Telegrama publicado nesta semana pelos jornais
diários informa-nos de que no Peru, o Senado aprovou o confisco dos bens das Congregações
Religiosas, pelo que consta haver a Santa Sé incumbido seu
Núncio em Lima de apresentar ao governo da República vizinha uma nota de
protesto categórico contra tal fato.
Na História já centenária das repúblicas
latino-americanas, esta perseguição está muito longe de ser a primeira. Surdas
algumas, clamorosas outras, violentas todas, as perseguições tem sacudido
constantemente, ora uma, ora outra das novas Nações, trazendo em constante
sobressalto a Santa Igreja, ou nos países marginais do Pacífico, ou nos do Atlântico.
Do Uruguai ao México, passando pelo Brasil, a Igreja tem conhecido, ao par de
fases longas de tranqüilidade, também duras provações, e a História religiosa
da América bem se pode assemelhar às condições dos terrenos vulcânicos, onde
constantemente, ora em um ponto, ora em outro, há um abalo de terra que abre no
solo algumas frinchas, põe abaixo alguns edifícios, despeja sobre as populações
operosas alguma lava, sem contudo determinar uma daquelas catástrofes completas
como, por exemplo, foi a de Pompéia.
Sabe-se geralmente que as populações que habitam
terrenos desta natureza adquirem, com o tempo, uma estranha tranqüilidade. A
intermitência do mal, suas proporções habitualmente moderadas, o costume de
contemplar o perigo e de por assim dizer dormir e até dançar sobre ele, caleja
os espíritos e os tempera contra qualquer impressão de medo. De sorte que se
algum dia uma grande catástrofe de proporções pompeianas
sobrevier, o habitante pacato e vacinado contra o medo só reconhecerá a
autenticidade do perigo quando as lavas já tiverem soterrado metade de sua casa
e já não houver tempo de fugir. Atribuo a isto a relativa imprevidência da
opinião católica mexicana em face do perigo que se adensava nos horizontes
políticos. A perseguição mexicana teve duas fases, uma legislativa e outra
executiva. Na primeira fase, fizeram-se leis truculentas contra a Igreja, mas
as pessoas as mais próximas a seus autores, quando procuradas pelos católicos,
sorriam ironicamente, dizendo tratar-se de “hispanholadas”
anti-clericais perfeitamente platônicas, contra as
quais não se deveria perder tempo de reagir, pois que, sendo profundamente
católico o povo mexicano, as autoridades seriam as primeiras a não por em
execução tais leis, que ficariam apenas como letra morta, para contentar aos
arroubos doutrinários de certos legisladores fantasistas. Assim, as leis anticatólicas se foram somando umas às outras e, enquanto
permanecia perfeitamente suportável o estado de coisas na prática,
legislativamente a situação da Igreja no México era perfeitamente calamitosa.
Mas os espíritos superiores sorriam: nada disto apresentava perigo! A prática
era tudo: que importava a teoria?
Um belo dia, entretanto, as coisas mudaram. Começou
a ferver nos arraiais anti-católicos um ardor
executivo extraordinário. Como admitir que uma República bem organizada tivesse
leis tão “modernas”, e não lhe desse execução? Ao menos em parte, era preciso
executá-las. Seria possível que o Clero, por uma ação de bastidores mantivesse
assim o país divorciado da realidade legal? Ficaria bem à Igreja pleitear a inexecução de leis já aprovadas? Os anti-clericais
entenderam que não. E, assim, da fase legislativa se passou bruscamente para a
fase executiva, e o sangue dos mártires começou a jorrar abundantemente sobre o
solo mexicano.
Isto que se deu no México, parece ter sido, em várias ocasiões, com variantes
maiores ou menores, a História habitual das perseguições religiosas na América.
Foi este, por exemplo, e entre muitos outros, o caso de Dom Vital. Tenho por incontestável que, ao tempo do Santo Bispo, a
maioria dos observadores superficiais que se debruçassem sobre a “realidade”
brasileira teria a impressão de que era ótima. A crise desencadeada pelos
Bispos de Olinda e Pará ter-lhes-á certamente causado
a impressão de um raio em céu azul. Mas foi necessário a iluminação fulgurante
deste raio para que eles percebessem que em lugar de um céu de anil, o que na
realidade havia era um céu baixo e plúmbeo, asfixiante e letal, que só com a reação
dos dois grandes Prelados se poderia clarear.
Por que tanto desconhecimento de situação objetiva,
a ponto de um conflito religioso, ocorrido no momento em que mais aguda
necessidade as circunstâncias reclamavam uma reação, ser tido como um raio em
céu sereno?
Exatamente por isto: a confiança dos católicos em
sua evidente superioridade, o ardil de seus adversários que jamais os alarmavam
inutilmente, e só lhes faziam sentir a pressão das algemas quando lhas tivessem
previamente ligado aos punhos alegando serem jóias preciosas, o hábito de
coexistir ao lado de certas efervecencias anti-clericais que se assemelhavam a rumores subterrâneos
de terremotos jamais convertidos em realidades, tudo isto concorreu
poderosamente para criar o ambiente necessário para um golpe ousado contra as
maiorias católicas.
Não é outro o caso do Peru. País tradicionalmente
católico, evidentemente sua formação ibero-americana o vincula de tal maneira
ao Catolicismo, que o Peru precisaria cortar as mais profundas raízes de seu
passado para conseguir ser efetivamente um país anticatólico.
Entretanto, a realidade dos fatos é a que lá se presencia agora: a despeito de
tudo isto, a perseguição está fervendo, e a Santa Sé se julga na contingência
de intervir.
* * *
Parece-me que duas causas, ambas muito
generalizadas na América Latina, tanto quanto se pode perceber através do
noticiário dos jornais, concorrem para isto.
A primeira delas é a ignorância religiosa. De per
si, a ignorância religiosa trás as conseqüências que todos sabemos: não pode
haver verdadeira formação religiosa sem ter por base uma instrução catequética sólida, e os inconvenientes que decorrem da
carência desta instrução são tantos, que seria verdadeiramente necessário todo
um livro para os analisar e enumerar devidamente.
No entanto, quero abordar agora um aspecto
especialmente marcante destas conseqüências. É a idéia inteiramente errônea que
forte contingente de católicos possui, entre nós, a respeito do velho âmbito de
ação da Igreja.
Pode-se afirmar, sem
medo de erro, que ainda há extensíssimas
zona da opinião pública que vivem sob a influência do preconceito errôneo
segundo o qual a Igreja goza de toda a liberdade desejável, e expande ao máximo
o seu raio de ação, quando tem a liberdade de realizar, no interior dos templos,
as funções sagradas. A legislação sobre a família, sobre o trabalho, sobre o
ensino, sobre a propriedade, a repressão à imoralidade nos cinemas, nos
teatros, no rádio, na imprensa, o combate às heresias que fervilham pelas ruas,
tudo isto constitui ou matéria inteiramente alheia à influência da Igreja, ou
ao menos é, para ela, tema perfeitamente adjetivo, de que ela deve cuidar como
preocupação absolutamente acessória, e que por isto mesmo pode ser abordada e
resolvida pelas outras correntes do pensamento inteiramente a seu
talante, sem que à Igreja assista o direito de se sentir ferida em suas
atividades essenciais.
Leão XIII, e depois dele todos os seus sucessores, tem insistido
vivamente sobre o que há de errôneo, e até de catastrófico nesta concepção.
Mas, infelizmente, esta concepção ainda possui raízes em muitos ambientes
bastante vastos da opinião pública, e forçado é dizer que até mesmo certos
católicos cultos e instruídos, aceitando embora, em tese, o pensamento
contrário como o verdadeiro, procedem na prática exatamente como se houvessem
aceito todos os erros desse funesto liberalismo.
Daí o fato de, sem demasiada irritação por parte da
opinião pública, ter sido possível aos inimigos da Igreja arrancar, à
influência desta, o ensino, a legislação do trabalho, da família, da
propriedade; a massa católica ainda não sabe, muitas vezes, que isto é
inteiramente errôneo.
Felizmente, no Brasil, já houve a este respeito
fundas modificações, e o triunfo maciço
da Liga Eleitoral Católica, sem dúvida uma das mais belas páginas de nossa vida
religiosa, prova à saciedade que os católicos já não estão dispostos a
permitir, por exemplo, sem uma verdadeira onda de protestos, que se cancelasse
o ensino religioso das escolas públicas. Mas força é reconhecer que este
trabalho de esclarecimento da opinião pública, se já tem atingido resultados
consideráveis, ainda tem muito caminho a percorrer.
***
Costuma-se alegar que, na América Latina, jamais
houve um movimento herético qualquer que atraísse, em pós de si, grandes
massas. Protestantes, espíritas, etc., jamais conseguiram alienar da Igreja o
afeto das populações. É esta uma verdade evidente e incontestável, pela qual
devemos prestar a Deus as mais humildes ações de graças. Isto não obstante, não
deixa de ser absolutamente verdadeiro que
(...) a ação da literatura
européia tem alheiado da Igreja consideráveis porções
das “elites” intelectuais. Também neste sentido, há hoje uma reação vigorosa. A
Universidade Católica Brasileira, se significa a promessa de uma vitória
próxima, também supõe vitórias anteriores das mais significativas, pois que
há algumas dezenas de anos atrás não era
possível pensar-se seriamente em tal assunto.
* * *
Entretanto, é incontestável que foi o alheamento
destas “elites” intelectuais, roubadas ontem pelo liberalismo e pelo
socialismo, e hoje por essa grande e abjeta heresia que sintetiza as duas
anteriores, e que é o nazismo, um dos responsáveis pelo fato surpreendente de
tantas nações ibero-americanas terem, ao par de massas densamente católicas,
uma produção artística, científica, literária, intelectual, que fica muitas
vezes a uma considerável distância da doutrina católica.
* * *
Estas as duas notas fundamentais. Haveria, talvez,
outras ainda a acrescentar.
Entretanto, não convém que se fique apenas na
designação do mal. O remédio não pode deixar de ser duplo: de um lado um
trabalho intenso pela santificação do Clero e aumento das vocações sacerdotais;
do outro lado, uma luta vigorosa em prol do desenvolvimento da Ação Católica, à
qual incumbe, pela ação conjugada das associações fundamentais e auxiliares,
resolver o problema no que diz respeito ao concurso dos leigos.
Aproxima-se agora o Congresso Eucarístico. Que
melhor ocasião para pedir a Nosso Senhor essas grandes graças essenciais, de
cuja obtenção depende em tão larga escala o triunfo da Santa Igreja pelas
incomensuráveis extensões da América Latina?