Legionário, N.º 366, 17 de setembro de 1939

 

QUIS UT DEUS?

Numa triste tarde de novembro o povo paulista, aglomerado pelas avenidas, praças e ruas de sua Capital, imerso em um silêncio reverencial cuja imperturbável severidade traduzia uma dor inexprimível, tributava a um morto queridíssimo honras fúnebres de proporções sem precedentes.

São Paulo, terra fecunda de grandes homens e ponto de convergência dos espíritos de mais alta plana no Brasil, tem visto morrer em seu solo, indistintamente, intelectuais e banqueiros, políticos ou artistas, militares e diplomatas, cujo concurso para a grandeza da Pátria marcou com luz caraterística todas as páginas de nossa História. Cônscia do verdadeiro valor de seus filhos, a cada um deles a população paulista tributou, quer em vida, quer depois da morte, as homenagens devidas; a nenhum, entretanto, ela reservou a consagração apoteótica que prestou, genuflecta, aos despojos mortais de seu primeiro Arcebispo. Os louros que não foram dados aos políticos cujas mãos haviam distribuído em profusão os proventos das situações oficiais, nem aos  magnatas cujos cofres fascinam as multidões, São Paulo os colocava, respeitoso, sobre o esquife de seu grande Pastor.

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Entretanto, este fenômeno não era fácil de se explicar. Pobre durante toda a sua vida, seus dedos nunca se abriram para encher os bolsos dos que sabem fabricar popularidades de encomenda e aliciar os aplausos de turbas venais. Austero, seu procedimento invariavelmente sóbrio e digno não atraía as simpatias daqueles que só sabem louvar a virtude quando esta se desfigura com as tintas de uma oprobriosa condescendência para com o mal. Pastor inflexível, seu báculo nunca se limitou a apontar às suas ovelhas o caminho dos deveres suaves, e nunca poupou  rijos golpes ao lobo sorrateiro e invasor.

“Eu venci o mundo” disse Nosso Senhor, pouco antes de morrer. O mesmo poderia dizer o grande Arcebispo Dom Duarte, “alter Christus” pela sublimidade da investidura episcopal.

Nosso século, que proclamou como dogma o materialismo histórico e nossa Cidade tão freqüentemente acusada de idolatria de Mamon, puderam contemplar nos funerais do santo Arcebispo a inanidade das coisas terrenas e a grandeza das obras de Deus. Aquele que não teve nem o prestígio do ouro nem a majestade do poder civil, recebeu uma consagração reverente que mostrava a convicção do povo de que do alto de sua esplêndida personalidade, como de um novo Sinai, brilhavam reflexos de majestade, que ilustravam sua grande alma, e faziam transparecer algo da grandeza de Deus. É que Deus transparece sempre através das almas que O amam.

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É a um espetáculo como este que São Paulo vai assistir no dia de hoje.

Tudo parece renovado. Aos dobres tristes de finados sucede o tanger festivo dos sinos jubilares. As mesmas massas humanas se prostrarão novamente no mesmo centro urbano, para ver “passar o Arcebispo”. Mas é um Arcebispo novo que passa, em cuja juventude radiosa parecem ter deixado algo de sua majestade as cãs do antigo Pastor. E a massa alegre saudá-lo-á com o respeito dos dias de Dom Duarte, aliado à alegria e às esperanças que a mocidade sabe irradiar.

Ainda na grande solenidade de hoje, o mesmo triunfo do que é sobrenatural e divino sobre o que é material e humano transparecerá com vigorosa clareza.

À maneira da Escritura o povo poderá perguntar com certa adaptação do texto sagrado: “quem é esta que, no esplendor das cerimônias litúrgicas, caminha no inicio da multidão, como uma aurora que se levanta, suscitando esperanças mais serenamente belas do que a claridade da lua, e mais esplêndidas do que o fulgor do sol?”

Nosso século idolatra a mocidade. Não, porém, a mocidade pura, mas a mocidade que se derrama, se desperdiça e se desgasta nas orgias dos lupanares. Este moço, a cuja passagem todos se ajoelharão, escondeu o melhor de sua juventude entre os muros sombrios de um Seminário. Seus olhos, ele os desviou das belezas perecíveis do engenho moderno, para os concentrar sobre os esplendores severos da Teologia. Seus lazeres, ele os consumiu nos colóquios silenciosos com a Eucaristia, ou no desfiar piedoso do Rosário aos pés da Virgem. Deus foi todo o encanto casto de seus dias. E o hábito negro e apagado do Sacerdócio constituiu para ele uma honra maior do que os fardões vistosos das academias, as condecorações rutilantes da política e a cintilação das dragonas da carreira militar.

E, enquanto ele assim se despia das vaidades do mundo, na imolação de tudo quanto é perecível, Deus preparava sua alma para o Sacerdócio, ungindo-a com o perfume evangélico das virtudes de Jesus Cristo e coroando com graças espirituais e eternas a sua corajosa abnegação à Santa Igreja Católica. Da austeridade da sua vida interior, brotaram frutos de virtude e flores de carismas – “floresceu o deserto”, diz a Escritura - e, quando a Providencia o chamou à plenitude do Sacerdócio, ele se ergue, ao lado de Dom Duarte, fazendo irradiar em torno de si o brilho de uma mansidão constante, de uma dignidade profunda e de um talento sóbrio e ágil, que conquistaram para ele todos os afetos.

É a satisfação de sentir o báculo repousar em tais mãos que fará sorrir de prazer a multidão. E é a majestade de seu novo poder de Arcebispo que fará dobrar todos os joelhos.

Mais uma vez, São Paulo tributará à virtude, crescida pela graça de Deus e realçada pela majestade divina, de uma autoridade instituída por Deus, homenagens que “os olhos não viram” e de que “os ouvidos não ouviram” dizer que fossem jamais tributados às coisas humanas em São Paulo.