No banquete de homenagem que o Governo do Estado
ofereceu a S. Ex.a Rev.ma o Sr. Arcebispo Metropolitano e ao Episcopado
Paulista, os Chefes do Poder Espiritual e do Temporal trocaram saudações que
não podem passar sem um registro e um comentário.
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Várias considerações haveria a fazer em torno do
discurso do Ex.mo Rev.mo Sr. Dom José Gaspar de Affonseca
e Silva. A principal dentre elas, entretanto, aquela que se impõe
em primeira linha por se referir ao traço característico das palavras que o
Arcebispo de São Paulo pronunciou devemos consagrar uma atenção mais minuciosa.
Se as palavras do sucessor de Dom Duarte se
devessem resumir em um só vocábulo, este seria: colaboração. O pensamento central do discurso é a doutrina
tradicional da Igreja sobre a distinção e a colaboração entre os Poderes Espiritual e Temporal. E porque,
em nossos dias, no mundo inteiro, as relações entre a Igreja e o Estado são
encaradas sob aspectos muito diversos, quis S. Ex.a Rev.ma. insistir
particularmente na doutrina definida pelos Papas a este respeito. Esta
definição, sem ser desenvolvida em seu discurso de modo exclusivamente
doutrinário, se encontra subjacente em todos os conceitos emitidos.
O Estado foi constituído, segundo os planos da
Providencia, para proporcionar aos homens o bem comum temporal. A Igreja foi
instituída por Nosso Senhor Jesus Cristo para prover ao bem comum espiritual.
Se, portanto, Estado e Igreja são entidades perfeitamente distintas uma da
outra, entre elas deve existir a respeito disto uma colaboração estrita, uma
vez que a soberania de ambas se exerce sobre os mesmos súbditos, isto é, sobre
o Homem.
Acresce a isto que ao perfeito cumprimento das
finalidades de cada uma delas convém muito o apoio da outra.
A recusa de colaboração por parte do Estado
acarreta, para a ação da Igreja, se bem que esta seja indestrutível, óbices importantes.
Reciprocamente, uma recusa de colaboração da Igreja com o Estado - o que
historicamente jamais se verificou, aliás - teria para este conseqüências
catastróficas. É o próprio interesse comum que reclama de ambos os poderes o
cumprimento exato de um íntimo e efetivo programa de colaboração.
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Se esta verdade vale para todos os tempos, ela tem
um significado particularmente saliente no que se refere ao Brasil. E o
Arcebispo de São Paulo não deixou ficar na penumbra esta verdade. Se há um País
em cuja história se note o trasbordamento extenso e abundante de todas as
vantagens não só espirituais como ainda temporais que decorrem da ação da
Igreja, esse País é o Brasil. Seria ocioso, a este propósito, relembrar aquilo
que até mesmo historiadores avessos à nossa Fé não se tem faltado de repetir. O que, entretanto, é oportuno relembrar é que esta colaboração é
para o Brasil de hoje mais oportuna e mais indispensável do que nunca. Pelo que
é memorável o patriotismo com que o novo Arcebispo de São Paulo, continuando a ininterrupta tradição de seus
antecessores, quis tornar seus, nos primeiros dias de seu Pontificado e de
forma soleníssima, os propósitos de harmonia e de colaboração que sempre foram
patenteados pelo Episcopado brasileiro.
Programas de colaboração, centenas e milhares deles
já tem afluído ao Palácio dos Campos Elíseos, desde que ali se estabeleceu o Poder Temporal. Mas seria
interessante folhear seus arquivos para verificar quantos dentre eles ostentam
de modo irrecusável a nota luminosa do desinteresse de seus autores. Colaborar
significa, na maior parte dos casos, associar-se a alguém para auferir
vantagens. E quando “alguém” é o Estado, não são raros em nossa História os
casos em que a palavra “colaborar” assume um aspecto ainda mais especial.
O Episcopado paulista, entretanto, ofereceu uma
colaboração em que não se nota o propósito de uma meticulosa reciprocidade. Nas
palavras que a Igreja proferiu pelos lábios do Arcebispo de São Paulo, a
palavra “colaboração” tem um sentido quase unilateral, porque significa apenas
o desejo de cumular o País com os benefícios superabundantes da ação
desenvolvida pelo Catolicismo.
Em matéria de reivindicações, uma só se encontra no
discurso do novo Metropolita: o direito de prestar
beneficio.
Efetivamente, postas as coisas em tese, os direitos
mais fundamentais da Igreja e os interesses mais sagrados do Estado reclamam
que este não coloque aquela na situação de qualquer associação privada mas que,
reconhecendo oficialmente sua origem divina, cerque seu apostolado de todas as
garantias, de todos os privilégios, de todas as facilidades e de todos os
recursos a que as coisas de Deus fazem jus.
Doutrinariamente, só há para o Estado
uma posição legítima perante a Igreja: o reconhecimento oficial de sua origem e
de seu caracter divino. E esse reconhecimento,
para ser lógico, deve consistir não apenas em honrarias, mas em
disposições jurídicas efetivas que proporcionam, dentro do país, à Esposa de
Jesus Cristo, a situação a que tem direito.
Reivindicando o estabelecimento de um tal estado de
coisas, o Arcebispo de São Paulo estaria em seu pleno direito e dentro de uma
irrepreensível conformidade com a doutrina católica.
Entretanto, o ilustre Prelado, longe de lembrar
tais direitos, longe de reivindicar em toda a sua extensão tais amparos do
Poder Temporal, insistiu fortemente sobre um único direito: o de viver sem
entraves e sem peias legislativas, com a ampla liberdade de ação que o Estado
reconhece a todas as iniciativas honestas e, mais do que isto, meritórias.
De um sábio realismo, S. Ex.a Rev.ma sentiu muito
bem que o regime da separação de poderes, se praticado dentro de um ambiente de
colaboração, é francamente preferível no momento, por razões circunstanciais
que em nada afetam a indestrutível solidez dos princípios da Igreja, a uma
oficialização ou a um regime de concordata, que no momento não serve aos
verdadeiros interesses do Brasil católico.
Por isto S. Ex.a Rev.ma não pediu ao Estado senão o
mínimo que este, dentro dos quadros jurídicos de um país civilizado pode dar a
Igreja. Mas este pedido de um minimum, imensamente inferior ao débito total se acompanha
do oferecimento de um maximum
de....... [palavra ilegível] de dedicação, de ação benéfica, que não pode
deixar de impressionar os detentores do Poder civil.
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A nota de moderação do discurso de S. Ex.a Rev.ma
não se fez sentir em prejuízo da altivez própria a quem fala em nome da Igreja.
Não há prova mais tangível de altivez e de
independência do que o desinteresse absoluto de proventos e benefícios. Além
desta prova preliminar e patente, há outra, de ordem mais delicada e mais
subtil, que, entretanto, deve interessar a todos os católicos.
Sumamente zeloso da maior glória de Deus e
exaltação da Santa Igreja, S. Ex.a Rev.ma inspirou sua moderação não no desejo
de tomar uma atitude facilmente simpática, mas na convicção fundamentada e
absoluta de que, dadas as circunstâncias atuais, o Catolicismo pode esperar
perfeitamente no Brasil a instauração do Reinado social de Nosso Senhor Jesus
Cristo pelo simples esforço da Hierarquia - o que nunca lhe faltou - e da Ação
Católica, coadjuvada pelas suas associações auxiliares. Que não se tolha a
liberdade da Igreja; que a palavra do Sacerdote ou em certos casos do católico
leigo, encontre carta branca para se fazer ouvir nas escolas, nos quartéis, nos
hospitais e nas penitenciárias; que das funções públicas sejam arredados os inimigos
da Fé e da Pátria; que à Igreja não se negue aquilo que a toda a iniciativa
altamente benéfica se não recusa, e ela, com a vigilância de seus Pastores, o esforço
de seus filhos e sobretudo as bênçãos de Deus, fará do povo brasileiro aquela
maravilha de piedade, de grandeza de alma e de perfeição moral cuja antevisão
consolou Nóbrega e Anchieta em seus labores, e
fez provavelmente pulsar de esperanças o coração do Duque de Caxias, quando desembainhava a espada no campo de batalha em
prol da unidade e integridade do Brasil.
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Esta nota de altivez transpareceu também com as
tonalidades vivas de uma frase de S. João Crisóstomo ou de S. Jerônimo, na reivindicação de outro direito: o de ser franco. “Verbum Dei non est alligatum”, disse o
Apóstolo. O direito de ser franco, de
dizer a todos os homens, em nome de Deus, toda a verdade, a Igreja sempre o
exerceu e sempre o exercerá, ainda mesmo que o martírio seja sua conseqüência.
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Folgamos em reconhecer que as
palavras do Sr. Interventor Federal, louváveis por muitos títulos, também abrem
caminho a muitas esperanças para o futuro. Os propósitos que o mais alto
magistrado do Estado anunciou são nobres e suas palavras são dignas de caloroso
aplauso. Bastará que a enorme soma de poderes que repousam em suas mãos seja
aproveitada no sentido indicado pelo augusto intérprete do episcopado, para que
os católicos vejam realizadas na sua plenitude suas aspirações.
Não tem faltado quem dissemine os boatos sinistros
de que a legislação brasileira, orientando-se por um estranho nacionalismo ao
mesmo tempo anticlerical e idólatra dos moldes nazistas, se desviará mais e
mais, sob o influxo de elementos
influentes na atual situação. As
palavras do Interventor em São Paulo, pessoa de confiança do Presidente da
Republica, só tem uma interpretação, um compromisso de honra, solenemente assumido,
de que tal não se dará.
Que Deus faça converter-se em realidade tão
favorável perspectiva. E que faça florescer em atos a esperança suscitada por
tão belas palavras.