente para mostrar que o Episcopado, fiel aos imperativos da doutrina de que é guardião, vê na descristianização de nosso povo uma rota de ruínas e de misérias cujo vulto assombroso já não se encontra tão longe de nós. Entretanto, uma serena tranqüilidade envolve as palavras de fogo de nossos Bispos, e a impressão geral que a Pastoral traduz é de que, olhos postos em Nosso Senhor Jesus Cristo que guia sempre a Sua Igreja, eles confiam sem reservas no Divino Mestre, e não se  absorvem a tal ponto na contemplação dos perigos que fuja aos seus olhos o espetáculo desolador das numerosas possibilidades de salvação e de restauração que ainda estão abertas para nosso povo, desde que ele se vote sem reservas ao serviço da Esposa de Cristo.

Há otimismos que desanimam porque conduzem à inércia. Há pessimismos que abatem porque reduzem ao desespero. A Pastoral se encontra a igual distância de ambos os perigos. Se ela mostra o abismo hiante que se abre a nossos pés, fá-lo não para que deixemos resvalar pela rampa escorregadia, mas para que nos agarremos com vigor às coisas da salvação que ainda estão a nosso alcance. Se ela deixa transparecer uma firme esperança de vitória, fá-lo em termos que não nos tiram a convicção de que a vitória está condicionada a nossa correspondência para com a graça de Deus, e de que tanto mais somos obrigados a lutar, quanto mais numerosas e mais eficazes são as armas que a Providencia acumula em nossas mãos.

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Um ponto de grande importância na formação de nosso povo, está no exato equilíbrio entre as preocupações individuais e sociais em matéria religiosa. Há, a este respeito, dois escolhos que devemos cuidadosamente evitar. Não faltam, infelizmente, pessoas que julgam cumprir inteiramente seus deveres de católicos desde que cuidem única e exclusivamente de sua própria vida espiritual. A exaltação da Santa Igreja, a humilhação das heresias, a debelação da imoralidade contemporânea, o triunfo das missões ou da Ação Católica, são para elas coisas tão indiferentes e tão longínquas, quanto os anéis de Saturno ou as manchas solares. Evidentemente, tal excesso não provém de um exagero da vida interior, mas de uma deficiência de vida interior. De fato, esta indiferença outra coisa não significa senão pouco amor de Deus. E este pouco amor de Deus de outra coisa não resulta senão de uma vida espiritual defeituosa. Entretanto, a verdade não deixa de ser esta: há muita gente que leva a preocupação da salvação individual a ponto de se desinteressar plenamente dos grandes problemas sociais de nossa época, que afetam a fundo a salvação de milhões de almas.

Não hesito, no entanto, em afirmar que mais perigoso ainda é o extremo oposto. Quantas pessoas não conheço que cifram seus alimentos espirituais na leitura de autores que tratam de questões sociais? O problema operário, o serviço social à Ação Católica, tudo isto, para elas, se cifra em ação, ação e mais ação. Quanto à vida interior, que é o fundamento de toda essa ação, que é a condição de seu mérito, de seu sucesso, de sua própria fidelidade ao espírito da Igreja, nada dizem. Tem-se a impressão de que elas não tem suas almas a salvar, e que a salvação da alma do próximo é, para elas, a única preocupação. E, com isto, fica de lado a grave interrogação do santo que exclamou, para proveito seu, de seus contemporâneos, e de todos os homens vindouros, a grave pergunta de que jamais nos deveríamos esquecer: que lucra o homem em ganhar o mundo inteiro, se vier a perder sua própria alma?

Ainda a este respeito, a Pastoral é de um equilíbrio que a todos nos dever servir de tema de meditação. Seria difícil dar aos problemas sociais do apostolado uma atenção maior do que a que lhe votou a Pastoral. Todas as questões atuais, que se avolumam, quer pela propagação das seitas heréticas, quer pela influência de doutrinas jurídicas alienígenas, encontraram na Pastoral palavras claras, sóbrias e fortes. Entretanto, esquadrinhe-se a essência de todas as soluções propostas e ver-se-á que essa Pastoral, tão ardentemente social em todas as preocupações, baseia na renovação do indivíduo, de cada indivíduo em particular, toda a obra que recomenda e a que se propõe os Bispos a realizar.

É falsa e falaciosa a questão de saber se a vida interior ou as preocupações devem ter preponderância em nossa preocupação. Queremos ter verdadeiro espírito de apostolado? Tenhamos vida interior autêntica. Se nossa vida interior até agora não nos conduziu à forma de apostolado que nossas circunstâncias permitem, não tenhamos dúvida: não temos verdadeira vida interior.

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Os Bispos da Província Eclesiástica de São Paulo falaram claro, e falaram alto. Com franqueza apostólica, os olhos postos em Deus, disseram aos grandes e aos pequenos, aos poderosos e aos humildes, aos bons e aos maus, ao governo e aos súditos, as palavras de admoestação, de direção e de conforto a que os obrigava gravemente o encargo de seu múnus. Depois desta Pastoral, a ninguém mais será lícito alegar ignorância do que a Igreja quer, do que a Igreja pensa, do que a Igreja manda. Sua posição está assumida, sua doutrina está definida mais uma vez, seu ensinamento está dado.

Resta, agora, a cada um meditar estas palavras, e aproveitar a visita que Deus faz a seu povo pela palavra dos Pastores que o Espírito Santo colocou à testa da Igreja de Deus, para a governar.