Os telegramas procedentes do Vaticano na
quinta-feira p. p., informaram que o “Osservatore Romano”, órgão oficioso da
Santa Sé, verberou em termos enérgicos a invasão da Dinamarca e da Noruega. Publicou aquele jornal um importante editorial em que
analisou a liceidade dos motivos evocados pelo III
Reich para invadir as potências neutras setentrionais, e, depois de meticulosa
análise dos argumentos morais e jurídicos alegados pelas autoridades nazistas,
o “Osservatore” concluiu qualificando o assalto às duas pequenas monarquias bálticas como um ato de pura rapinagem internacional.
A este propósito convém acentuar uma
particularidade frisante. A Santa Sé, sempre inflexível quando se trata de questões
doutrinarias, é de uma grande parcimônia de atitudes no que diz respeito à
apreciação de questões de fato, principalmente quando elas tem um caracter
acentuadamente político. Está perfeitamente dentro dos hábitos do Vaticano
censurar com a maior veemência, e sobre o risco dos mais graves inconvenientes
temporais, qualquer lei, doutrina, ou corrente política que se levante contra
alguma verdade definida pela Igreja em matéria de Fé e costumes. Mas as intervenções
da Igreja em questões de ordem extrinsecamente relacionadas com a Fé são
extremamente parcimoniosas e raras. De direito, pertence à Santa Sé a função de
supremo árbitro internacional entre os povos da Cristandade. Infelizmente,
porém, esta nobilíssima tarefa foi negada pelos povos protestantes, pelos
países laicos e pelo Reich neo-pagão, de tal modo que
se julgou preferível concentrá-la nas mãos da Liga das Nações. Os resultados aí estão... A Liga caiu no mais profundo
grau de descrédito a que pode ser precipitada uma instituição humana. Hoje em
dia, só se preocupam com ela os humoristas, empenhados em descobrir algo de
cômico na imensa tragédia mundial a que assistimos. Enquanto isto, a Igreja,
sem renunciar a qualquer de suas prerrogativas, se retirou prudentemente do
campo das dependências internacionais, nas quais só intervém quando solicitada
pelos países litigantes, ou quando uma suprema violação dos princípios
essenciais que devem dirigir o convívio dos povos arranca ao coração do Pai
comum da Cristandade um brado de horror e de condenação.
Assim, pois, é muito excepcional a atitude que o
Vaticano assumiu. Sem entrar na apreciação do problema da liceidade
da invasão alemã na Dinamarca ou na Noruega, o “Osservatore” teria podido
cingir-se a lamentar o alastramento do nazismo na Europa setentrional.
Preferiu, entretanto, o órgão do Vaticano proceder diversamente. E consagrou à
questão da iliceidade do último golpe de força
totalitário todo um artigo, sereno se bem que severo, em que profligou a
atitude da Alemanha e apontou o governo nazista como objeto universal
de censura e reprovação por parte de todos os povos.
Parece que um católico não precisaria tanto para
compreender que a Alemanha agiu mal, e muito mal. A este respeito, entre
católicos dignos de tal nome, não pode haver tergiversação. O órgão do Vaticano
tocou a questão no seu âmago: as atividades marítimas da Grã-Bretanha e França
não justificavam a atitude que o III Reich assumiu. Foi esta a tese do
“Osservatore Romano”.
* * *
Se se deve condenar
vivamente a atitude da Alemanha, que dizer-se dos noruegueses que, pactuando
com o invasor, ousaram constituir um governo nazista em sua própria pátria?
Um comunicado telegráfico procedente das autoridades
norueguesas nos narra o fato como se passou. O Ministro da Alemanha em Oslo
procurou, na semana finda, O Rei Haakon, a quem significou que a Alemanha desejava assenhorar-se
da Noruega para fins bélicos, pelo que o Sr. Hitler
indicava um cidadão norueguês, o Sr. Quisling, chefe do partido nazista norueguês, para tomar conta do
poder. Quanto ao soberano, deveria conservar-se tranqüilamente em palácio,
enquanto as tropas invasoras ocupassem o país. Patrioticamente, o Rei Haakon se opôs a estas injunções
e manifestou seu propósito de resistir. Quando a invasão começou, retirou-se
ele com suas tropas para dar início à epopéia da resistência norueguesa ao
invasor pagão. E o Sr. Quisling recebeu do governo
alemão a incumbência de feitorear a Noruega durante
este tempo, dirigindo, sob a tutela das autoridades alemãs, sua pobre Pátria,
invadida e transformada, pela culpa do Sr. Hitler, em campo de batalha da
Europa.
Quem é este triste Sr. Quisling?
No cenário internacional, uma figura apagada. Pelos telegramas chegamos a saber
apenas que, chefe do nazismo norueguês, chegou a ocupar uma pasta em um dos
recentes gabinetes de sua terra. E é só. Agora, aparece ele como o homem de
confiança do invasor, disposto a se servir de seu título de norueguês para
disfarçar com véus, aliás transparentes,
a situação miserável em que ficarão as regiões norueguesas ocupadas pelos
nazistas.
Que idéia fazer desse homem? Na galeria das figuras
famosas (!), não faltam vultos análogos ao dele. A Quaresma e a Semana Santa
não estão ainda muito distantes. Neste tempo, tivemos mais uma vez ocasião de
meditar sobre uns famosos trinta dinheiros...
* * *
Não espanta que entre os noruegueses se tenha
encontrado uma figura tal. Em todos os povos se encontram, de vez em quando,
traidores, e também nós tivemos nosso Calabar, que certos historiadores procuram hoje inocentar com um
afinco e um ardor dignos de melhor causa.
O que, entretanto, causa verdadeira surpresa é que
o Sr. Hitler tem sempre, espalhado por este mundo, uns
indivíduos do gênero do Sr. Quisling, nazistas
ardorosos, que chegam a preferir a subversão dos mais importantes e até vitais
interesses de sua Pátria a um insucesso político do III Reich.
Seiss-Inquart foi disto um
exemplo. Austríaco, serviu entretanto de “marionette” nas mãos do Sr.
Hitler para dar uma aparência menos chocante à invasão de Viena pelas tropas
pardas. Entretanto, o caso do Sr. Seiss-Inquart é
ainda relativamente explicável. Depois do esfacelamento da Áustria, muitos austríacos lamentavelmente esquecidos das
tradições e da glória de seu país, pensaram em se submeter ao jugo prussiano. Esta consideração, se não pode persuadir os
perspicazes, serve ao menos de cômodo pretexto para iludir os ingênuos. Menos
explicável é o caso do Sr. Leon Degrelle, cujo “rexismo”, tão
magistralmente torpedeado pelo Cardeal Van Roye, “flirtava”
a olhos vistos com a Alemanha, dando lugar, direta ou indiretamente à formação
de uma verdadeira corrente germanófila subterrânea,
na política belga. Mais sintomático ainda é o caso do Sr. Oswaldo
Mosley, chefe nazista na Inglaterra, que se manifestou francamente contrário à guerra, e que,
em pleno conflito, teve a audácia de desencadear uma campanha pró-paz imediata, o que, em qualquer pais, só pode ser
considerado como crime de alta traição. Na Rumânia,
também o partido nazista local era germanófilo, e o
rei Carol, para o conter nos devidos limites e evitar uma política que teria como termo
final a anexação da Rumânia ao Reich, foi obrigado a
recorrer às mais drásticas medidas. O mesmo se dá nos Estados Unidos, onde o Sr. Fritz Kuhn [...], é ardoroso
partidário da Alemanha. E os exemplos se poderiam multiplicar indefinidamente
mostrando como as afinidades ideológicas entre as correntes totalitárias do
mundo inteiro, longe de ficarem no campo de uma simpatia platônica, constituem,
aos menos virtualmente, uma verdadeira “internacional” tão coordenada e tão
consistente quanto a famosa III Internacional bolchevista.
* * *
Esmiucemos um pouco este fato. Seria perfeitamente
explicável que os partidos de uma mesma ideologia simpatizassem entre si. Essa
simpatia, entretanto, nunca chega, ao menos em nossos dias, a uma coordenação
tão estrita quanto à da III Internacional. Assim, por exemplo, seria explicável
que um monarquista inglês lamentasse a proclamação da república na Itália ou
vice-versa. Também seria explicável que um republicano espanhol se rejubilasse
com a eventual proclamação da república na Grécia. Mas essas atitudes de
simpatia, desde 1830 para cá, não atuam mais no campo internacional. A grande
guerra foi disto um exemplo. Os Impérios Centrais lutaram contra a república
francesa ao lado da qual estavam o Império Russo, o Império Britânico, o Reino
da Itália e a República norte-americana.
No caso do comunismo, a coisa é outra. Os partidos
comunistas do mundo inteiro sacrificam seu ideal nacional à execução do plano
da revolução mundial. A prova disto é a vergonhosa atitude dos deputados
comunistas que o parlamento francês excluiu. Também aí, o caso é explicável. Há
uma III Internacional que coordena a atividade de todos os partidos comunistas.
E, por outro lado, o sacrifício dos interesse dos nacionais pouco ou nada
significa para um comunista que faz profissão de fé de rejeitar a idéia de
pátria. A própria estrutura do partido comunista, bem como sua ideologia,
explicam fartamente este estado de coisas.
Mas tudo isto é muito menos explicável quando se
trata do nazismo. Efetivamente,
este apresentava, ao menos para uso externo, dois aspectos salientes: o anticomunismo
e o nacionalismo. Ora, os sentimentos anticomunistas dos nazistas do mundo
inteiro deveriam ter ficado profundamente chocados com o pacto teuto-russo. E, por outro lado, o nacionalismo deveria
levar os totalitaristas de outros países a não sacrificar,
de nenhum modo, sob nenhum pretexto, e em nenhuma situação, os interesses
pátrios. A própria ideologia nazista se opõe a essa docilidade do grande
consórcio internacional Quisling, Mosley,
Degrelle, Seiss-Inquart
& Co. Por outro lado, na aparência externa dos fatos, nada explica tanta
solidariedade. O comunismo julgou não poder coordenar eficazmente todos os
partidos de extrema esquerda do mundo inteiro sem uma “internacional” que a
dirigisse. Entretanto, ninguém ignora a disciplina férrea, para não dizer
diabólica, que existe no seio dos partidos comunistas. Como conseguiu o
totalitarismo pseudo-direitista tanta solidariedade
entre todos os partidos existentes, pelo mundo, do mesmo feitio? O que haverá
por detrás de tudo isto?