Legionário, N.º 396, 14 de abril de 1940

Quisling, Mosley & Co.

Os telegramas procedentes do Vaticano na quinta-feira p. p., informaram que o “Osservatore Romano”, órgão oficioso da Santa Sé, verberou em termos enérgicos a invasão da Dinamarca e da Noruega. Publicou aquele jornal um importante editorial em que analisou a liceidade dos motivos evocados pelo III Reich para invadir as potências neutras setentrionais, e, depois de meticulosa análise dos argumentos morais e jurídicos alegados pelas autoridades nazistas, o “Osservatore” concluiu qualificando o assalto às duas pequenas monarquias bálticas como um ato de pura rapinagem internacional.

A este propósito convém acentuar uma particularidade frisante. A Santa Sé, sempre inflexível quando se trata de questões doutrinarias, é de uma grande parcimônia de atitudes no que diz respeito à apreciação de questões de fato, principalmente quando elas tem um caracter acentuadamente político. Está perfeitamente dentro dos hábitos do Vaticano censurar com a maior veemência, e sobre o risco dos mais graves inconvenientes temporais, qualquer lei, doutrina, ou corrente política que se levante contra alguma verdade definida pela Igreja em matéria de Fé e costumes. Mas as intervenções da Igreja em questões de ordem extrinsecamente relacionadas com a Fé são extremamente parcimoniosas e raras. De direito, pertence à Santa Sé a função de supremo árbitro internacional entre os povos da Cristandade. Infelizmente, porém, esta nobilíssima tarefa foi negada pelos povos protestantes, pelos países laicos e pelo Reich neo-pagão, de tal modo que se julgou preferível concentrá-la nas mãos da Liga das Nações. Os resultados aí estão... A Liga caiu no mais profundo grau de descrédito a que pode ser precipitada uma instituição humana. Hoje em dia, só se preocupam com ela os humoristas, empenhados em descobrir algo de cômico na imensa tragédia mundial a que assistimos. Enquanto isto, a Igreja, sem renunciar a qualquer de suas prerrogativas, se retirou prudentemente do campo das dependências internacionais, nas quais só intervém quando solicitada pelos países litigantes, ou quando uma suprema violação dos princípios essenciais que devem dirigir o convívio dos povos arranca ao coração do Pai comum da Cristandade um brado de horror e de condenação.

Assim, pois, é muito excepcional a atitude que o Vaticano assumiu. Sem entrar na apreciação do problema da liceidade da invasão alemã na Dinamarca ou na Noruega, o “Osservatore” teria podido cingir-se a lamentar o alastramento do nazismo na Europa setentrional. Preferiu, entretanto, o órgão do Vaticano proceder diversamente. E consagrou à questão da iliceidade do último golpe de força totalitário todo um artigo, sereno se bem que severo, em que profligou a atitude da Alemanha e apontou o governo nazista como objeto universal de censura e reprovação por parte de todos os povos.

Parece que um católico não precisaria tanto para compreender que a Alemanha agiu mal, e muito mal. A este respeito, entre católicos dignos de tal nome, não pode haver tergiversação. O órgão do Vaticano tocou a questão no seu âmago: as atividades marítimas da Grã-Bretanha e França não justificavam a atitude que o III Reich assumiu. Foi esta a tese do “Osservatore Romano”.

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Se se deve condenar vivamente a atitude da Alemanha, que dizer-se dos noruegueses que, pactuando com o invasor, ousaram constituir um governo nazista em sua própria pátria?

Um comunicado telegráfico procedente das autoridades norueguesas nos narra o fato como se passou. O Ministro da Alemanha em Oslo procurou, na semana finda, O Rei Haakon, a quem significou que a Alemanha desejava assenhorar-se da Noruega para fins bélicos, pelo que o Sr. Hitler indicava um cidadão norueguês, o Sr. Quisling, chefe do partido nazista norueguês, para tomar conta do poder. Quanto ao soberano, deveria conservar-se tranqüilamente em palácio, enquanto as tropas invasoras ocupassem o país. Patrioticamente, o Rei Haakon se opôs a estas injunções e manifestou seu propósito de resistir. Quando a invasão começou, retirou-se ele com suas tropas para dar início à epopéia da resistência norueguesa ao invasor pagão. E o Sr. Quisling recebeu do governo alemão a incumbência de feitorear a Noruega durante este tempo, dirigindo, sob a tutela das autoridades alemãs, sua pobre Pátria, invadida e transformada, pela culpa do Sr. Hitler, em campo de batalha da Europa.

Quem é este triste Sr. Quisling? No cenário internacional, uma figura apagada. Pelos telegramas chegamos a saber apenas que, chefe do nazismo norueguês, chegou a ocupar uma pasta em um dos recentes gabinetes de sua terra. E é só. Agora, aparece ele como o homem de confiança do invasor, disposto a se servir de seu título de norueguês para disfarçar com véus, aliás  transparentes, a situação miserável em que ficarão as regiões norueguesas ocupadas pelos nazistas.

Que idéia fazer desse homem? Na galeria das figuras famosas (!), não faltam vultos análogos ao dele. A Quaresma e a Semana Santa não estão ainda muito distantes. Neste tempo, tivemos mais uma vez ocasião de meditar sobre uns famosos trinta dinheiros...

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Não espanta que entre os noruegueses se tenha encontrado uma figura tal. Em todos os povos se encontram, de vez em quando, traidores, e também nós tivemos nosso Calabar, que certos historiadores procuram hoje inocentar com um afinco e um ardor dignos de melhor causa.

O que, entretanto, causa verdadeira surpresa é que o Sr. Hitler tem sempre, espalhado por este mundo, uns indivíduos do gênero do Sr. Quisling, nazistas ardorosos, que chegam a preferir a subversão dos mais importantes e até vitais interesses de sua Pátria a um insucesso político do III Reich.

Seiss-Inquart foi disto um exemplo. Austríaco, serviu entretanto de “marionette” nas mãos do Sr. Hitler para dar uma aparência menos chocante à invasão de Viena pelas tropas pardas. Entretanto, o caso do Sr. Seiss-Inquart é ainda relativamente explicável. Depois do esfacelamento da Áustria, muitos austríacos lamentavelmente esquecidos das tradições e da glória de seu país, pensaram em se submeter ao jugo prussiano. Esta consideração, se não pode persuadir os perspicazes, serve ao menos de cômodo pretexto para iludir os ingênuos. Menos explicável é o caso do Sr. Leon Degrelle, cujo “rexismo”, tão magistralmente torpedeado pelo Cardeal Van Roye, “flirtava” a olhos vistos com a Alemanha, dando lugar, direta ou indiretamente à formação de uma verdadeira corrente germanófila subterrânea, na política belga. Mais sintomático ainda é o caso do Sr. Oswaldo Mosley, chefe nazista na Inglaterra, que se manifestou francamente contrário à guerra, e que, em pleno conflito, teve a audácia de desencadear uma campanha pró-paz imediata, o que, em qualquer pais, só pode ser considerado como crime de alta traição. Na Rumânia, também o partido nazista local era germanófilo, e o rei Carol, para o conter nos devidos limites e  evitar uma política que teria como termo final a anexação da Rumânia ao Reich, foi obrigado a recorrer às mais drásticas medidas. O mesmo se dá nos Estados Unidos, onde o Sr. Fritz Kuhn [...], é ardoroso partidário da Alemanha. E os exemplos se poderiam multiplicar indefinidamente mostrando como as afinidades ideológicas entre as correntes totalitárias do mundo inteiro, longe de ficarem no campo de uma simpatia platônica, constituem, aos menos virtualmente, uma verdadeira “internacional” tão coordenada e tão consistente quanto a famosa III Internacional bolchevista.

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Esmiucemos um pouco este fato. Seria perfeitamente explicável que os partidos de uma mesma ideologia simpatizassem entre si. Essa simpatia, entretanto, nunca chega, ao menos em nossos dias, a uma coordenação tão estrita quanto à da III Internacional. Assim, por exemplo, seria explicável que um monarquista inglês lamentasse a proclamação da república na Itália ou vice-versa. Também seria explicável que um republicano espanhol se rejubilasse com a eventual proclamação da república na Grécia. Mas essas atitudes de simpatia, desde 1830 para cá, não atuam mais no campo internacional. A grande guerra foi disto um exemplo. Os Impérios Centrais lutaram contra a república francesa ao lado da qual estavam o Império Russo, o Império Britânico, o Reino da Itália e a República norte-americana.

No caso do comunismo, a coisa é outra. Os partidos comunistas do mundo inteiro sacrificam seu ideal nacional à execução do plano da revolução mundial. A prova disto é a vergonhosa atitude dos deputados comunistas que o parlamento francês excluiu. Também aí, o caso é explicável. Há uma III Internacional que coordena a atividade de todos os partidos comunistas. E, por outro lado, o sacrifício dos interesse dos nacionais pouco ou nada significa para um comunista que faz profissão de fé de rejeitar a idéia de pátria. A própria estrutura do partido comunista, bem como sua ideologia, explicam fartamente este estado de coisas.   

Mas tudo isto é muito menos explicável quando se trata do nazismo. Efetivamente,  este apresentava, ao menos para uso externo, dois aspectos salientes: o anticomunismo e o nacionalismo. Ora, os sentimentos anticomunistas dos nazistas do mundo inteiro deveriam ter ficado profundamente chocados com o pacto teuto-russo. E, por outro lado, o nacionalismo deveria levar os totalitaristas de outros países a não sacrificar, de nenhum modo, sob nenhum pretexto, e em nenhuma situação, os interesses pátrios. A própria ideologia nazista se opõe a essa docilidade do grande consórcio internacional Quisling, Mosley, Degrelle, Seiss-Inquart & Co. Por outro lado, na aparência externa dos fatos, nada explica tanta solidariedade. O comunismo julgou não poder coordenar eficazmente todos os partidos de extrema esquerda do mundo inteiro sem uma “internacional” que a dirigisse. Entretanto, ninguém ignora a disciplina férrea, para não dizer diabólica, que existe no seio dos partidos comunistas. Como conseguiu o totalitarismo pseudo-direitista tanta solidariedade entre todos os partidos existentes, pelo mundo, do mesmo feitio? O que haverá por detrás de tudo isto?