Legionário, N.º 401, 19 de maio de 1940

O PAPA FALOU

A imprensa diária não deu o suficiente destaque aos telegramas enviados pelo Santo Padre ao Rei da Bélgica e às soberanas da Holanda e do Luxemburgo. Pode-se, entretanto, afirmar sem receio que eles marcarão época na História da Igreja. Breves, claras, incisivas, as palavras do Papa se revestem de uma importância diplomática quiçá superior às das mais transcendentais Encíclicas de Bento XV.

Certos católicos, ou pessoas pretensamente tais que só se arvoram em arautos  da obediência quando a palavra do Papa coincide com suas convicções pessoais, poderão não concordar com nossas apreciações. Lamentamo-lo. Nada, porém, conseguirá desviar-nos da atitude que devemos tomar perante o Vigário de Jesus Cristo.

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De fato, o “Legionário” está longe de considerar a autoridade do Papa como um limite à sua liberdade de pensar. Pensar só é um bem quando com o pensamento chegamos a conhecer a verdade. Ora, como nenhum pensamento - o nosso inclusive - oferece tantas garantias naturais e sobrenaturais de atingir a verdade quanto ao do Papa, não podemos fazer de nossa inteligência uso melhor nem mais legítimo do que aceitar a opinião do Papa. Ela não limita o raio de ação de nossa inteligência, mas o completa. Certamente, o navegante deve obedecer à luz do farol que lhe aponta o caminho. Mas essa obediência, em lugar de ser uma escravidão, é uma libertação: só assim pode ele escapar das garras do perigo.

Assim, pois, nossa preocupação diante de um pronunciamento do Papa não consiste em discutir temerariamente suas palavras, mas em obedece-lo com amor filial, analisando suas afirmações uma por uma, e tirando delas todo o sentido que encerram, exatamente como se aproveitam, gota a gota, avidamente, as essências preciosas.

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Isto posto, vejamos antes de tudo a que conseqüências se expôs o Santo Padre, por força dos telegramas que expediu.

Como todo mundo vê, a Itália se prepara para entrar em guerra, e ninguém pode nutrir ilusões a respeito da segurança de sua censurável fidelidade à Alemanha. Assim, o Papa ficará colocado perante a diplomacia italiana na mais crítica das posições. Incompatibilizado a fundo com a Rússia e com a Alemanha, opondo-se tenazmente à política de agressões desenvolvida por aquelas duas potências, o Santo Padre ficará, implicitamente, em situação melindrosíssima com referência à Itália, tanto mais que esta, muito provavelmente, se entrar em guerra, atacará inopinadamente a Iugoslávia, e neste caso todas as censuras feitas pelo Santo Padre à invasão das monarquias da Europa setentrional cairão automaticamente sobre o governo fascista, o qual, ao ler o telegrama do Santo Padre ao Rei Leopoldo, já terá tido motivos para sentir implicitamente condenada a ocupação da Albânia.

Tão real e tão viva é esta situação que o governo italiano já está cerceando a liberdade de circulação do “Osservatore”, e a imprensa fascista toma, para com a diplomacia pontifícia, um tom cada vez mais ameaçador.

Isolado, sem ouro, sem armas, sem soldados, o Papa é uma vítima indefesa, que como um cordeiro poderia a qualquer momento ser levado ao matadouro. “Poderia”, dissemos: o Papa São Leão também estava inerte como um cordeiro quando enfrentou Átila, e a História nos conta que foi o bárbaro feroz que retrocedeu, e não o cordeiro. Quem põe em Deus toda a sua confiança não tem razões para temer. E quem tem mais motivos de confiar em Deus senão a Igreja, a quem o próprio Deus prometeu que nunca seria destruída?

É certo que a Igreja jamais será destruída. Mas não é difícil prever os incomensuráveis inconvenientes a que se exporia a Igreja, humanamente falando, caso o seu supremo governo fosse conturbado por uma agressão contra o Vaticano. Os prejuízos materiais seriam no caso, de uma importância tão secundária comparados com os de ordem moral, que nem sequer mereceriam menção. Por aí se podem medir bem estes últimos.

Ora, a tudo isto o Papa se expôs e a tudo isto expôs ele a Igreja lucidamente, conscientemente, heroicamente, passando os telegramas que passou aos soberanos belga, luxemburguês e holandês.

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Como admitir, à vista disto, que o Santo Padre tenha agido levianamente, que se tenha pronunciado sem um conhecimento exato dos fatos, ou que se tenha deixado arrastar por preferências nacionais inteiramente alheias aos princípios da Igreja? Quem não percebe que este modo de pensar envolve um juízo temerário, e uma indisciplina em relação á Santa Sé?

É uma miséria ser um jornalista católico obrigado a entrar em uma demonstração como esta, mas o ambiente o exige. A simples afirmação feita pelo Papa, nos telegramas aludidos, deveria ser, por si só, suficiente para gerar em todos os católicos uma certeza moral de que ele tem razão. Não se trata, neste caso, de entrar em sutilezas doutrinárias sobre a maior ou menor extensão da autoridade do Pontífice Romano. Qualquer coração católico bem formado sentirá bem que esta atitude do Papa precisa imperiosa e absolutamente ser seguida pelos fiéis, e que seria uma defecção permitir alguém que o orgulho nacionalista deste ou daquele povo falasse mais do que os imperativos imprescritíveis da doutrina católica.

O Rei Leopoldo III telegrafou ao Santo Padre pedindo-lhe o apoio do Chefe da Cristandade à causa belga. O Santo Padre respondeu concedendo este apoio não só à Bélgica, como à Holanda e ao Luxemburgo. Foi, pois, com a intenção evidente e expressa de falar como Chefe da Cristandade que o Pontífice falou.

Não se trata, evidentemente, de uma definição “ex-catedra”. Mas quem seria bastante cego para entender que, a despeito disto, os católicos poderiam dissentir do Papa?