Legionário, 371, 22 de outubro de 1939

Uma Pastoral notável

Tenho sobre minha mesa de trabalho a Carta Pastoral, que acabo de compulsar, do Ex.mo Rev.mo Sr. Bispo de Bragança sobre a “Defesa da Família”.

É incalculável o número de vezes que este assunto tem sido tratado por escritores católicos. Os Papas, a Hierarquia Eclesiástica em todos os séculos e em todos os Continentes, e os leigos devotados ao serviço da Santa Igreja, não se tem fartado de examinar, sob os mais variados aspetos, o pensamento da Igreja sobre a constituição da família. Entretanto, acontece com a doutrina católica o que sucede com a fonte da qual ela brota, isto é os Santos Evangelhos. Estes, por mais que sejam lidos e relidos, apresentam sempre um interesse novo, porque a riqueza inexaurível do seu conteúdo revela cada vez para o leitor, sob faceta especial e ainda desconhecida dele, as perfeições infinitas do Verbo Encarnado. Assim também, conquanto mil e mil vezes repetida e reafirmada no decurso dos vinte séculos de vida da Igreja, a doutrina católica apresenta sempre, para os que são capazes de a examinar com a devida pureza de intenções e com o auxílio da graça, tesouros novos, que saciam exuberantemente as almas bem-aventuradas, realmente famintas e sedentas de justiça.

Penso nisto tudo ao reler mais uma vez a doutrina católica sobre a família, compendiada na última Carta Pastoral, publicada na festa da Assunção de Nossa Senhora, no corrente ano, pelo Ex.mo Rev.mo Sr. Dom José Maurício da Rocha, Bispo de Bragança.

Convém acrescentar, entretanto, que se essa Pastoral tem o inapreciável valor que é próprio à toda a exposição clara e metódica do pensamento da Igreja, sobretudo quando feita com autoridade e segurança de doutrina de um Bispo, apresenta ela ainda outros predicados nos quais se refletem as qualidades de inteligência e de vontade que distinguem seu autor.

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Quem, como eu, já teve a fortuna de conversar detidamente com o Ex.mo Rev.mo Sr. Dom José Maurício da Rocha sobre as grandes questões políticas e sociais da atualidade, nota imediatamente naquele Prelado uma inteligência penetrante, clara, metódica e firme que, entretanto, não se compraz exclusivamente nas esferas da especulação. Pelo contrário, seu espírito penetrante logo que alcança uma verdade, a faz tão inteiramente sua ou se faz tão inteiramente dela, que no mesmo instante se nota nele o desejo de descer à prática, de penetrar na liça, e de ser ao mesmo tempo seu realizador e paladino.

Daí o fato de a Carta Pastoral de S. Ex.a. Rev.ma, apresentar um aspecto positivo, prático e incontestavelmente combativo, que se nota em todo o trabalho, a começar pela divisão e distribuição da matéria.

S. Ex.a Rev.ma não descreve apenas o problema doutrinário da família, composta de pai, mãe e filhos tomados em abstrato. O que interessa a S. Ex.a Rev.ma se dirige, a fim de louvar o que nela se encontra de bem, e de combater o que nela se tem insinuado de condenável.

Esse amor ao positivo e ao concreto não tira a S. Ex.a Rev.ma, como é óbvio, em se tratando de um Bispo, o amor à doutrina, e nem lhe tolhe a largueza de visão do conjunto.

Por isto, e com grande acerto, devendo examinar o problema da família brasileira, S. Ex.a Rev.ma começa por traçar um rápido panorama do mundo hodierno, no qual aponta, com sobeja razão, nossa civilização colocada à beira de um abismo em que ameaça despejar-se irremediavelmente a todo o instante. E, acrescenta sabiamente o Prelado, ninguém pode afirmar que no Brasil não se podem repetir as catástrofes morais e sociais que em outros povos se tem verificado. A civilização “desapareceu do lugar de seu berço, sabendo somente Deus quando, vitoriosa, a ele tornará. Destarte, quem nos autoriza a assegurar que não se dê entre nós o que se dá em outros pontos”? Evidentemente, são sonhadores incorrigíveis os otimistas tão freqüentes entre nós, que supõem o Brasil vacinado contra todas as heresias e contra todas as aberrações próprias à natureza humana, como se tivéssemos sido isentos dos funestíssimos efeitos do pecado original.

Mas a simples discriminação dos males não basta. É preciso vê-los, não apenas em extensão mas em profundidade. E, por isto, o Sr. Bispo de Bragança, descendo ao âmago dos problemas contemporâneos, apresenta a sua causa no “egoísmo brutal, que pondo nos prazeres da vida presente a suma felicidade”, tudo lhes sacrifica.

É este egoísmo, fruto inevitável da ruptura da civilização ocidental com o Evangelho, que tem engendrado os mais diversos inimigos do Corpo Místico de Nosso Senhor Jesus Cristo, isto é, da Igreja Católica. Comunismo, protestantismo, espiritismo, são apenas diversas expressões de um mesmo espírito de rebeldia e de egoísmo naturalista. Ligados entre si contra a Igreja, trabalham eles em “Frente Única”, como já denunciou ao público a carta Pastoral de S. Ex.a. Rev.ma. de 21 de abril de 1937. Nunca se poderia insistir suficientemente sobre esta verdade que o Sr. Bispo de Bragança focaliza detidamente e põe em luminoso relevo. Os inimigos da Igreja, em todos os tempos, mas hoje mais particularmente do que nunca, estão coligados entre si em uma conjuração que já Leão XIII denunciou repetidas vezes e com palavras candentes. Pouco se lhes dá das diferenças doutrinárias que os separam entre si. O que lhes importa é a destruição da Igreja de Jesus Cristo. Daí a constante insistência do “Legionário” sobre a ingenuidade que mostram determinados católicos desejosos de se apoiarem em certos inimigos da Igreja para combaterem outros. No mundo da lua, esta tática pode ser muito interessante. Na realidade, porém, ela é ruinosa. A este propósito, lembro-me perfeitamente de uma saborosa palestra que tive com o Ex.mo. Rev.mo Sr. Bispo de Santos, D. Paulo de Tarso Campos. Discorrendo sobre assunto deste gênero, disse-me S. Ex.a Rev.ma, gracejando, que a Igreja se poderia apropriar, em muitas ocasiões, da frase famosa: “Livre-me Deus de meus amigos, que eu me livrarei de meus inimigos”. Os “amigos” são os tais adversários da Igreja que lhe oferecem um apoio precário em cujo bojo escondem as mais penosas surpresas.

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É dentro do ambiente deste quadro geral, que o Sr. Bispo de Bragança situa o problema da família.

Mostra S. Ex.a Rev.ma que o plano concebido pela conjuração anti-católica que domina o mundo, de subverter totalmente a civilização católica, e de terminar destruindo a indestrutível Igreja de Jesus Cristo, tomou como ponto predileto de sua ação corruptora a família.

Dentro da família, essa ação diabólica não tem poupado a mulher. É que quando o lar é desertado criminosamente pelo pai, os filhos ainda podem encontrar um amparo na mãe. Mas quando a mãe, loucamente seduzida pelo desejo de se igualar ao pai nas baixezas deste também abandona o lar, no que se transforma este, senão no lugar em que impera “a abominação da desolação”?

Passa então a Pastoral a descriminar, um por um, todos os artifícios que a civilização moderna, animada pelo espírito hostil à Igreja, utiliza para a desagregação da família.

São tão importantes os conceitos emitidos por S. Ex.a. Rev.ma a este propósito, tão práticos e tão úteis, que não podemos deixar de os publicar com destaque, em outro local desta folha.

Entretanto, um ponto final ainda merece nossa melhor atenção. É o que se relaciona com a trabalho da Ação Católica de Bragança em prol da família.

Muito se tem escrito sobre a Ação Católica. Infelizmente, porém, não é muito o que se tem compreendido a este respeito.

É interessante registrar, pois, a deliberação que S. Ex.a. Rev.ma enuncia no fim de sua Pastoral de confiar à Ação Católica a superintendência de uma nova “Liga de Defesa da Família” que S. Ex.a. Rev.ma resolveu fundar “regida por estatutos próprios, conforme o aconselharem as circunstâncias, sob a orientação da Ação Católica”.

Essa associação auxiliar da Ação Católica, que S. Ex.a. Rev.ma deseja estruturar “à semelhança do que fizeram os Ex.mos Rev.mos Srs. Bispos Norte-Americanos, fundando, com os conhecidos resultados, a Liga de Decência, grandemente louvada pelo Santo Padre Pio XI, contra o mau cinema”, tem muitas analogias com a “Associação dos Pais de Família”, que se acaba de fundar no Rio de janeiro sob a orientação do emérito Jesuíta Pe. Arlindo Vieira, associação esta que começa a se espraiar sobre todo o Brasil.

Deve ela velar por que, dentro da família, se constitua o ambiente favorável ao verdadeiro florescimento da vida religiosa. A associação deve ter seus olhos abertos e vigilantes contra todas as inovações, e premunir as famílias a elas filiadas contra as infiltrações insidiosas do modernismo, ao liberalismo e do racionalismo. Em uma palavra, deve ser a sentinela vigilante do espírito da Igreja dentro da vida de família. Porque é bem certo que só a família que se alicerce solidamente em Nosso Senhor Jesus Cristo não pode ser demolida pelo vendaval da impiedade moderna.

Não menos certo, porém, é que não pode ter Jesus Cristo por fundamento a família que não tiver a Igreja por Mãe, Mestra e Rainha.

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Partindo de um quadro geral de grande amplidão, para descrever depois o quadro mais restrito de nossa vida social, analisando em seguida esse quadro à luz dos princípios da Igreja, e apontando por fim os concretos e imediatos que a situação requer, a Pastoral é uma imagem fiel em que se espelha o espírito largo, firme e prático do insigne Prelado que a escreveu.