Legionário, N.º 411, 28 de julho de 1940

UM SILÊNCIO CLAMOROSO

Enquanto o mundo inteiro acompanha ansiosamente o curso dos acontecimentos internacionais e parece ganhar terreno em muitos espíritos a persuasão de que o atual conflito colocou a humanidade em uma encruzilhada ideológica da mais alta importância, a atenção geral se tem despreocupado insensivelmente do Santo Padre em torno do qual baixou o mais impenetrável silêncio.

Erraria grosseiramente quem supusesse que o Papa, julgando alheia à sua missão espiritual a grande hecatombe política que ocorre no Ocidente, deliberou afastar-se de toda e qualquer atividade diplomática a fim de não expor os interesses espirituais da Igreja a usos supérfluos.

Instituído por Nosso Senhor Jesus Cristo para promover a difusão do Evangelho, a Igreja faltaria a sua missão se não diligenciasse com todos os recursos ao seu alcance para que os povos ocidentais, convertidos por seu apostolado há mais de mil anos, apresentassem por seu teor de vida, pela natureza das instituições políticas e sociais que eles adotam e sobretudo pelas idéias por eles professadas, todas as características próprias a uma civilização verdadeiramente católica.

Não empreenderemos agora a demonstração de que não é somente legítimo mas forçoso que a Igreja intervenha na vida civil dos povos levando-os a plasmar, segundo as normas do Evangelho, a estruturação do Estado, a organização da vida econômica e os moldes da instituição familiar. Limitamo-nos simplesmente a lembrar que a Santa Sé atribui a esta função uma tal importância que se pode afirmar que não há  um único problema de caracter político ou social a respeito do qual Ela não tenha prescrito aos fiéis uma norma de pensar e de agir.

Deste invariável empenho da Santa Sé, dão um testemunho dramático as duas encíclicas respectivamente referentes ao comunismo e nazismo, publicadas há cerca de três anos pelo Santo Padre Pio XI.

Poucos dias antes de sua publicação estivera o grande Pontífice gravemente enfermo, padecendo do mal que finalmente lhe ocasionou em 1939 a morte. Apenas tiveram os telegramas tempo para noticiar que o Santo Padre se reerguia da gravíssima crise, e já o “Osservatore Romano” estampava o texto oficial do documento em que, compilando e confirmando todas as condenações ao comunismo esparsas em documentos de outros Pontífices, o Santo Padre publicava um catálogo completo dos erros e dos males contidos na doutrina comunista.

Foi imensa  a surpresa universal pela presteza com que aquele ancião, que há dias somente prostrado no leito de enfermo, bordejara a sepultura, se erguia para fulminar o comunismo. Mas muito maior se tornou esta surpresa ao saber-se que o Santo Padre, depois, publicou esse documento não menos completo nem menos minucioso contra os erros do nazismo.

O que em um e outro documento impressiona é a insistência com que o Soberano Pontífice acentuava que ambos os erros por Ele condenados implicavam em uma total subversão da vida política e social dos povos de tal maneira que, quer no regime comunista quer no nazista, se tinha um quadro exato do que poderia ser o extremo oposto de uma civilização católica.

Tanto basta para provar que, no momento atual, quando a Rússia bolchevisa as nações do Báltico e os países conquistados pela Alemanha começam a adaptar suas instituições ao figurino nazista, a Santa Sé não se poderia conservar-se indiferente. O contrário implicaria em admitir que o Papado nenhum obstáculo teria a opor à total descristianização do Ocidente.

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Como explicar então a atitude de silêncio do Pontífice, atitude esta que poderia parecer singularmente insípida e inexpressiva aos olhos de tantos observadores?

Conta o Evangelho que o Salvador em mais de uma circunstância preferiu guardar o silêncio: “Jesus autem tacebat”. Silêncio carregado de ensinamento e cheio de significação. Também são assim os silêncios da Igreja. Não são todos que os compreendem.

Diz Jesus que suas ovelhas compreendem suas palavras. Mas não é só a compreensão destas palavras que exigem humildade e reta intenção; também a compreensão dos silêncios supõem tais virtudes. Os perseguidores de Jesus não compreenderam o seu silêncio, e isto os perdeu. São Pedro compreendeu o silêncio do mestre naquele olhar desacompanhado de qualquer palavra, e se salvou.

Procuremos nós também compreender o silêncio que em sua sabedoria julga oportuno conservar o sucessor de São Pedro.

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Em primeiro lugar, o silêncio do Santo Padre é um desmentido às interpretações que os poderosos de nossos dias procuram dar aos acontecimentos. A pacificação da França, se tivesse o espírito patriótico e humanitário que procura atribuir-lhe a quinta coluna do Brasil e no mundo inteiro, seria obra de tão grande mérito que não poderia passar sem uma aprovação e uma bênção do Santo Padre.

Não é difícil de imaginar as pressões, as insistências, as promessas e as ameaças que terão chegado ao Vaticano a fim de extorquir do Santo Padre uma palavra de aplauso à capitulação de Pétain. Tão vivo foi o desejo de impor ao Papa um gesto destes, que à mingua de uma atitude da Santa Sé, nazistisantes puseram em circulação inúmeros boatos segundo os quais o Vaticano apoiaria com sua autoridade moral a defecção da França. Mas um comunicado do Cardeal Arcebispo de Londres pulverizou esta insólita manobra.

Não podendo servir-se das palavras do Santo Padre, procuraram os exploradores servir-se de seu silêncio, insinuando que o Papa não veria nenhuma razão para se desgostar com o alastramento da influência nazista na Europa. E como prova disto procura-se restaurar o velho mito de que o Papa espera do Sr. Hitler que ponha termo à expansão comunista.

Singular argumento! Foi o Sr. Hitler que, mediante o pacto Ribbentrop-Molotov, franqueou a Polônia, o Báltico e franqueará dentro em breve os Balcãs à expansão  comunista; e é deste homem que se deveria esperar que, como novo Constantino, libertasse o catolicismo do perigo comunista! Não bastou para desiludir até mesmo os mais cegos e mais otimistas que a penetração alemã na França, Bélgica e Holanda fosse apoiada pelos comunistas residentes nesses países, para se persuadirem de que a III internacional vê com simpatias o alastramento do nazismo no mundo inteiro.

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Há certos fatos que ultimamente se tem desenrolado, e que certamente os próprios membros da 5ª coluna são forçados a admitir, que causaram à Santa Sé  o mais profundo desagrado. Segundo os estilos e tradições diplomáticas do Vaticano, a bolchevização das repúblicas bálticas não poderia ter passado sem um profundo e veemente protesto do Papa. Entretanto o Papa se calou. Deduzir-se-á daí qualquer aprovação? Evidentemente não. A suposição a que esse silêncio nos leva é muito outra: o Santo Padre se encontra em condições tais que já não tem aquela plena liberdade de falar que o exercício de seu supremo magistério reclama. Nem pode ser outro o sentido desse silêncio impenetrável e inviolável que vale como um protesto mudo e eloqüente, mais do que isto, como uma denúncia patética a todos os povos da terra. Efetivamente, para os espíritos bem intencionados e retos, para as inteligências que ainda não repudiaram o bom senso e que não permitiram que o nacionalismo amparasse o vigor de sua dedicação à Igreja, outra coisa não pode significar o silêncio do Santo Padre quando as legiões neo-pagãs assolam a Europa, implantando por toda parte a cruz suástica, emblema não só de um partido político mas de uma filosofia de uma civilização diametralmente oposta à cruz de Cristo.

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O propósito dos adversários da Igreja é hoje muito claro. Para atingirem com maior segurança seu objetivo, que é de esmagar o catolicismo, visam eles com implacável obstinação a prévia destruição de todos os fatores humanos nos quais pudesse o Catolicismo encontrar um ponto de apoio, e, evidentemente, este objetivo está prestes a ser realizado. Virá então o dia em que o ataque será desfechado brutalmente contra o sucessor de São Pedro. Não sabemos que provação a Providência permitirá que caia então sobre a Igreja Universal mas uma coisa é incontestável: nesse dia terá soado a última hora dos vencedores diante dos quais misteriosamente se abatem hoje o orgulho, a fortuna, e o poderio das mais importantes nações. “Qui  mange du Pape en meurt”. A História mostrará mais uma vez a veracidade desta observação. Quem procurar atacar o Papa morrerá ipso facto.