Legionário, 360, 6 de agosto de 1939

Dom José

O comum das pessoas se divide em duas categorias. Algumas, têm suas qualidades pessoais escondidas atrás de uma aparência desfavorável e até rebarbativa. Como um tesouro oculto, estas qualidades ali permanecem a vida inteira, franqueadas apenas aos observadores perspicazes que saibam distinguir, na ganga, os rápidos e inconfundíveis lampejos do ouro de lei. Outras, pelo contrário, têm todas as suas qualidades à mostra, e seu valor se impõe à admiração de quem com elas trata, por pouco que exercitem suas faculdades de observação.

Não pertence nem a uma nem a outra categoria o novo Arcebispo de São Paulo. Ele é das pessoas raríssimas e privilegiadas, cujas qualidades não estão apenas franqueadas à apreciação de qualquer observador de mediana argúcia, mas que se poderiam dizer em certo sentido clamorosas, porque transluzem com tanta evidência, que chamam a atenção até mesmo dos que dele se aproximam sem o menor intuito de o observar. Suas qualidades não são simplesmente acessíveis ao observador: são conquistadoras e o tomam de assalto de tal modo que ele se sente subjugado, antes mesmo de ter pensado em fazer qualquer observação psicológica.

Um rápido exame de sua vida no-lo prova à evidência.

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Em 1935, São Paulo se habituou prontamente ao seu novo Bispo Auxiliar, de porte fidalgo, de maneiras afáveis e paternais, de trato invariavelmente suave e atencioso, que tão bem quadrava dentro da moldura de ouro na qual os paulistas, cheios de admiração, contemplavam com enlevo a figura majestática do grande Dom Duarte. Na magnificência das grandes cerimônias litúrgicas, no decoro muitas vezes esplêndido das solenidades oficiais ou de certos acontecimentos sociais, a figura do novo Bispo Auxiliar se tornou dentro em breve de tal maneira central e necessária que sua ausência constituía uma diminuição e sua falta uma lacuna insubstituível.

A essa impressão que desde logo se transformou em torno do jovem Bispo em uma aura de popularidade, outras se foram somando.

Em primeiro lugar, sua infatigável operosidade. Quem conhecesse a sua diminuta sala de audiências na Cúria Metropolitana e a visse regurgitando de elementos os mais heterogêneos, desde a humilde Religiosa de um dispensário de bairro, até o grande intelectual, grande industrial ou grande banqueiro de nosso alto mundo, teria uma idéia da multiplicidade e prolixidade dos assuntos constantemente levados à sua consideração. A cada um destes assuntos, o Auxiliar de Dom Duarte consagrava uma atenção meticulosa e completa. Tinha, ainda, bastante ânimo para dar a cada visitante alguns minutos de palestra geral, em que não deixava jamais de se inquirir de sua saúde e dos seus, de seus assuntos mais caros, etc. E, quando entrava o outro visitante, a mesma calma a mesma atenção benevolente, o mesmo acolhimento carinhoso era dispensado e isto até que, não raramente, as audiências se prolongassem até o cair da tarde.

Com a pasta cheia de papéis e acompanhado daquela figura inseparável da sua, e que é a de seu dedicadíssimo e estimadíssimo Secretário, o Bispo Auxiliar rumava então para o Seminário, onde jantava e começava a atender outra vez a pessoas que o procuravam.

As audiências da tarde eram, nos seus hábitos, as audiências dos casos “encrencados”. Conversas longas, em geral com dirigentes das iniciativas católicas de maior relevo, em que eram traçados planos, examinados problemas e assentado diretrizes de longo alcance. Vinha, finalmente, o período do estudo e da correspondência. Depois a oração. E, não raramente, quando o Bispo Auxiliar ia dormir, estava mais fatigado do que grande número de operários. Servus servorum Dei” no sentido mais estrito da palavra, tendo aberto seu dia pela oração, tendo-o preenchido inteiro no “serviço dos servos de Deus”, e tombando exausto para um sono breve e sempre inferior às suas necessidades.

A operosidade do Bispo de Barca, entretanto, não se manifestava apenas no tão extenuante serviço de Cúria. Além da ministração assídua dos Sacramentos que só podem ser dispensados por um Bispo, além das visitas pastorais e canônicas, além da presença constante às solenidades oficiais de relevo, além do cumprimento exatíssimo de todos os deveres de cortesia, o novo Bispo Auxiliar tinha tempo – e era o melhor de seu tempo – para delinear novos planos de apostolado, aos quais se consagrava com ardor todo evangélico.

Entre estes planos, quais acentuar? Entre tantas realizações, qual pôr em relevo? De Pio XI, disse-se que era o Papa das Vocações, o Papa da Ação Católica, o Papa das Missões, o Papa das Encíclicas, e com tudo isto não se compendiou seu pontificado inteiro. Dom José está nas mesmas condições. Foi o Bispo das Vocações, o Bispo da Ação Católica, o Bispo do Rádio e da Imprensa, e com tudo isto não se terá compendiado toda a sua atividade.

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A tentação de escrever artigos excessivamente longos é a pior tentação técnica do jornalista.

Não posso, entretanto, deixar de pôr em relevo uma característica do novo Arcebispo. É a harmonia dos contrastes que nele se encontram.

Fidalgo de porte e de maneiras, ninguém, entretanto, tem para com o operário palavras que lhe vão mais diretamente ao coração, ninguém zela mais por ele, e ninguém tem um mais ardente zelo por seu bem-estar.

Suave e pacífico em extremo, teve, entretanto, gestos de energia que deixaram surpresos quantos os observaram.

Operoso quase até a temeridade, tem entretanto uma calma interior que se irradia sobre todos os que o rodeiam.

Muito conservador por índole e por convicções, ninguém mais do que ele tem o espírito aberto às inovações justas, principalmente no que se refere ao Apostolado.

Muito reservado por hábito e por temperamento, ninguém sabe dispensar aos amigos uma mais suave e jovial intimidade.

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Não seria, pois, necessária qualquer explicação para a alegria verdadeiramente explosiva que se apoderou de São Paulo no dia 1º, quando o Rádio noticiou a nomeação do Ex.mo Rev.mo Sr. D. José Gaspar de Affonseca e Silva para o sólio Arquiepiscopal.

A essa alegria, o “Legionário”, que sempre teve nele um apoio precioso e mais do que isto um amigo paternalmente solícito, se associa com a abundância de sentimentos que facilmente se pode imaginar.