Legionário, N° 367, 24 de setembro de 1939

 

OS DISCURSOS DOS CAMPOS ELYSEOS

No banquete de homenagem que o Governo do Estado ofereceu a S. Ex.a Rev.ma o Sr. Arcebispo Metropolitano e ao Episcopado Paulista, os Chefes do Poder Espiritual e do Temporal trocaram saudações que não podem passar sem um registro e um comentário.

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Várias considerações haveria a fazer em torno do discurso do Ex.mo Rev.mo Sr. Dom José Gaspar de Affonseca e Silva. A principal dentre elas, entretanto, aquela que se impõe em primeira linha por se referir ao traço característico das palavras que o Arcebispo de São Paulo pronunciou devemos consagrar uma atenção mais minuciosa.

Se as palavras do sucessor de Dom Duarte se devessem resumir em um só vocábulo, este seria: colaboração. O pensamento central do discurso é a doutrina tradicional da Igreja sobre a distinção e a colaboração entre  os Poderes Espiritual e Temporal. E porque, em nossos dias, no mundo inteiro, as relações entre a Igreja e o Estado são encaradas sob aspectos muito diversos, quis S. Ex.a Rev.ma. insistir particularmente na doutrina definida pelos Papas a este respeito. Esta definição, sem ser desenvolvida em seu discurso de modo exclusivamente doutrinário, se encontra subjacente em todos os conceitos emitidos.

O Estado foi constituído, segundo os planos da Providencia, para proporcionar aos homens o bem comum temporal. A Igreja foi instituída por Nosso Senhor Jesus Cristo para prover ao bem comum espiritual. Se, portanto, Estado e Igreja são entidades perfeitamente distintas uma da outra, entre elas deve existir a respeito disto uma colaboração estrita, uma vez que a soberania de ambas se exerce sobre os mesmos súbditos, isto é, sobre o Homem.

Acresce a isto que ao perfeito cumprimento das finalidades de cada uma delas convém muito o apoio da outra.

A recusa de colaboração por parte do Estado acarreta, para a ação da Igreja, se bem que esta  seja indestrutível, óbices importantes. Reciprocamente, uma recusa de colaboração da Igreja com o Estado - o que historicamente jamais se verificou, aliás - teria para este conseqüências catastróficas. É o próprio interesse comum que reclama de ambos os poderes o cumprimento exato de um íntimo e efetivo programa de colaboração.

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Se esta verdade vale para todos os tempos, ela tem um significado particularmente saliente no que se refere ao Brasil. E o Arcebispo de São Paulo não deixou ficar na penumbra esta verdade. Se há um País em cuja história se note o trasbordamento extenso e abundante de todas as vantagens não só espirituais como ainda temporais que decorrem da ação da Igreja, esse País é o Brasil. Seria ocioso, a este propósito, relembrar aquilo que até mesmo historiadores avessos à nossa Fé não se tem faltado de repetir. O que, entretanto, é oportuno relembrar é que esta colaboração é para o Brasil de hoje mais oportuna e mais indispensável do que nunca. Pelo que é memorável o patriotismo com que o novo Arcebispo de São Paulo,  continuando a ininterrupta tradição de seus antecessores, quis tornar seus, nos primeiros dias de seu Pontificado e de forma soleníssima, os propósitos de harmonia e de colaboração que sempre foram patenteados pelo Episcopado brasileiro.

Programas de colaboração, centenas e milhares deles já tem afluído ao Palácio dos Campos Elíseos, desde que ali se estabeleceu o Poder Temporal. Mas seria interessante folhear seus arquivos para verificar quantos dentre eles ostentam de modo irrecusável a nota luminosa do desinteresse de seus autores. Colaborar significa, na maior parte dos casos, associar-se a alguém para auferir vantagens. E quando “alguém” é o Estado, não são raros em nossa História os casos em que a palavra “colaborar” assume um aspecto ainda mais especial.

O Episcopado paulista, entretanto, ofereceu uma colaboração em que não se nota o propósito de uma meticulosa reciprocidade. Nas palavras que a Igreja proferiu pelos lábios do Arcebispo de São Paulo, a palavra “colaboração” tem um sentido quase unilateral, porque significa apenas o desejo de cumular o País com os benefícios superabundantes da ação desenvolvida pelo Catolicismo.

Em matéria de reivindicações, uma só se encontra no discurso do novo Metropolita: o direito de prestar beneficio.

Efetivamente, postas as coisas em tese, os direitos mais fundamentais da Igreja e os interesses mais sagrados do Estado reclamam que este não coloque aquela na situação de qualquer associação privada mas que, reconhecendo oficialmente sua origem divina, cerque seu apostolado de todas as garantias, de todos os privilégios, de todas as facilidades e de todos os recursos a que as coisas de Deus fazem jus. Doutrinariamente, só há  para o Estado uma posição legítima perante a Igreja: o reconhecimento oficial de sua origem e de seu caracter divino. E esse reconhecimento,  para ser lógico, deve consistir não apenas em honrarias, mas em disposições jurídicas efetivas que proporcionam, dentro do país, à Esposa de Jesus Cristo, a situação a que tem direito.

Reivindicando o estabelecimento de um tal estado de coisas, o Arcebispo de São Paulo estaria em seu pleno direito e dentro de uma irrepreensível conformidade com a doutrina católica.

Entretanto, o ilustre Prelado, longe de lembrar tais direitos, longe de reivindicar em toda a sua extensão tais amparos do Poder Temporal, insistiu fortemente sobre um único direito: o de viver sem entraves e sem peias legislativas, com a ampla liberdade de ação que o Estado reconhece a todas as iniciativas honestas e, mais do que isto, meritórias.

De um sábio realismo, S. Ex.a Rev.ma sentiu muito bem que o regime da separação de poderes, se praticado dentro de um ambiente de colaboração, é francamente preferível no momento, por razões circunstanciais que em nada afetam a indestrutível solidez dos princípios da Igreja, a uma oficialização ou a um regime de concordata, que no momento não serve aos verdadeiros interesses do Brasil católico.

Por isto S. Ex.a Rev.ma não pediu ao Estado senão o mínimo que este, dentro dos quadros jurídicos de um país civilizado pode dar a Igreja. Mas este pedido de um minimum, imensamente inferior ao débito total se acompanha do oferecimento de um maximum de....... [palavra ilegível] de dedicação, de ação benéfica, que não pode deixar de impressionar os detentores do Poder civil.

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A nota de moderação do discurso de S. Ex.a Rev.ma não se fez sentir em prejuízo da altivez própria a quem fala em nome da Igreja.

Não há prova mais tangível de altivez e de independência do que o desinteresse absoluto de proventos e benefícios. Além desta prova preliminar e patente, há outra, de ordem mais delicada e mais subtil, que, entretanto, deve interessar a todos os católicos.

Sumamente zeloso da maior glória de Deus e exaltação da Santa Igreja, S. Ex.a Rev.ma inspirou sua moderação não no desejo de tomar uma atitude facilmente simpática, mas na convicção fundamentada e absoluta de que, dadas as circunstâncias atuais, o Catolicismo pode esperar perfeitamente no Brasil a instauração do Reinado social de Nosso Senhor Jesus Cristo pelo simples esforço da Hierarquia - o que nunca lhe faltou - e da Ação Católica, coadjuvada pelas suas associações auxiliares. Que não se tolha a liberdade da Igreja; que a palavra do Sacerdote ou em certos casos do católico leigo, encontre carta branca para se fazer ouvir nas escolas, nos quartéis, nos hospitais e nas penitenciárias; que das funções públicas sejam arredados os inimigos da Fé e da Pátria; que à Igreja não se negue aquilo que a toda a iniciativa altamente benéfica se não recusa, e ela, com a vigilância de seus Pastores, o esforço de seus filhos e sobretudo as bênçãos de Deus, fará do povo brasileiro aquela maravilha de piedade, de grandeza de alma e de perfeição moral cuja antevisão consolou Nóbrega e Anchieta em seus labores, e fez provavelmente pulsar de esperanças o coração do Duque de Caxias, quando desembainhava a espada no campo de batalha em prol da unidade e integridade do Brasil.

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Esta nota de altivez transpareceu também com as tonalidades vivas de uma frase de S. João Crisóstomo ou de S. Jerônimo, na reivindicação de outro direito: o de ser franco. “Verbum Dei non est alligatum, disse o Apóstolo. O direito  de ser franco, de dizer a todos os homens, em nome de Deus, toda a verdade, a Igreja sempre o exerceu e sempre o exercerá, ainda mesmo que o martírio seja sua conseqüência.

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Folgamos em reconhecer que as palavras do Sr. Interventor Federal, louváveis por muitos títulos, também abrem caminho a muitas esperanças para o futuro. Os propósitos que o mais alto magistrado do Estado anunciou são nobres e suas palavras são dignas de caloroso aplauso. Bastará que a enorme soma de poderes que repousam em suas mãos seja aproveitada no sentido indicado pelo augusto intérprete do episcopado, para que os católicos vejam realizadas na sua plenitude suas aspirações.

Não tem faltado quem dissemine os boatos sinistros de que a legislação brasileira, orientando-se por um estranho nacionalismo ao mesmo tempo anticlerical e idólatra dos moldes nazistas, se desviará mais e mais, sob o influxo de  elementos influentes na atual situação.  As palavras do Interventor em São Paulo, pessoa de confiança do Presidente da Republica, só tem uma interpretação, um compromisso de honra, solenemente assumido, de que tal não se dará.

Que Deus faça converter-se em realidade tão favorável perspectiva. E que faça florescer em atos a esperança suscitada por tão belas palavras.