Legionário, N.º 426, 10 de novembro de 1940

X Y Z

Cabeceira de doente. Uma luz azulada, mortífera, espalha pelo quarto uma impressão de agonia. Sua claridade é tão pequena que serve apenas para que se percebam os vultos das pessoas e os contornos dos móveis, parece simbolizar a pequena mecha de vida do doente, que ameaça extinguir-se aos olhos deste mundo, para brilhar na eternidade. As vozes dos parentes não são menos discretas do que a luz: preces que se sussurram, soluços que se comprimem, frases que se murmuram. Os passos lentos, cautelosos, exprimem o receio de incomodar o doente. Este não é menos silencioso. Largado sobre sua cama, envolto em cobertas que fazem na penumbra da sala uma grande mancha branca, seus olhos vidrados parecem indicar vida, seus membros estirados parecem indicar repouso, sua imobilidade parece manifestar tranqüilidade, e apenas sua respiração irregular chamaria a atenção de um visitante desprevenido.

Na sala de espera, grande discussão entre algumas pessoas que se retiraram do quarto para deliberar. Uma senhora moderna, alta, vistosa, fumante, gritante, com um chapéu dotado de um prodigioso apêndice de veludo preto, que se projeta em linha oblíqua sobre a testa e oscila sincronicamente com os gestos retóricos da exuberante oradora, inunda os presentes com uma catadupa de palavras. É preciso, sustenta ela, não chamar maus médicos. Há dias ainda, o primo X estava com febre alta, sentia dores agudas, dava gritos lancinantes. Dois amigos médicos, há muitos anos aposentados, acudiram a fim de tratar dele, cobraram contas fenomenais, prescreveram remédios de preços quase inabordáveis, e nem a febre passou, nem as dores amainaram, nem os gritos se tornaram menos lancinantes. O coitado, só no hospital, telegrafou para o interior onde residia sua família, e pediu que alguém viesse. Mas ninguém podia vir logo. A prima Y, entretanto, sempre disposta a vir a São Paulo, e que de malas já semi-preparadas, há muito tempo sonhava acordada com alguma oportunidade para fazer sem grande despesa o tão desejado passeio, a prima Y se apresentava pressurosa. A família aceitou tanta “dedicação”, e, na manhã seguinte, às custas do X, desembarcava ela em São Paulo, transbordante de alegria e muito mais preocupada em sorver a largos haustos o ambiente da Capital, do que em fazer ansiosas conjecturas sobre a saúde do primo X. Isto não impediu, entretanto, que, quando entrou no quarto do hospital, depois de uma deliciosa voltinha pelas casas de moda da rua Santa Ifigênia, que lhe disseram no hotel serem as melhores, ela compusesse uma atitude espetacularmente apreensiva, e irrompesse naquele ambiente tétrico, como um tufão. A situação lhe desagradou. Seringas, ampolas, vidros, vidrinhos e vidrões de remédio de todas as cores e de todos os tamanhos, com rótulos vistosos terminados em “ol” ou em “ina”, enchiam literalmente as mesas e o criado mudo. Dois velhos médicos de avental e touca branca, conversavam sobre política, enquanto o primo X, se retorcia na cama. De quando em quando, um deles dava mais uma pastilha, ou metia mais uma injeção. Um cheiro de remédio enchia toda a sala como em quarto de doente de há 20 anos atrás. Os médicos, indiferentes a tudo, pareciam estar incumbidos apenas de decidir se era a Itália que venceria a Grécia, ou era a Grécia quem dentro de poucos dias estaria transpondo o Adriático e atacando a Itália! A prima também tentou opinar. Para ser mais interessante, fez um prólogo complexo, que estabelecia uma similitude entre a política municipal de sua terrinha e a situação européia. Um dos médicos perguntou se esse município era no Rio Grande do Sul. Diante  do espanto irritado da prima, o outro médico  quis concertar: o Sr. quer dizer que é no Rio Grande do Norte, não é? Mais irritada, a prima esclareceu que não, que era a 15 horas apenas (...) de São Paulo, bem no coração de nosso Estado. E logo entrou pelo caminho da censura: que não conhecessem o Município de “...”, ainda vá! Mas que não conhecessem nem sequer de nome os vultos políticos que ela mencionava em seu prólogo complicado, que ultraje! Por isto é que se afirma que o Brasil é um deserto de homens! Pois se não conhecemos os homens que temos, se nem conhecemos o piloto-aviador ..., que também é distinto engenheiro, e nas horas vagas, além de Prefeito Municipal, também faz belas poesias, que ele próprio recita no “five o'clock” (lá o chá das cinco é a última moda, que a prima Y se gaba de ter introduzido) do clube local! Decididamente estes médicos não têm competência.

Mas se não têm competência, que estavam fazendo à cabeceira do pobre primo X? Melhoras, nenhuma. Despesas, muitas. Não seria preferível despedi-los? E os remédios, por que não os jogar fora? Enxotou tudo: saíram os médicos, saíram os remédios, as janelas já agora escancaradas deixaram entrar ar em quantidade. O primo X ainda gemeu 24 horas. Mas depois, dizia a prima Y a seus parentes na sala de espera, com um sapiente gesto interpretativo, que comprimia a ponta do nariz com a ponta do dedo cuja unha virada para a assistência mostrava que entre dois gemidos do Primo houvera tempo para uma sessão de manicure para a prima, depois o primo descansou. As dores começaram a cessar. Incomodando-o a luz, foi preciso fechar tudo. Ele estava tão cansado, que só suportava aquela luzinha azul, aliás muito bonita e que a prima iria instalar em sua sala de visitas, pois que ouvira dizer que modernamente se usa só luz fraca. Instalariam 5 de uma vez, porque do contrário ficaria muito escuro. Passadas as dores, a temperatura caiu, e o quadro clínico (expressão ouvida dos médicos e avidamente retida na memória da prima) mudou inteiramente. O primo ficou cansadíssimo: só dorme. Como reação à febre, sua temperatura cai cada vez mais, e está em 35 (graus). Quanto a falar, não diz uma só palavra. Nem sequer se mexe. De tão fatigado, até está ligeiramente ofegante. Foi o susto, foi a canseira de muitas noites em claro. Mas visivelmente todos os sintomas da moléstia passaram. Quando ele acabar de descansar, verão que homem sacudido será! O que é preciso é não chamar médicos para que não interrompam com suas experiências dispendiosas e inúteis, uma cura que a perspicácia da prima pusera em tão bom caminho. “Ao menos, é esta minha opinião”, concluiu a prima, com uma baforada espetacular de seu cigarro, que atirou esportivamente pela janela. Percorreu um olhar satisfeito pela assembléia, aturdida por tanta eloqüência e um sucesso tão manifestamente feliz. E a prima ficou à espera do “valiente” que quisesse opor-se a tanta e tão torrencial sabedoria.

* * *

O auditório era modesto. Era a família, chegada do fundo do interior. Duas ou três senhoras, dois homens com ares de quarenta anos, mas que poderiam ter 30 ou 50, uma criançada que fazia barulho no corredor e cuja presença se atestava de vez em quando pela entrada de um pimpolho choroso, que vinha se queixar dos companheiros, ou por algum solavanco na porta, mostrando que o pugilato estava animado. Indiferentes à barulheira das crianças encantadas com a viagem, os parentes ouviam extasiados. Devia mesmo ser isto! Quanto expediente tem a prima X!

Entretanto, de um recanto da sala, alguém se levantou, dobrando o jornal lentamente, e caminhou para o centro. Era o Dr. Z, diretor do grupo escolar local, formado em direito e por isto tratado de doutor, se bem que o chefe da estação, que era seu inimigo político, tivesse ouvido dizer que o Dr. Z interrompera seu curso de direito no 3º ano e não recebera diploma. O Dr. Z estacou no meio do auditório. Muito magro, entretanto não lhe faltava pele em quantidade, que em largas dobras, avermelhadas no pescoço, amareladas na testa e nas mãos, formava vincos profundos, longos e simétricos, que davam a seu semblante uma aparência de decrepitude tranqüila e conformada.

Óculos bem redondos, dotados de vidros de aumento, apresentavam a quem o observasse dois grandes olhos castanhos, iguais ao de todo mundo, e dentro dos quais, manifestamente, nada havia que fosse digno de ser visto. Um velho terno pardacento, de casimira cuja longevidade era atestada por manchas de todas as idades, que o constelavam, também estava amarrotado com dobras longas e fundas, como a pele do Dr. Z. Usava ele certas botinas antiquadas que a prima Y, há 15 anos, havia proibido que seu velho pai usasse. O Dr. Z parou no meio da sala. A prima Y estava apreensiva, na previsão de uma réplica embaraçosa. Mas o Dr. Z, com sua voz baixa de velho, que destoava dos cabelos muito pretos, e tão abundantes que quase se ligavam às sobrancelhas, o Dr. Z começou por um elogio: a prima tinha toda a razão, e o seu bom e velho amigo, bem como confrade, o prezadíssimo “seu” X realmente não precisava mais de médicos. Como dizia a prima, era só dar tempo ao tempo. A situação dentro em breve se desataria. Apenas pedia permissão para - e, tirando os óculos, começou a limpá-los para não ter de olhar a prima - ponderar que o desfecho seria outro. O “seu” X estava perdido. Aquele sossego era letal, aquele sono era definitivo, aquela baixa de temperatura iria se acentuando até chegar à frieza cadavérica. Em outros termos, o “seu” X estava às portas da morte. Nada mais havia que fazer.

Rubicunda, a prima Y ia defender-se: não fora ela que matara o primo, pela sua ruptura com os médicos. Mas o Dr. Z, diplomata, fazendo proveito das habilidades que aprendera nos bancos acadêmicos, concertou a situação da prima: esta, enxotando os médicos, apenas poupara a “seu” X um sofrimento inútil, abreviara um desfecho irremediável, e evitara uma delapidação do patrimônio. Tia H, que estava no canto, perguntou o que era “delapidação”, não ousando entretanto perguntar também o que era “patrimônio”. Pela resposta tentaria adivinhar o resto. O Dr. Z esclareceu logo: acabou com a roubalheira dos médicos, e poupou as economias, aliás largas, do “seu” X.

Esta saída valeu à prima Y um ressurgimento de popularidade. Poupou as economias do coitado do primo, economias acumuladas à custa de tanto trabalho. Ainda bem!

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Quatro pancadas secas e compassadas na porta interromperam os debates. Entrou um enfermeiro alto dizendo: “O Dr. já vem aí. O Diretor do Hospital não permite que seja negada assistência médica a qualquer doente. A família tem de se conformar”. Imediatamente entra o médico. Examina o doente. Receita remédios em tom tão autoritário, que o próprio Dr. Z, entretanto tão imponente, não ousa retrucar. A prima Y faz uma cara de quem tem de se conformar com os gatunos, porque não há remédio. Vão junto a um canto da janela, resmungar que o médico seria inútil, uma porque achava o doente já curado, e outro porque o considerava perdido. Mas este pormenor não os separa, no momento em que o médico era o inimigo comum.

Dez dias depois, “seu” X, que ficara inteiramente são, estava de mala pronta para o interior. Com ele, toda a família esperava o trem na plataforma. A prima Y levava carinhosamente nas mãos as lâmpadas azuis para sua sala: procurara em todas as casas de lustres lâmpadas iguais, mas afinal no hospital lhe disseram que só em casas de artigos médicos e sanitários encontraria. Encontrou afinal. E o trem partiu, levando a todos para a tranqüilidade invejável de sua vida no interior.

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Não estranhem, mas na prima Y e no Dr. Z, tipos que são da roça, como da cidade, do interior como da capital, do Brasil como de outros países, não vejo senão símbolos dos ineptos ou traidores que, por um excesso de otimismo ou de pessimismo, acham que pela França nada mais há a fazer pelo mundo.

Os políticos do século passado, diante da desagregação da Turquia, tomaram o hábito de chamar o império Otomano de “homem doente” no jargão diplomático. Hoje, o homem doente é o mundo inteiro, é a civilização ocidental, é sobretudo a Europa. À sua cabeceira, quantas Y e quantos Z, ou por um excesso de otimismo, ou por um excesso de pessimismo, fazem a propaganda do desânimo, da inércia, da resignação fatalista e criminosa. Não nos coloquemos ao lado deles. É preciso mobilizar todos os recursos da natureza e suplicar todos os recursos da graça. A Cristandade não morre, porque a Igreja é imortal. E, portanto, não pode ter razão quem se faz hoje arauto do desânimo.