Legionário, N° 366, 17 de setembro de 1939

 

Confusão

 

Nas circunstâncias atuais, nada mais difícil do que escrever sobre política. O assunto já de si árido e cheio de incógnitas, assume agora aspectos inquietadores. Não é possível, para o jornalista, escrever algumas linhas sobre a situação internacional sem experimentar o receio de que, no tempo que medeia entre a confecção de seu trabalho e a distribuição do jornal ao público, os acontecimentos se tenham encarregado de tornar anacrônicos seus comentários. É sob a pressão desse temor que me aventuro a escrever.

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A flagrantíssima confirmação que o pacto teuto-russo trouxe à orientação política desta folha leva-a, mais do que nunca, a perseverar nos seus pontos de vista, aos quais não é alheia a observação de que tanto na Inglaterra quanto na França poderosas forças político-financeiras, altamente simpáticas ao nazismo e gozando da máxima influência sobre os círculos governamentais, paralisavam toda a reação franco-britânica de sentido antinazista.

Evidentemente este fato não se encontra flutuando à tona d’água nos textos do noticiário telegráfico internacional. A explicação disto é fácil. Os noticiários telegráficos, não raramente, têm diversos significados subjacentes, que só um exame atento pode trazer a lume. O sentido patente é para o público comum. O segundo sentido é para os iniciados ou para os indiscretos que, à força de paciência e de inexorável objetivismo, tiverem conseguido descobrir os mistérios dos subentendidos jornalísticos.

Assim, no noticiário telegráfico, tem havido alusões muito discretas porém muito positivas, à famosa corrente de políticos ingleses altamente relacionados nos Bancos da “City”, na grande imprensa e no Parlamento que tem apoiado Chamberlain em sua política de guarda-chuva aberto. Há um casal de aristocratas ingleses, ambos, marido e mulher, eleitos para a Câmara dos Comuns, que constitui o centro aparente da manobra. Esse casal possui um magnífico castelo e oferece a suas extensas relações da nobreza, do mundo intelectual e do Parlamento, confortabilíssimos e elegantíssimos “week-ends”, aos quais comparece com indefectível assiduidade o Sr. Neville Chamberlain. Entre os dois “wiskys”, ou enquanto os hóspedes assistem a qualquer “garden-party”, as manobras do casal se desenvolvem habilmente, tecendo uma larga teia de solidariedade em prol da “paz”. Por “paz” deve-se entender, é claro, uma paz chamberlainesca, a todo custo, e com todo mundo ou, em outros termos, uma paz que constitua um ambiente propício para a o alastramento incruento do nazismo por toda a Europa. Os trabalhos deste casal, apoiados por mil outros recursos menos claramente caracterizados, dão a esta corrente uma grande influência, e foi graças a ela que o acordo de Munich foi assinado... e impunemente violado. Na própria Inglaterra, chegou-se a escrever pela imprensa que esta organização política mais ou menos clandestina beneficiava mais a Alemanha do que milhões e milhões de baionetas.

Na França, também transpareceu, embora menos claramente, o trabalho deste grupo através da política de Munich ligada a Chamberlain, e sobretudo através da conspiração dos “cagoulards”, episódio escandaloso que o Governo se apressou em abafar, mas que tinha uma consistência muito maior do que à primeira vista se poderia supor.

Há muito tempo o “Legionário” vem mostrando a solidariedade destes elementos com o nazismo, ao mesmo tempo que aponta as ligações do nazismo com o comunismo. Esta última parte já foi confirmada pelo pacto teuto-soviético. E a segunda parte? Terá sua confirmação?

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A penetração objetiva e minuciosa dos acontecimentos políticos constituem um campo fechado a certos espíritos intoxicados por uma formação intelectual defeituosa e que querem ver todas as coisas com simplicidade absoluta, tal e qual se vê, por exemplo, que 2 + 2 = 4. É possível ver claro nas águas turvas da política. Mas ver claro em coisas turvas é possível, mas compreender com um grosseiro simplismo coisas complexas é impossível. Pascal fez uma oportuníssima distinção entre “espírito matemático” e “esprit de finesse”. Quem, sem “esprit de finesse”, quer julgar de coisas impregnadas de “finesse”, por sua própria natureza fará um papel não muito diverso do macaco em casa de louças...

Isto posto, vamos aos fatos. Todas as coisas em si, as delongas havidas na declaração de guerra à Polônia e na organização de uma ofensiva em regra contra a linha “Siegfried” podem ter mil explicações aceitáveis e perfeitamente normais. Não obstante isto, o bom senso popular tem julgado de forma maliciosa tais delongas, atribuindo-as ao propósito deliberado de esperar a deglutição da Polônia, a fim de atender a alguma proposta de paz do Sr. Mussolini. Em suma, um novo Munich em perspectiva. Assim, segundo essa impressão dominante, os Srs. Daladier e Chamberlain estão muito longe de ser anti-hitleristas, apesar das frases sonoras que o governo inglês, à guisa de bombas, fez espalhar por aeroplanos sobre o solo alemão.

Este modo de ver, em última análise, vem corroborar a velha hipótese do “Legionário”.

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Isto quanto ao “bom senso popular”. Mas a expressão é vaga, tanto mais que em nome do bom senso popular muita coisa se tem feito, inteiramente divorciada do bom senso autêntico. Deixando o bom senso popular de lado, o que pensa o “Legionário”, perguntará qualquer leitor?

O “Legionário” pensa o que sempre pensou. Entretanto, não consideramos absolutamente certo de que o Sr. Mussolini sacará na hora “H” da algibeira algum novo “Munich”. Se as coisas correrem como tem corrido até agora, será este um desfecho sumamente lógico da situação. Mas a reação interna, tanto na França quanto na Inglaterra cresce cada vez mais ante a perspectiva de uma nova paz, inabilmente apontada pelo Sr. Göering em seu nervosíssimo discurso. E esta reação é capaz de ir tão longe que ameaça seriamente os governos inglês e francês, com sua estabilidade parlamentar. Caídos estes amigos decididos do Sr. Hitler, a guerra continuaria,  conduzida então por inimigos autênticos, da marca, por exemplo, dos srs. Eden e Churchill. Então, “antes que um aventureiro ponha a coroa sobre a cabeça” melhor será que, a todo custo ele continue com os srs. Daladier e Chamberlain e que estes se reservem a oportunidade de, fazendo embora a guerra espreitar circunstâncias mais favoráveis para ensaiar novamente uma “paz a todo custo”, justificada pelas teorias de um pacifismo sentimentalista hipertrofiado que eles sustentam apoiados em uma visão toda especial dos interesses dos respectivos países.

Entretanto, se bem que este curso de acontecimentos esteja na lógica das coisas, e se bem que ele em nada nos surpreenderia, constituindo pelo contrário uma clara confirmação de nossos pontos de vista, possível é que as coisas tomem outro rumo. Não há, no jogo de parceiros, feito pelos dois ditadores totalitários, pelo ditador rubro e pelos dois ditadores democráticos, nenhum interesse em desmascarar de tal forma a recíproca solidariedade.

Foi uma inabilidade, sob este ponto de vista, o pacto teuto-russo. É possível que, dentro em breve, Hitler e Stalin brinquem novamente de inimigos, “pour epater les bourgeois”, e despistar o público. E é possível que a íntima solidariedade teuto-italiana também seja provisoriamente encoberta, aproximando-se a Itália das potências democráticas. O jogo apareceu com clareza há pouco tempo. Agora, provavelmente vão os políticos embraralhá-lo novamente a fim de conduzir a seu talante a farândola.

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Muita gente perguntará  que juízo, em suma, fazemos dos mencionados chefes de Estado. Sua política seria, pois, inteiramente indiferente aos interesses pátrios?

Está aí uma pergunta a que não nos interessa responder. Suas intenções últimas e mais secretas deverão ser perscrutadas por outros; por seus co-nacionais, por exemplo. Mas suas ações, estas caem debaixo da alçada da opinião mundial, não tanto para serem objeto de juízos especulativos, quanto de um exame prático e objetivo, tendo em vista o interesse do país de cada um de nós.

É este o ponto de vista do “Legionário”. Outra coisa não lhe interessa senão esquadrinhar o que, de positivo, advirá com a permissão de Deus, para a Igreja e possivelmente para o Brasil, de toda esta atividade de bastidores.