Legionário, N° 359, 30 de julho de 1939 

 

“ACTION FRANÇAISE”

 

Muito recentemente, já tratei nestas colunas do caso da “Action Française”. Não voltaria, pois, a insistir sobre ele, se a documentação há muito pouco tempo chegada ao Brasil, e que publicamos em outro local, não viesse trazer novamente à baila este assunto, graças ao ato de benignidade mediante o qual o Santo Padre Pio XII retirou do Index Librorum Prohibitorum o órgão oficial daquela corrente monarquista.

Tal documentação nos oferece um exemplo por demais eloqüente da benignidade e da prudência da Santa Sé, para que nos abstenhamos de tecer alguns comentários a seu respeito.

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O “caso” da “Action Fraçaise” foi uma das maiores tribulações do Pontificado de Pio XI. Efetivamente, nada pode doer mais a um coração católico – e portanto, “a fortiori”, a um coração de Pontífice – do que o ter de lutar contra os próprios filhos da luz, que a pouco e pouco se transformaram em filhos das trevas. Na realidade, são os apóstatas que rasgam a túnica inconsútil de Nosso Senhor Jesus Cristo, adotando doutrinas incompatíveis com a Igreja Católica. São eles os trânsfugas, eles o pomo da discórdia, eles os fautores da separação. Quem trabalha para os declarar desligados da Igreja de Jesus Cristo outra coisa não faz senão esforçar-se por obter que seja reconhecida de direito uma situação de fato. A ruptura se deu pelo fato da apostasia. A excomunhão não é senão a declaração pública dessa ruptura e a cominação das penalidades espirituais que a acompanham.

Entretanto, por um fenômeno psicológico curioso, enquanto a inteligência se farta de declarar à saciedade essas coisas, o coração diz o contrário. E efetivamente quem denuncia o erro de um irmão na Fé tem a impressão que está tomando a iniciativa da ruptura, e ferindo em primeiro lugar! Quantas vezes, trabalhando para conseguir a amputação do membro canceroso, tem-se a impressão de estar acabando de cortar o “arbusto partido”; quantas vezes combatendo-se o incêndio da heresia, tem-se a impressão de estar apagando a mecha que ainda fumega! Quem tem o senso da Igreja pode medir a dilaceração íntima que um ato de energia desta natureza sempre acarreta, a bem dizer, essa dilaceração interior é o pondus diet de todo jornalista católico cônscio de seu verdadeiro dever. E se muitas vezes o coração do jornalista sangra de pesar no momento em que redige o libelo de algum erro a ser denunciado, como não há de sangrar o coração de um Papa de declarar separado do rebanho de Jesus Cristo e infeccionado pelas mais severas penas espirituais aquela mesma ovelha perdida, por cuja salvação ele daria de bom grado a última gota de seu sangue?

Ao grande e intrépido Pontífice não faltaram outras dores. Excomungados os dirigentes da “Action Française”,  procuraram eles, como Lúcifer, blasfemar contra o poder que os feria e arrastar na sua queda para o abismo inúmeras almas fiéis. Ultrajes à Igreja, sarcasmos, calúnias, injúrias, nada disto foi poupado ao Pontífice já idoso. Não faltou quem o considerasse um representante da maçonaria no Trono de São Pedro e, blasfêmia pior ainda, simpatizasse com os próprios comunistas. Assim, cada vez mais as ovelhas perdidas se enredavam no erro. E enquanto isto o coração amargurado do velho Pai só podia chorar e rezar. Realmente, Pio XI, deixando rolar pela sarjeta as acusações mais baixas, rebateu uma ou outra que lhe mereceu atenção. E, depois de ter assim defendido a honra do Pontificado, calou-se como Nosso Senhor ante as injurias de seus adversários.

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Qual a causa de tantas apostasias subsequentes à dos dois chefes monarquistas?

Muitos católicos, esquecidos de que Cristo só está onde está a Igreja, e a Igreja só está onde está o Papa, concederam a Maurras e Daudet um domínio incondicional sobre suas próprias inteligências. Esperaram do inegável talento destes dois chefes, de sua doutrina política que realmente apresenta aspectos empolgantes, de sua habilidade que incontestavelmente tem sido grande, uma salvação para a Europa ameaçada. Não apenas uma salvação temporal, mas, o que ainda é mais grave, uma salvação espiritual.

Não faltou quem considerasse mais proveitoso para a França o triunfo da “Action Française” do que da Ação Católica, entendendo que o domínio de Daudet e de Maurrasrecristianizaria” a França mais a fundo do que o da Santa Igreja de Deus. Não faltou quem considerasse a Igreja inoperante contra seus adversários, devendo apenas a “Action Française” ser apoiada por ser só ela eficiente. Não faltou quem considerasse mau católico quem não pertencesse à “Action Française”. Em suma, não faltou quem achasse que “fora da Action Française não há salvação”.

Entretanto, eles eram cegos que conduziam cegos. E, segundo a parábola evangélica, caíram todos no abismo.

Eles confiaram a homens uma dedicação, um entusiasmo, um incondicionalismo que só as coisas de Deus merecem. Os homens caíram: com eles caiu tudo o que de esperanças se havia depositado sobre eles. Tudo ruiu. De pé, só ficou a Igreja com sua doutrina infalível.

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É absolutamente positivo que chegou a tal ponto esta obsessão, que muita gente morreu sem Sacramentos, para não renunciar até à hora da morte a Daudet e Maurras. Estas almas, das quais algumas estarão porventura gemendo no inferno, o que pensariam se tivessem podido prever que o próprio Daudet e o próprio Maurras se converteriam, abandonando os erros para os quais haviam arrastado tanta gente?

Deus tem suas horas. A hora da misericórdia e do perdão soou para os heresiarcas franceses no momento em que revolveram humilhar-se ante a majestade do Trono Apostólico que haviam ultrajado, e, confessando humildemente suas faltas “queimaram o que haviam adorado, e adoraram o que haviam ultrajado”.

Já em vida de Pio XI, haviam eles mandado uma retratação à Santa Sé. Enquanto eles esperavam a resposta que estava sendo preparada no Vaticano, o Papa morreu. Mas Pio XII lhes concedeu o perdão implorado. E a reconciliação se fez completa, tão completa, tão feliz, tão memorável, quanto forem sinceros e duráveis os propósitos dos filhos pródigos.

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O que esta reconciliação apresentou de benigno e de completo não excluiu, entretanto, por parte da Santa Sé, uma vigorosa medida de prudência.

Muita gente que renunciou a custo a Daudet e Maurras por ocasião da condenação, terá, agora, reacendido inteiramente seus antigos fervores. Não é este, porém, o espírito da Igreja. No próprio documento em que ela indulta os excomungados, ela fez reservas que devem constituir para nós lições preciosas:

1) todas as condenações continuam de pé para todos os erros já condenados, e portanto também para todos os livros e jornais já proibidos;

2) a permissão para se lerem os futuros exemplares da “Action Française” não implica na reconstituição do funesto incondicionalismo que tantos males havia causado anteriormente. Pelo contrário, a Santa Sé chama a atenção de todos os fiéis para as verdades opostas aos erros de Daudet e Maurras, para todos os deveres que eles haviam negado, a fim  de que a reconciliação com as pessoas não signifique um abrandamento com o erro.

Longe do re-endeusamento dos heresiarcas ora penitentes pela graça de Deus, o que a Santa Sé quer é uma vigilância contínua...

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Tudo isto posto, como não sentir a alma cheia de gratidão para com o Senhor? Como não Lhe agradecer essa conversão feliz que veio marcar o renascimento espiritual de homens dignos de respeito e de admiração por muitos títulos, a despeito da enormidade de seus erros que chegaram a empanar em dado momento todas as suas qualidades?

Não há mal pior do que a pretensão de se ser mais católico do que o Papa. Roma falou: a causa está julgada. Que ninguém se entregue a entusiasmos incondicionais nem a um rigor descabido.

Sob as ordens do Papa, saibamos sentir em nosso coração a benignidade que o levou a perdoar, o zelo que o levou a aconselhar a cautela, e a santa alegria que o fato traz para a Igreja de Deus.