Numa triste tarde de novembro o povo paulista,
aglomerado pelas avenidas, praças e ruas de sua Capital, imerso em um silêncio reverencial cuja imperturbável severidade traduzia uma dor
inexprimível, tributava a um morto queridíssimo honras fúnebres de proporções
sem precedentes.
São Paulo, terra fecunda de grandes homens e ponto
de convergência dos espíritos de mais alta plana no Brasil, tem visto morrer em
seu solo, indistintamente, intelectuais e banqueiros, políticos ou artistas,
militares e diplomatas, cujo concurso para a grandeza da Pátria marcou com luz
caraterística todas as páginas de nossa História. Cônscia do verdadeiro valor
de seus filhos, a cada um deles a população paulista tributou, quer em vida,
quer depois da morte, as homenagens devidas; a nenhum, entretanto, ela reservou
a consagração apoteótica que prestou, genuflecta, aos despojos mortais de seu
primeiro Arcebispo. Os louros que não foram dados aos políticos cujas mãos
haviam distribuído em profusão os proventos das situações oficiais, nem
aos magnatas cujos cofres fascinam as
multidões, São Paulo os colocava, respeitoso, sobre o esquife de seu grande
Pastor.
* * *
Entretanto, este fenômeno não era fácil de se
explicar. Pobre durante toda a sua vida, seus dedos nunca se abriram para
encher os bolsos dos que sabem fabricar popularidades
de encomenda e aliciar os aplausos de turbas venais. Austero, seu procedimento
invariavelmente sóbrio e digno não atraía as simpatias daqueles que só sabem
louvar a virtude quando esta se desfigura com as tintas de uma oprobriosa condescendência para com o mal. Pastor
inflexível, seu báculo nunca se limitou a apontar às suas ovelhas o caminho dos
deveres suaves, e nunca poupou rijos
golpes ao lobo sorrateiro e invasor.
“Eu venci o mundo” disse Nosso Senhor, pouco antes
de morrer. O mesmo poderia dizer o grande Arcebispo Dom Duarte, “alter Christus”
pela sublimidade da investidura episcopal.
Nosso século, que proclamou como
dogma o materialismo histórico e nossa Cidade tão freqüentemente acusada de
idolatria de Mamon, puderam contemplar nos funerais
do santo Arcebispo a inanidade das coisas terrenas e
a grandeza das obras de Deus. Aquele que não teve nem o prestígio do ouro nem a
majestade do poder civil, recebeu uma consagração reverente que mostrava a
convicção do povo de que do alto de sua esplêndida personalidade, como de um
novo Sinai, brilhavam reflexos de majestade, que ilustravam sua grande alma, e
faziam transparecer algo da grandeza de Deus. É que Deus transparece sempre
através das almas que O amam.
* * *
É a um espetáculo como este que São Paulo vai
assistir no dia de hoje.
Tudo parece renovado. Aos dobres tristes de finados
sucede o tanger festivo dos sinos jubilares. As mesmas massas humanas se
prostrarão novamente no mesmo centro urbano, para ver “passar o Arcebispo”. Mas
é um Arcebispo novo que passa, em cuja juventude radiosa parecem ter deixado
algo de sua majestade as cãs do antigo Pastor. E a massa alegre saudá-lo-á com
o respeito dos dias de Dom Duarte, aliado à alegria e às esperanças que a
mocidade sabe irradiar.
Ainda na grande solenidade de hoje, o mesmo triunfo
do que é sobrenatural e divino sobre o que é material e humano transparecerá
com vigorosa clareza.
À maneira da Escritura o povo poderá perguntar com
certa adaptação do texto sagrado: “quem é esta que, no esplendor das cerimônias
litúrgicas, caminha no inicio da multidão, como uma
aurora que se levanta, suscitando esperanças mais serenamente belas do que a
claridade da lua, e mais esplêndidas do que o fulgor do sol?”
Nosso século idolatra a mocidade. Não, porém, a
mocidade pura, mas a mocidade que se derrama, se desperdiça e se desgasta nas
orgias dos lupanares. Este moço, a cuja passagem todos se ajoelharão, escondeu
o melhor de sua juventude entre os muros sombrios de um Seminário. Seus olhos,
ele os desviou das belezas perecíveis do engenho moderno, para os concentrar
sobre os esplendores severos da Teologia. Seus lazeres, ele os consumiu nos
colóquios silenciosos com a Eucaristia, ou no desfiar piedoso do Rosário aos
pés da Virgem. Deus foi todo o encanto casto de seus dias. E o hábito negro e
apagado do Sacerdócio constituiu para ele uma honra maior do que os fardões vistosos das academias, as condecorações rutilantes
da política e a cintilação das dragonas da carreira militar.
E, enquanto ele assim se despia das vaidades do mundo, na imolação de tudo quanto é perecível,
Deus preparava sua alma para o Sacerdócio, ungindo-a com o perfume evangélico
das virtudes de Jesus Cristo e coroando com graças espirituais e eternas a sua
corajosa abnegação à Santa Igreja Católica. Da austeridade da sua vida
interior, brotaram frutos de virtude e flores de carismas – “floresceu o
deserto”, diz a Escritura - e, quando a Providencia o chamou à plenitude do
Sacerdócio, ele se ergue, ao lado de Dom Duarte, fazendo irradiar em torno de
si o brilho de uma mansidão constante, de uma dignidade profunda e de um
talento sóbrio e ágil, que conquistaram para ele todos os afetos.
É a satisfação de sentir o báculo repousar em tais
mãos que fará sorrir de prazer a multidão. E é a majestade de seu novo poder de
Arcebispo que fará dobrar todos os joelhos.
Mais uma vez, São Paulo tributará à virtude,
crescida pela graça de Deus e realçada pela majestade divina, de uma autoridade
instituída por Deus, homenagens que “os olhos não viram” e de que “os ouvidos
não ouviram” dizer que fossem jamais tributados às coisas humanas em São Paulo.