O grande Pontífice Pio XI, fiel às imposições de seu cargo, moveu contra o
comunismo uma luta tenaz e enérgica, em cujos lances vigorosos se espelhava a
alma viril e santamente ousada daquele a quem, com tanta propriedade de
expressão, se aplicou o lema “Fides intrepida”. Entretanto, mandava a verdade que se diga
que a opinião pública de nossos dias, profundamente perturbada pelo desencadear
de tantas paixões políticas, não soube, às vezes, fazer justiça ao raro
equilíbrio com que o Santo Padre se houve,
distribuindo os golpes quando necessário, sem contudo perder jamais sua posição
de Pai e Pastor. Este equilíbrio se atestou de modo admirável em duas
circunstâncias dignas de nota, em que o Pontífice teve ocasião de aplicar, em
todo o seu rigor mas também em toda a sua plasticidade, as tradicionais normas
diplomáticas que fizeram do Vaticano um modelo não só de alta dignidade moral,
mas ainda de rara sabedoria política e diplomática. Examinemos estas
circunstâncias, pois que elas tem com os problemas de nossos dias uma relação
mais próxima do que à primeira vista se poderia supor.
* * *
Ninguém ignora a singular truculência dos ataques
que o anti-clericalismo maçônico, liberal ou
socialista, desferiu na França, no século passado e em princípios deste, contra a Igreja
Católica. Reeditando contra o Corpo Místico de Jesus Cristo os
tristes episódios da Paixão do Salvador, não houve escárnio, afronta, calúnia
ou crueldade que seus perseguidores Lhe poupassem. E tão profundamente
repercutiu na opinião pública esta campanha, que havia em muitos lugares, zonas
inteiras, onde o sacerdote não podia passar sem se ver alvo dos maiores
insultos.
Entretanto, com a guerra européia, e a crescente
influência do elemento católico, paralelamente à corrente vermelha e anti-clerical, ia engrossando e avolumando-se a corrente
das associações católicas pertencentes a todas as classes sociais.
Percebendo que não lograra desenraigar
da França a Igreja Católica pela violência, a III Internacional delineou,
então, uma campanha perfeitamente viperina, que consistia em tentar uma
aproximação com os católicos, no intuito de confundir os campos, e arrastar
para a perdição, na confusão do ambiente, as almas que não fora possível
arrancar à Igreja na luta aberta, de viseira erguida e em campo raso.
É a esta manobra, que se deu geralmente o nome, na
França, de “la politique de la main tendue”. Por meio de cartazes, de artigos em sua imprensa, de
propaganda nas células comunistas, os operários filiados à III Internacional
convidavam seus irmãos católicos - eram estes os termos utilizados - a
fraternizar com eles, lado a lado, num contato cordial e íntimo, contra o
nazismo apresentado como o inimigo comum.
Muitos católicos franceses caíram no laço. Nutriam
eles a esperança de que, estabelecendo as organizações católicas e comunistas
um teor cordial de relações, e colaborando umas e outras com um inimigo comum,
o contato dos operários comunistas com “seus irmãos católicos”, fizesse cair
dos olhos dos primeiros as escamas de mil preconceitos, e dessa fraternização
decorresse um fecundíssimo apostolado, que
infiltraria definitivamente, nas hostes da III Internacional, católicos do
melhor jaez.
Não pensou assim Pio XI. E, com uma daquelas deliberações vigorosas, explícitas e
secas, que caracteriza tão bem seu pontificado, condenou de vez a “politique de la main tendue”.
* * *
Evidentemente, os liberais, os modernistas, os novidadeiros de todo o gênero censuraram veementemente a
“incompreensão” do grande Pontífice. Disseram eles que Pio XI não mostrara ser o
Pai também dos comunistas, mas seu carrasco, e que cortara deliberadamente
a mão que aqueles desgarrados ofereciam, e que deveria ter sido apertada com
afeto e “compreensão”, a fim de serem salvas muitas almas.
Pio XI, entretanto, foi mais previdente. Percebeu
ele perfeitamente que não era esta a verdade. Aquele abraço, que se estendia
com um gesto de irmão, aquele beijo que se oferecia com um ar de afeto, outra
coisa não eram senão a cópia fiel do
abraço traidor e do beijo pérfido com que na hora extrema da Paixão Judas atraiçoou o Divino
Mestre.
Os que atacavam o grande Pontífice não estavam,
entretanto, lembrados de que em outra circunstância, não muito distante, fora
ele atacado por motivo oposto.
Pouco depois da guerra, uma fome atroz assolava a
Rússia. Pelas cidades e pelos
campos, as criancinhas morriam de fome. E a Santa Sé, num gesto admirável, não só apelou para a caridade
pública a fim de sustentar as crianças russas, mas mandou instalar na Rússia, com permissão das
autoridades, postos de distribuição de víveres, diretamente superintendidos por
pessoas de confiança da Santa Sé. Este
fato abriu perspectivas para uma caridade e talvez uma irradiação moral ainda
mais extensa, metódica e sistemática, a ser exercida em território russo. Mas
como tal não se poderia dar sem que relações habituais se entabolassem
entre a Rússia e o Vaticano, uma vez que a atividade em questão suscitaria
muitos problemas que seria preciso resolver de comum acordo, Pio XI não hesitou em
considerar de frente a possibilidade do reatamento das relações diplomáticas
com os sovietes! Com aqueles mesmos sovietes, cuja doutrina constitui
necessariamente para ele a mais suprema das abominações, e em ódio a qual, anos
depois, recusaria ele deliberadamente a “main tendue” que aos católicos
oferecia os bolchevistas franceses.
Entretanto, como Pio XI foi censurado! E
quanto se disse a respeito de sua pretensa complacência para com os sovietes,
em rodas incapazes de compreender a admirável coerência do grande Papa!
* * *
O que não se quer compreender é que a Igreja tem
por hábito louvar tudo quanto é louvável, permitir tudo que é licito, e
censurar tudo que é censurável. Não é ela apaixonada a ponto de, em ódio ao
mal, deixar de apoiar o bem, nem ingênua a ponto de, por amor ao bem, deixar de
censurar o mal. Os comunistas erraram doutrinariamente: a Igreja fulminou sua
doutrina com a mais veemente e completa das condenações. Os comunistas abriram
um campo à ação da Santa Sé: o Papa aceita o campo e nele trabalha, sem entretanto,
levantar ou atenuar a condenação anterior em coisa nenhuma. Os comunistas pedem
um campo de ação entre os católicos, pela “politique de la main tendue”: o Papa recusa terminantemente.
Nisto não há incoerência. Há apenas coerência. Uma
série de exemplos triviais explicará melhor esta situação.
Um homem tem um terreno de que é expulso
injustamente por um bandido. Mais tarde, o bandido resolve deixar-lhe uma
pequena parte do terreno. O proprietário aceita esta pequena parte, mas
continua a condenar o bandido, afirmando que ele é desonesto porque não lhe dá
tudo. Houve incoerência em aceitar esta parte pequena sem por isto perdoar o
bandido? Evidentemente não.
Um pai tem um filho que é sumamente pérfido. Por
isto, o pai impôs ao filho os maiores castigos. Entretanto, o filho comete uma
pequena boa ação.
À vista disto o pai lhe dá uma recompensa
proporcionada, sem entretanto relevar a culpa do filho que continua sujeito a
um certo castigo. Haverá incoerência nisto? Evidentemente não.
* * *
A que vem tudo isto?
Os telegramas da última semana nos informam que o
Governo Pétain, tão culpado ante a civilização católica por haver
franqueado as fronteiras da França ao neo-paganismo,
instituiu o ensino religioso nas escolas. Que quer dizer isto? Que Pétain não fez mal quando franqueou aos nazistas o solo
francês? Evidentemente não. Que está fazendo mal em dar o ensino religioso?
Evidentemente não.
Um bem não justifica um mal, como um mal não tira o
valor de um bem. Censurabilíssimo pela defecção de
que se tornou réu, não lhe neguemos o mérito, incalculavelmente menor do que
seu mal, de ter restaurado na França o ensino religioso.