Legionário, N.º 365, 10 de setembro de 1939

 

CIVITAS SANCTA

A belíssima Pastoral com que S. Ex.a Rev.ma, o Sr. D. José Gaspar de Affonseca e Silva brindou os seus diocesanos é um monumento literário de alto valor no qual se espelha, com suavidade e limpidez, a grande alma e o coração sem fronteiras do novo Arcebispo de São Paulo.

Há na personalidade do novo Arcebispo curiosas analogias entre o físico e o moral. Jamais vi uma fotografia que lhe retratasse maus os traços, ou que lhe deformasse a fisionomia. Qualquer objetiva de fotógrafo, por mais imperfeita que seja, ou por mais imperito que se manifeste seu manuseador, fixa os traços  de S. Ex.a Rev.ma, com uma fidelidade surpreendente. Ele é ele mesmo, inteiramente ele, exclusivamente ele, em todas as fotografias.

Essa mesma propriedade se verifica em sua alma. Nossos escritos são, geralmente, documentos em que espelhamos nossa mentalidade. Certos espíritos, entretanto, são brumosos e dificilmente se retratam através do que escrevem. O leitor percebe sempre que elas ficaram fechadas dentro de si mesmas, deixando transparecer, voluntariamente ou involuntariamente, apenas uma parte mínima de sua verdadeira configuração moral ou até - Talleyrand nos vem à memória a este propósito - ostentando para uso externo uma personalidade de ficção que é muito diversa da personalidade real que possuem. Por assim dizer, as palavras não são, neste caso, senão um “travesti” e os documentos um palco onde o espírito do autor representa um papel muito diverso de sua própria índole.

Não é assim o Arcebispo eleito de São Paulo. Também moralmente é ele facilmente fotografável. E todo o seu espírito transparece, sempre com singeleza, porém sempre com dignidade, através de qualquer frase por ele escrita.

A Carta Pastoral do sucessor de Dom Duarte não é senão um formoso comentário do lema que inscreveu em seu brasão de armas, por ocasião de sua Sagração episcopal: “ut omnes unum sint”.

Uma a uma, o Ex.mo e Rev.mo Sr. Dom José Gaspar de Affonseca e Silva menciona as atividades intelectuais, sociais, econômicas ou materiais do Estado. Para cada uma tem ele uma palavra de simpatia e de afeto.

Para cada uma encontra ele, em seu coração de Bispo, uma corda particularmente sensível a fazer vibrar. Para o intelectual como para o operário - colocados nos dois pólos da sociedade - para os Sacerdotes como para os sentenciados - colocados nos dois pólos dos valores espirituais - para os doentes dos hospitais como para a mocidade no pleno desenvolvimento de seu vigor físico tem ele palavras de carinho condicionadas às suas circunstâncias particulares. E cada qual lendo-o sente-se compreendido em seus problemas, encorajado em suas lutas e amparado em seus sofrimentos.

Essa grande bondade, que é um dos traços característicos do novo pastor, é também, e de modo incontestável, um traço característico de nosso povo.

Mas, se a bondade brasileira, privada do amparo de uma instrução religiosa real e metódica, descamba com freqüência demasiada para o indiferentismo, para o liberalismo, para a acomodação com todos os erros e todas as opiniões, ela pode encontrar na Pastoral o corretivo deste deplorável defeito, que é, de todos, o que mais caro tem custado à Pátria.

Alma ardente de Bispo, ninguém encontra palavras mais suaves para falar em paz e em concórdia do que o autor da Pastoral. Entretanto, o que se nota em mais de um trecho - e isto é comum na pena de um Bispo - é a preocupação de só admitir a paz com ressalva dos direitos da Verdade, e a Unidade não na acomodação de coisas que “hurlent de se trouver ensemble [urram de se encontrar juntas], mas na recondução de todos ao aprisco de Nosso Senhor Jesus Cristo.

* * *

O lema “ut omnes unum sint, na linguagem da Pastoral, poderia ter esta tradução: para que todos se unam na posse da Verdade e na prática do Bem, isto é, no aprisco da Igreja.

Por isto mesmo, à medida que S. Ex.a Rev.ma se refere aos vários setores da vida social, nota-se nele o ardente desejo de os reconduzir ao Corpo Místico de Jesus Cristo, isto é, a Santa Igreja de Deus. Uma palavra de sobrenatural, de Fé e de amor a Igreja se insinua sempre em suas expressões de afeto. Nota-se mesmo, e à evidencia, a linguagem do Bom Pastor, que apela para os pontos cardeais da Arquidiocese, logo na sua primeira alocução às ovelhas, a fim de que acudam todas para o regaço materno da Igreja, e haja um só rebanho em torno do legítimo Pastor.

Esta unidade, que foi um anelo supremamente ardente do próprio Coração de Jesus, encontra-se  na ânsia de a realizar em todas as linhas do Evangelho e em todas as páginas da História da Igreja.

Na parábola da videira, por exemplo, o que há senão o anelo da unidade? E o trabalho do apostolado, legado pelo Salvador à Igreja Católica, o que é senão a luta pela unidade?

Que todos sejam um! Que primeiramente os sarmentos, que são os filhos da Igreja, se unam cada vez mais à vide que é a Igreja. Deste trabalho preliminar e indispensável, que consiste em instaurar em nós uma mentalidade conforme à da Igreja para que dela decorra uma vida conforme a dos Santos, passa a Igreja ao trabalho de conquista. E o Bom Pastor, sem jamais perder a união com a Videira, vai pelos atalhos e pelos caminhos, afrontando perigos, vencendo fadigas, suportando intempéries, galgando montanhas e palmilhando vales profundos, procurar a ovelha perdida que geme no abandono, no fundo do precipício.

Que todos sejam um à sombra da Igreja, sob os olhares de Maria, nos pés do Santíssimo Sacramento! Que todos sejam um no professar intransigentemente a Verdade ensinada pela Igreja! Que todos sejam um no praticar inflexivelmente os Mandamentos, não apenas quando atraentes e formosos aos olhos de nossa sensibilidade, de nossa fantasia, mas ainda quando árduos, ingratos e áridos os deveres por eles impostos! Que todos sejam um no trabalho de evangelizar as almas sedentas da água viva, que é a única a poder sacia-las! Que todos sejam um, governantes e governados, ricos e pobres, plebeus e nobres, cultos e ignorantes, não em uma unidade que, à moda socialista, confunda e amalgame em um verdadeiro caos o corpo social, mas em uma unidade que consolide e penetre de suave harmonia o funcionamento e as relações das classes, desiguais pela fortuna e pela situação! Que todos sejam um no trabalho para aliviar as dores físicas e combater as moléstias do corpo! Mas que, sobretudo, sejam todos um para combater intransigentemente os fautores de desordem que enchem de angústias, de perturbações e de perigosas inovações todo o corpo social.

São estes os votos brotados do coração ardente do novo Arcebispo, e que espelham tão bem sua grande alma, através de sua formosa Pastoral.

 O que nos compete a nós senão rezar ardentemente e trabalhar entusiasticamente pela sua realização?