Legionário,   361, 13 de agosto de 1939

A.P.F.

O problema do ensino secundário é, hoje em dia, a “bête noire” de quantos se ocupam realmente de sociologia e de problemas administrativos e políticos no Brasil. Evidentemente, não falta entre nós uma certa categoria de sociólogos que lêem os problemas estudados por seus congêneres da França, da Alemanha ou dos Estados Unidos e que, muito gravemente, se põe a discorrer sobre eles com a certeza plena de que existem entre nós com as mesmas modalidades e com o mesmo grau de importância com que os pintam os livros de sociologia do exterior. Mas a sociologia autêntica, aquela que não se contenta com divagações de gabinete mas desce à realidade a fim de a estudar objetivamente, esta se alarma hoje em dia com a questão do ensino secundário, vendo nela já não um problema corriqueiro e de fácil solução, mas um câncer devorador que se instalou no âmago de nossos mais fundamentais interesses e que cumpre extirpar quanto antes, a fim de evitar para o Brasil um futuro que, sem qualquer pessimismo, se poderia chamar catastrófico.

Esta questão do ensino secundário tem sua história. E parece-me que esta história vale a pena ser contada pois que ela entra, agora, em uma fase promissora e brilhante, que devemos encarar com a mais legítima e sadia satisfação.

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De há muito, o problema do ensino secundário existe e se vem agravando. No tempo já distante – entre 1921 e 1926 – em que fiz meu curso ginasial, já fui uma vítima dos erros deploráveis que, de lá para cá, tem tido um desenvolvimento terrível, calculável apenas nas cifras astronômicas.

Lembro-me perfeitamente da indignação com que meus colegas e eu nos submetemos às exigências francamente arrasadoras dos programas oficiais. Alguns exemplos darão disto uma idéia. No curso de Corografia, éramos forçados a decorar – sob pena de uma inexorável reprovação – todos os nomes de rios, lagos, montes, montanhas, riachos, montículos e até quase das simples poças de água que demarcavam os limites do Brasil com os demais países e os dos Estados uns com os outros. Acrescenta-se a isto que nosso país é dos mais extensos do mundo, que além disto ele tem 21 Estados com fronteiras internas intermináveis, e ter-se-á a idéia do esforço inútil que se exigia dos pobres ginasianos de meu tempo. Em História do Brasil, havia um erro análogo. Éramos, por exemplo, forçados a decorar o número exato e as diversas variedades das embarcações que compunham as expedições que vinham ao Brasil. Entretanto, em geral, ignorávamos a distinção entre “chatas”, “navios redondos”, buques, caravelas, etc. Tínhamos que saber na ponta da língua todas as datas dos menores motins ou das datas mais insignificantes da vida de nossos principais homens de Estado. Entretanto, não restava nem sequer aos professores os mais competentes e sintéticos, o tempo necessário para uma explicação inteligente e interessante dos acontecimentos históricos, porque a decoração papagaiesca exigida pelo programa tomava todo o tempo. Em matéria de ciências naturais, o caos era completo. Só de botânica, tínhamos, se me não engano, mais de 200 pontos. Não havia animálculo marítimo ou avesinha do mais remoto recanto da China cujo nome não devêssemos decorar. E botânica e zoologia eram apenas capítulos da História Natural que tínhamos de ingerir! Quanto à química, o fracasso era total: devíamos saber fabricar... teoricamente, é claro, todos os corpos e decorar todas as possíveis reações, com grande indignação minha, pois que eu não podia deixar de refletir que minha inclinação era para a advocacia e não para o mister de farmacêutico ou de tintureiro!

De lá para cá, é incalculável como se tem agravado a situação. Abarrotados de uma ciência inteiramente oca, e ocos de uma ciência autêntica, nossos jovens ginasianos concluem em via de regra seu curso com uma verdadeira ojeriza ao estudo, e adquirem o hábito péssimo de considerar as aulas como uma amolação supérflua a que se deve submeter um aluno, para obter um diploma lucrativo. De sorte que todo o segredo consiste em tornar as aulas mais atraentes por meio da prosa e da indisciplina, e os exames mais fáceis por meio da cola.

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Como em geral acontece entre nós, todo o mundo gemia indolentemente a respeito de uma tão grande soma de males, e tudo continuava na sua marcha habitual.

O Pe. Arlindo Vieira S.J. foi a figura central de uma campanha salvadora que rompeu este marasmo criminoso. Pela Imprensa, pela ação individual junto a nossas altas autoridades, pelas suas relações com elementos de grande valor no ensino privado, e sobretudo pela sua grande cultura e pela preciosa experiência colhida nos Colégios da Companhia de Jesus, que estão sempre na primeira plana dos que entre nós existem, moveu ele uma luta de vida e de morte contra tais abusos, ferindo muitas vezes susceptibilidades ilegítimas e interesses inconfessáveis, mas prestando, com seu esplêndido desassombro, à Igreja e ao Brasil, um serviço à altura das tradições do hábito religioso que veste.

A grande vantagem da campanha do Pe. Arlindo Vieira foi de criar um estado geral de descontentamento, ou melhor, de transformar em um vigoroso movimento de opinião e descontentamento sonolento e apático que dominava toda a população. Não faltou neste sentido, quem qualificasse sua belíssima campanha de destrutiva, e não de construtiva. É que a certos olhos de uma inigualável miopia não acode a reflexão de que, no Brasil sobretudo, o primeiro passo para se encontrar a solução de um problema consiste em mostrar que o problema existe, em criar a propósito dele um geral descontentamento, a arregimentar um movimento sério, para dar finalmente a este movimento a bandeira de uma obra realmente construtora. Há homens que não sentem a gravidade da situação em que se encontram, qualquer construção parece difícil e até irrealizável, porque conservam a esperança de que as coisas se arranjarão por si. O primeiro passo para se resolver um homem a agir construtivamente é indigná-lo contra os males que o afligem. A firmeza de seu propósito regenerador, a energia com que procurará o remédio salvador está na proporção de seu descontentamento contra o seu mal.

E essa obra foi o primeiro passo da realização do Pe. Arlindo Vieira.

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Chegou, entretanto, agora, a fase da colheita. O grão da boa doutrina já foi semeado, o fermento da ira santa já foi disseminado. Hoje em dia, graças a esta campanha de que o Pe. Arlindo Vieira foi a expressão mais nítida e característica, na massa das famílias brasileiras uma reação se esboça.

E por isto fundou-se no Rio de Janeiro a “Associação dos Pais de Família”, que se propõe o programa de lutar pelos princípios das Encíclicas “Casti Connubii” e “Divini Illius Magistri”, contra os desregramentos alucinantes da nossa legislação sobre ensino secundário.

Essa associação, que segundo o hábito carioca está sendo designada mais brevemente como A.P.F., é a cúpula da obra grandiosa do Padre Arlindo Vieira. Propõe-se ela levantar pelo Brasil inteiro uma verdadeira cruzada contra nossos males atuais de tão profundas repercussões sobre a formação religiosa e moral da infância.

Perante esta cruzada, não poderá haver simpatizantes apáticos e ineficazes. A sua causa é uma causa nacional. Mais ainda pela sua relação com a causa da Igreja, ela se eleva à altura de uma verdadeira guerra santa. E, diante de uma guerra santa, não há simpatizantes: há desertores ou soldados.

Atendendo com imenso prazer a um apelo que lhe foi dirigido, o “Legionário” se alista desde já como cruzado desta grande guerra, mais importante talvez do que muita luta cruenta que nossa História registra. E ao mesmo tempo convidamos ardentemente nossos leitores a que sigam nosso exemplo.