Legionário, N.º 417, 8 de setembro de 1940

Justiça

O grande Pontífice Pio XI, fiel às imposições de seu cargo, moveu contra o comunismo uma luta tenaz e enérgica, em cujos lances vigorosos se espelhava a alma viril e santamente ousada daquele a quem, com tanta propriedade de expressão, se aplicou o lema “Fides intrepida”. Entretanto, mandava a verdade que se diga que a opinião pública de nossos dias, profundamente perturbada pelo desencadear de tantas paixões políticas, não soube, às vezes, fazer justiça ao raro equilíbrio com que o Santo Padre se houve, distribuindo os golpes quando necessário, sem contudo perder jamais sua posição de Pai e Pastor. Este equilíbrio se atestou de modo admirável em duas circunstâncias dignas de nota, em que o Pontífice teve ocasião de aplicar, em todo o seu rigor mas também em toda a sua plasticidade, as tradicionais normas diplomáticas que fizeram do Vaticano um modelo não só de alta dignidade moral, mas ainda de rara sabedoria política e diplomática. Examinemos estas circunstâncias, pois que elas tem com os problemas de nossos dias uma relação mais próxima do que à primeira vista se poderia supor. 

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Ninguém ignora a singular truculência dos ataques que o anti-clericalismo maçônico, liberal ou socialista, desferiu na França, no século passado e em princípios deste, contra a Igreja Católica. Reeditando contra o Corpo Místico de Jesus Cristo os tristes episódios da Paixão do Salvador, não houve escárnio, afronta, calúnia ou crueldade que seus perseguidores Lhe poupassem. E tão profundamente repercutiu na opinião pública esta campanha, que havia em muitos lugares, zonas inteiras, onde o sacerdote não podia passar sem se ver alvo dos maiores insultos.

Entretanto, com a guerra européia, e a crescente influência do elemento católico, paralelamente à corrente vermelha e anti-clerical, ia engrossando e avolumando-se a corrente das associações católicas pertencentes a todas as classes sociais.

Percebendo que não lograra desenraigar da França a Igreja Católica pela violência, a III Internacional delineou, então, uma campanha perfeitamente viperina, que consistia em tentar uma aproximação com os católicos, no intuito de confundir os campos, e arrastar para a perdição, na confusão do ambiente, as almas que não fora possível arrancar à Igreja na luta aberta, de viseira erguida e em campo raso.

É a esta manobra, que se deu geralmente o nome, na França, de “la politique de la main tendue. Por meio de cartazes, de artigos em sua imprensa, de propaganda nas células comunistas, os operários filiados à III Internacional convidavam seus irmãos católicos - eram estes os termos utilizados - a fraternizar com eles, lado a lado, num contato cordial e íntimo, contra o nazismo apresentado como o inimigo comum.

Muitos católicos franceses caíram no laço. Nutriam eles a esperança de que, estabelecendo as organizações católicas e comunistas um teor cordial de relações, e colaborando umas e outras com um inimigo comum, o contato dos operários comunistas com “seus irmãos católicos”, fizesse cair dos olhos dos primeiros as escamas de mil preconceitos, e dessa fraternização decorresse um fecundíssimo apostolado, que infiltraria definitivamente, nas hostes da III Internacional, católicos do melhor jaez.

Não pensou assim Pio XI. E, com uma daquelas deliberações vigorosas, explícitas e secas, que caracteriza tão bem seu pontificado, condenou de vez a “politique de la main tendue”.

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Evidentemente, os liberais, os modernistas, os novidadeiros de todo o gênero censuraram veementemente a “incompreensão” do grande Pontífice. Disseram eles que Pio XI não mostrara ser o Pai também dos comunistas, mas seu carrasco, e que cortara deliberadamente a mão que aqueles desgarrados ofereciam, e que deveria ter sido apertada com afeto e “compreensão”, a fim de serem salvas muitas almas.

Pio XI, entretanto, foi mais previdente. Percebeu ele perfeitamente que não era esta a verdade. Aquele abraço, que se estendia com um gesto de irmão, aquele beijo que se oferecia com um ar de afeto, outra coisa não eram  senão a cópia fiel do abraço traidor e do beijo pérfido com que na hora extrema da Paixão Judas atraiçoou o Divino Mestre.

Os que atacavam o grande Pontífice não estavam, entretanto, lembrados de que em outra circunstância, não muito distante, fora ele atacado por motivo oposto.

Pouco depois da guerra, uma fome atroz assolava a Rússia. Pelas cidades e pelos campos, as criancinhas morriam de fome. E a Santa Sé, num gesto admirável, não só apelou para a caridade pública a fim de sustentar as crianças russas, mas  mandou instalar na Rússia, com permissão das autoridades, postos de distribuição de víveres, diretamente superintendidos por pessoas  de confiança da Santa Sé. Este fato abriu perspectivas para uma caridade e talvez uma irradiação moral ainda mais extensa, metódica e sistemática, a ser exercida em território russo. Mas como tal não se poderia dar sem que relações habituais se entabolassem entre a Rússia e o Vaticano, uma vez que a atividade em questão suscitaria muitos problemas que seria preciso resolver de comum acordo, Pio XI não hesitou em considerar de frente a possibilidade do reatamento das relações diplomáticas com os sovietes! Com aqueles mesmos sovietes, cuja doutrina constitui necessariamente para ele a mais suprema das abominações, e em ódio a qual, anos depois, recusaria ele deliberadamente a “main tendue” que aos católicos oferecia os bolchevistas franceses.

Entretanto, como Pio XI foi censurado! E quanto se disse a respeito de sua pretensa complacência para com os sovietes, em rodas incapazes de compreender a admirável coerência do grande Papa!

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O que não se quer compreender é que a Igreja tem por hábito louvar tudo quanto é louvável, permitir tudo que é licito, e censurar tudo que é censurável. Não é ela apaixonada a ponto de, em ódio ao mal, deixar de apoiar o bem, nem ingênua a ponto de, por amor ao bem, deixar de censurar o mal. Os comunistas erraram doutrinariamente: a Igreja fulminou sua doutrina com a mais veemente e completa das condenações. Os comunistas abriram um campo à ação da Santa Sé: o Papa aceita o campo e nele trabalha, sem entretanto, levantar ou atenuar a condenação anterior em coisa nenhuma. Os comunistas pedem um campo de ação entre os católicos, pela “politique de la main tendue”: o Papa recusa terminantemente.

Nisto não há incoerência. Há apenas coerência. Uma série de exemplos triviais explicará melhor esta situação.

Um homem tem um terreno de que é expulso injustamente por um bandido. Mais tarde, o bandido resolve deixar-lhe uma pequena parte do terreno. O proprietário aceita esta pequena parte, mas continua a condenar o bandido, afirmando que ele é desonesto porque não lhe dá tudo. Houve incoerência em aceitar esta parte pequena sem por isto perdoar o bandido? Evidentemente não.

Um pai tem um filho que é sumamente pérfido. Por isto, o pai impôs ao filho os maiores castigos. Entretanto, o filho comete uma pequena boa ação.

À vista disto o pai lhe dá uma recompensa proporcionada, sem entretanto relevar a culpa do filho que continua sujeito a um certo castigo. Haverá incoerência nisto? Evidentemente não.

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A que vem tudo isto?

Os telegramas da última semana nos informam que o Governo Pétain, tão culpado ante a civilização católica por haver franqueado as fronteiras da França ao neo-paganismo, instituiu o ensino religioso nas escolas. Que quer dizer isto? Que Pétain não fez mal quando franqueou aos nazistas o solo francês? Evidentemente não. Que está fazendo mal em dar o ensino religioso? Evidentemente não.

Um bem não justifica um mal, como um mal não tira o valor de um bem. Censurabilíssimo pela defecção de que se tornou réu, não lhe neguemos o mérito, incalculavelmente menor do que seu mal, de ter restaurado na França o ensino religioso.