Legionário, N.º 428, 24 de novembro de 1940

Problemas religiosos na América Latina

Telegrama publicado nesta semana pelos jornais diários informa-nos de que no Peru, o Senado aprovou o confisco dos bens das Congregações Religiosas, pelo que consta haver a Santa Sé incumbido seu Núncio em Lima de apresentar ao governo da República vizinha uma nota de protesto categórico contra tal fato.

Na História já centenária das repúblicas latino-americanas, esta perseguição está muito longe de ser a primeira. Surdas algumas, clamorosas outras, violentas todas, as perseguições tem sacudido constantemente, ora uma, ora outra das novas Nações, trazendo em constante sobressalto a Santa Igreja, ou nos países marginais do Pacífico, ou nos do Atlântico. Do Uruguai ao México, passando pelo Brasil, a Igreja tem conhecido, ao par de fases longas de tranqüilidade, também duras provações, e a História religiosa da América bem se pode assemelhar às condições dos terrenos vulcânicos, onde constantemente, ora em um ponto, ora em outro, há um abalo de terra que abre no solo algumas frinchas, põe abaixo alguns edifícios, despeja sobre as populações operosas alguma lava, sem contudo determinar uma daquelas catástrofes completas como, por exemplo, foi a de Pompéia.

Sabe-se geralmente que as populações que habitam terrenos desta natureza adquirem, com o tempo, uma estranha tranqüilidade. A intermitência do mal, suas proporções habitualmente moderadas, o costume de contemplar o perigo e de por assim dizer dormir e até dançar sobre ele, caleja os espíritos e os tempera contra qualquer impressão de medo. De sorte que se algum dia uma grande catástrofe de proporções pompeianas sobrevier, o habitante pacato e vacinado contra o medo só reconhecerá a autenticidade do perigo quando as lavas já tiverem soterrado metade de sua casa e já não houver tempo de fugir. Atribuo a isto a relativa imprevidência da opinião católica mexicana em face do perigo que se adensava nos horizontes políticos. A perseguição mexicana teve duas fases, uma legislativa e outra executiva. Na primeira fase, fizeram-se leis truculentas contra a Igreja, mas as pessoas as mais próximas a seus autores, quando procuradas pelos católicos, sorriam ironicamente, dizendo tratar-se de “hispanholadasanti-clericais perfeitamente platônicas, contra as quais não se deveria perder tempo de reagir, pois que, sendo profundamente católico o povo mexicano, as autoridades seriam as primeiras a não por em execução tais leis, que ficariam apenas como letra morta, para contentar aos arroubos doutrinários de certos legisladores fantasistas. Assim, as leis anticatólicas se foram somando umas às outras e, enquanto permanecia perfeitamente suportável o estado de coisas na prática, legislativamente a situação da Igreja no México era perfeitamente calamitosa. Mas os espíritos superiores sorriam: nada disto apresentava perigo! A prática era tudo: que importava a teoria?

Um belo dia, entretanto, as coisas mudaram. Começou a ferver nos arraiais anti-católicos um ardor executivo extraordinário. Como admitir que uma República bem organizada tivesse leis tão “modernas”, e não lhe desse execução? Ao menos em parte, era preciso executá-las. Seria possível que o Clero, por uma ação de bastidores mantivesse assim o país divorciado da realidade legal? Ficaria bem à Igreja pleitear a inexecução de leis já aprovadas? Os anti-clericais entenderam que não. E, assim, da fase legislativa se passou bruscamente para a fase executiva, e o sangue dos mártires começou a jorrar abundantemente sobre o solo mexicano.

Isto que se deu no México, parece ter sido, em várias ocasiões, com variantes maiores ou menores, a História habitual das perseguições religiosas na América. Foi este, por exemplo, e entre muitos outros, o caso de Dom Vital. Tenho por incontestável que, ao tempo do Santo Bispo, a maioria dos observadores superficiais que se debruçassem sobre a “realidade” brasileira teria a impressão de que era ótima. A crise desencadeada pelos Bispos de Olinda e Pará ter-lhes-á certamente causado a impressão de um raio em céu azul. Mas foi necessário a iluminação fulgurante deste raio para que eles percebessem que em lugar de um céu de anil, o que na realidade havia era um céu baixo e plúmbeo, asfixiante e letal, que só com a reação dos dois grandes Prelados se poderia clarear.

Por que tanto desconhecimento de situação objetiva, a ponto de um conflito religioso, ocorrido no momento em que mais aguda necessidade as circunstâncias reclamavam uma reação, ser tido como um raio em céu sereno?

Exatamente por isto: a confiança dos católicos em sua evidente superioridade, o ardil de seus adversários que jamais os alarmavam inutilmente, e só lhes faziam sentir a pressão das algemas quando lhas tivessem previamente ligado aos punhos alegando serem jóias preciosas, o hábito de coexistir ao lado de certas efervecencias anti-clericais que se assemelhavam a rumores subterrâneos de terremotos jamais convertidos em realidades, tudo isto concorreu poderosamente para criar o ambiente necessário para um golpe ousado contra as maiorias católicas.

Não é outro o caso do Peru. País tradicionalmente católico, evidentemente sua formação ibero-americana o vincula de tal maneira ao Catolicismo, que o Peru precisaria cortar as mais profundas raízes de seu passado para conseguir ser efetivamente um país anticatólico. Entretanto, a realidade dos fatos é a que lá se presencia agora: a despeito de tudo isto, a perseguição está fervendo, e a Santa Sé se julga na contingência de intervir.

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Parece-me que duas causas, ambas muito generalizadas na América Latina, tanto quanto se pode perceber através do noticiário dos jornais, concorrem para isto.

A primeira delas é a ignorância religiosa. De per si, a ignorância religiosa trás as conseqüências que todos sabemos: não pode haver verdadeira formação religiosa sem ter por base uma instrução catequética sólida, e os inconvenientes que decorrem da carência desta instrução são tantos, que seria verdadeiramente necessário todo um livro para os analisar e enumerar devidamente.

No entanto, quero abordar agora um aspecto especialmente marcante destas conseqüências. É a idéia inteiramente errônea que forte contingente de católicos possui, entre nós, a respeito do velho âmbito de ação da Igreja.

Pode-se afirmar, sem medo de erro, que ainda há extensíssimas zona da opinião pública que vivem sob a influência do preconceito errôneo segundo o qual a Igreja goza de toda a liberdade desejável, e expande ao máximo o seu raio de ação, quando tem a liberdade de realizar, no interior dos templos, as funções sagradas. A legislação sobre a família, sobre o trabalho, sobre o ensino, sobre a propriedade, a repressão à imoralidade nos cinemas, nos teatros, no rádio, na imprensa, o combate às heresias que fervilham pelas ruas, tudo isto constitui ou matéria inteiramente alheia à influência da Igreja, ou ao menos é, para ela, tema perfeitamente adjetivo, de que ela deve cuidar como preocupação absolutamente acessória, e que por isto mesmo pode ser abordada e resolvida pelas outras correntes do pensamento inteiramente a seu talante, sem que à Igreja assista o direito de se sentir ferida em suas atividades essenciais.

Leão XIII, e depois dele todos os seus sucessores, tem insistido vivamente sobre o que há de errôneo, e até de catastrófico nesta concepção. Mas, infelizmente, esta concepção ainda possui raízes em muitos ambientes bastante vastos da opinião pública, e forçado é dizer que até mesmo certos católicos cultos e instruídos, aceitando embora, em tese, o pensamento contrário como o verdadeiro, procedem na prática exatamente como se houvessem aceito todos os erros desse funesto liberalismo.

Daí o fato de, sem demasiada irritação por parte da opinião pública, ter sido possível aos inimigos da Igreja arrancar, à influência desta, o ensino, a legislação do trabalho, da família, da propriedade; a massa católica ainda não sabe, muitas vezes, que isto é inteiramente errôneo.

Felizmente, no Brasil, já houve a este respeito fundas modificações, e o  triunfo maciço da Liga Eleitoral Católica, sem dúvida uma das mais belas páginas de nossa vida religiosa, prova à saciedade que os católicos já não estão dispostos a permitir, por exemplo, sem uma verdadeira onda de protestos, que se cancelasse o ensino religioso das escolas públicas. Mas força é reconhecer que este trabalho de esclarecimento da opinião pública, se já tem atingido resultados consideráveis, ainda tem muito caminho a percorrer.

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Costuma-se alegar que, na América Latina, jamais houve um movimento herético qualquer que atraísse, em pós de si, grandes massas. Protestantes, espíritas, etc., jamais conseguiram alienar da Igreja o afeto das populações. É esta uma verdade evidente e incontestável, pela qual devemos prestar a Deus as mais humildes ações de graças. Isto não obstante, não deixa de ser absolutamente verdadeiro que  (...)  a ação da literatura européia tem alheiado da Igreja consideráveis porções das “elites” intelectuais. Também neste sentido, há hoje uma reação vigorosa. A Universidade Católica Brasileira, se significa a promessa de uma vitória próxima, também supõe vitórias anteriores das mais significativas, pois que há  algumas dezenas de anos atrás não era possível pensar-se seriamente em tal assunto.

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Entretanto, é incontestável que foi o alheamento destas “elites” intelectuais, roubadas ontem pelo liberalismo e pelo socialismo, e hoje por essa grande e abjeta heresia que sintetiza as duas anteriores, e que é o nazismo, um dos responsáveis pelo fato surpreendente de tantas nações ibero-americanas terem, ao par de massas densamente católicas, uma produção artística, científica, literária, intelectual, que fica muitas vezes a uma considerável distância da doutrina católica.

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Estas as duas notas fundamentais. Haveria, talvez, outras ainda a acrescentar.

Entretanto, não convém que se fique apenas na designação do mal. O remédio não pode deixar de ser duplo: de um lado um trabalho intenso pela santificação do Clero e aumento das vocações sacerdotais; do outro lado, uma luta vigorosa em prol do desenvolvimento da Ação Católica, à qual incumbe, pela ação conjugada das associações fundamentais e auxiliares, resolver o problema no que diz respeito ao concurso dos leigos.

Aproxima-se agora o Congresso Eucarístico. Que melhor ocasião para pedir a Nosso Senhor essas grandes graças essenciais, de cuja obtenção depende em tão larga escala o triunfo da Santa Igreja pelas incomensuráveis extensões da América Latina?