Legionário, No 357, 16 de julho de 1939

 

No deserto de homens e idéias

Principalmente na época em que vivemos penso que não deve haver, para o católico, preocupação mais viva e mais constante do que o incessante revigoramento dos laços espirituais que o prendem à Santa Igreja.

Disse Santo Agostinho que ninguém pode ter a Jesus Cristo como Pai se não tiver a Igreja como Mãe. A medida de nossa união com Cristo se calcula pela medida de nossa união com a Igreja. Se, de acordo com a parábola da vinha, o fruto que produzirmos na ordem sobrenatural e espiritual está na proporção de nossa união com Cristo, está também, implicitamente, na proporção de nossa união com a Igreja Católica.

Ora, para um católico, não é suficiente que essa união se traduza na crença em algumas verdades de Fé e na prática de alguns Mandamentos. Ou ela é inteira, ou não existe.

No entanto, não é difícil verificar como o mundo, o demônio e a carne conspiram, em nossos dias, para destruir essa união sobrenatural. E quando não a conseguem destruir, ao menos sua conspiração se volta para o objetivo de a debilitar de todos os modos possíveis, com o intuito de desferir contra ela, mais cedo ou mais tarde, um golpe mortal.

A todos estes perigos, o católico não deve opor uma atitude simplesmente minimalista. Pelo contrário, longe de se contentar em se manter dentro dos limites mais largos da ortodoxia e constantemente debruçado sobre o muro divisório que o resguarda do abismo da heresia, deve ele timbrar em tornar cada vez mais íntima tal união com Cristo. E, evidentemente, para isto não pode ser suficientemente recomendada a prática espiritual consistente em aproveitar todas as ocasiões para intensificar em nós o amor à Santa Igreja.

E, como o presente Concílio nos oferece para tanto uma preciosa oportunidade, não deixaremos de a utilizar meticulosamente.

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Disse alguém, não sem espírito, que o Brasil é um deserto de homens e de idéias. Graças a Deus, entretanto, o presente Concílio constitui para essa famosa afirmação um desmentido irrefutável. Efetivamente, o que é ele senão uma imponente assembléia de homens do maior valor, que consagram todo o brilho de sua inteligência, todo o tesouro de sua experiência e todo vigor de sua vontade ao serviço de uma idéia, de uma grande idéia, da única idéia que — contendo, como contém, a Verdade — sabe suscitar e pode merecer a oblação de tão inestimáveis oferendas espirituais?

O “Legionário”, levado pelo legítimo incondicionalismo de seu devotamento à Santa Igreja, jamais descambaria, entretanto, para o terreno da louvaminhança convencional e oficiosa que parece hoje mais do que nunca ser a praxe do jornalismo no mundo inteiro. A Igreja não precisa e não quer tais recursos de apostolado. Não precisa deles porque sua divindade se provaria cabalmente, ainda mesmo que os dignitários da Hierarquia Eclesiástica deste ou daquele país não merecessem louvores hiperbólicos. Não os quereria, porque a insinceridade não é arma de combate tolerada pela Verdade, e Aquele que é a Luz do mundo não precisa de artifícios insinceros para darem testemunho dEle.

Não é, pois, o desejo de fazer um elogio de encomenda, que ninguém solicitaria e ninguém apreciaria, que nos move a fazer este comentário. Mas a verdade aí está a nossos olhos, e nossa tarefa consiste apenas em chamar para ela a atenção de todos.

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Independentemente de qualquer consideração política ou de qualquer preferência por esta ou aquela forma de governo, todos os brasileiros trazem de um longo passado uma penosa tradição sobre o sistemático insucesso da administração pública na solução de muitos problemas sociais ou econômicos. É possível que esta ou aquela alteração constitucional, ou a ascensão ao poder deste ou daquele homem tenha trazido neste ou naquele período alguma melhoria sensível em nossa vida administrativa. Isto não obstante, as dificuldades com que o aparelhamento administrativo do Estado esbarra a todo o momento são tais e tantas que ainda mesmo dentro de um grande apreço a esforços oficiais, se poderia freqüentemente afirmar a incontestável superioridade das iniciativas particulares sobre as do Estado, em muitos empreendimentos de interesse público.

Sem falar em outras questões, e sem lembrar o delicado problema do Lloyd Brasileiro, basta fazer um confronto entre a Companhia Paulista de Estradas de Ferro e a Estrada de Ferro Central do Brasil, para impressionar a este respeito qualquer observador. O que de esforços pertinazes, de programas novos e de reformas regulamentares se tem feito para remediar à desastrosa situação da Estrada de Ferro Central do Brasil? E, no entanto, não está aí bem patente aos olhos de todos a desproporção entre os esforços noticiados e os resultados obtidos?

Evidentemente, estes insucessos têm causado uma situação de desânimo e de abatimento que, na psicologia charlatanesca que por aí corre, se chamaria facilmente “um complexo de inferioridade”. Esse pessimismo preliminar e inicial, que acolhe todas as medidas de envergadura emanadas da administração pública, é um dos tropeços mais fortes que um reformador de boa vontade poderia encontrar em seu caminho. E força é convir que as aparências são tais e tantas que dificilmente este “complexo” se poderia remediar.

Exatamente o modo pelo qual a opinião pública acolheu a “blague”, segundo a qual somos “um deserto de homens e de idéias”, é um índice expressivo desse pessimismo multiforme que nos infesta. O remédio, entretanto, não consiste na difusão de um otimismo oficial e de encomenda. Sejamos positivos. O mal existe. Sua debelação está necessariamente subordinada à debelação de sua causa. E é para este ponto que devemos voltar nossos olhares os mais atentos.

Para isto, o Concílio nos oferece uma oportunidade excelente.

Dizer-se que o Brasil é um deserto de homens e de idéias, equivale a dizer que está povoado de homens sem idéias, que por isto mesmo não são verdadeiramente homens.

Infelizmente, esse pessimismo negro chega às vezes a um ponto tal que, ligando-se a doutrinas materialistas, engendra a balela monstruosa do brasileiro racialmente inferior, irremediavelmente medíocre, condenado até à consumação dos séculos a fazer parte de uma espécie de sub-humanidade, segundo degrau do gênero humano, para o qual caem de quando em vez, e são avidamente recolhidas, as migalhas parcimoniosas do festim de espírito e de riqueza dos povos fortes. De sorte que o fruto de tudo isto seria um doloroso cruzamento de braços, indolentemente feito sobre os escombros de nossas ambições, enquanto de nossos lábios desiludidos partiria a famosa cançoneta, hoje um pouco antiquada:

Eh, vida malvada,

“Nem dianta fazer nada

Pra que trabalhar?

“Nem dianta a gente se esforçar”!

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Realmente, das muitas mazelas que nos afligem, voltemos os olhos para o Episcopado Nacional e contemplemos seu valor e suas obras. Através desta contemplação poderemos ver facilmente o que pode o Brasileiro quando vivificado e transfigurado por uma grande idéia.

Para evitar o terreno ingrato dos elogios pessoais, falemos coletivamente do Episcopado, sem destacar em suas fileiras as figuras mais salientes.

A grandeza dos homens se mede pelo valor de suas obras. E, através deste padrão, a grandeza do episcopado brasileiro constitui certamente o mais legítimo florão de nossa História contemporânea.

Como bem lembrou S.Ema o Cardeal Legado, em 1890 eram 11 os Bispos do Brasil. A religião, apresentada pelos meios de difusão da imprensa como uma tradição venerável que se estiola e que de um dia para outro será apenas lembrada nos museus, sofria evidentemente de uma asfixia de que a “questão religiosa” é um índice muito expressivo. Nas classes intelectuais, [...] inoculavam o vírus da impiedade em larga escala. No setor econômico, nossa independência murchava dia a dia mais, e a queda da monarquia teve, a este respeito, um sentido catastrófico que os historiadores contemporâneos já começam a perceber com nitidez. E o que sobretudo importa a nosso caso é que nossa independência era transferida para mãos alheias que, manejando os cordéis de nossa bolsa, tinham implicitamente em mãos, e não raro, as rédeas de muitos de nossos acontecimentos políticos. Finalmente, a americanização dos costumes que veio depois, arrancando nossas tradições e desfigurando nossa vida doméstica, matava um passado que estava impregnado de nossa mentalidade e de nossa Fé. A tal ponto que, do alto das cátedras universitárias, em São Paulo como no Rio ou em Recife, não faltava quem proclamasse bombasticamente a ruína do Catolicismo no Brasil.

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Contra um tal acúmulo de catástrofes, o que fez o Episcopado? Rezou e trabalhou. Ou melhor, rezou, trabalhou e venceu.

Efetivamente, hoje em dia as instituições políticas caíram, o cenário político do país se transformou, um imenso ciclone espiritual se desencadeou sobre o mundo inteiro, a corrupção dos costumes atingiu seu paroxismo, todas as forças conjuradas em pavorosa tempestade assediaram a Igreja no mundo inteiro, e a açoitaram furiosamente no Brasil. E hoje, 50 anos depois, a Hierarquia Eclesiástica a bem dizer decuplicou o número de seus membros, havendo mais de 100 Bispos no Brasil. De um lado, no interior de nossas missões, novos “Anchietas” dão origem a novas Cristandades, estendendo em nossas selvas o reinado pacífico e glorioso da Esposa de Cristo. E, do outro lado, no âmago das grandes cidades, como no mais afastado dos lugarejos civilizados, as organizações católicas se espraiam pujantes, contando em suas fileiras não apenas os anciãos cuja Fé resistiu a todos os vendavais, nem só os homens de idade madura que educam em suas famílias o Brasil de amanhã, mas ainda uma mocidade vigorosa e enérgica que é capaz de transformar o próprio Brasil de hoje. Tudo isto sem falar em uma infância esperançosa, que terá, no exemplo dos moços, um estímulo para a virtude que os moços de hoje raramente tiveram quando foram meninos...

Tudo passou, tudo caiu, tudo se transformou. E a Igreja? A Igreja não se limitou a resistir. Ela cresceu na tempestade e hoje canta o “Te Deum” de seu grande progresso, pela boca de seus Bispos, reunidos em conclave, à sombra de São Pedro, que até aqui se projeta na pessoa do Legado Pontifício.

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No silêncio, e às vezes no esquecimento geral, o Episcopado lutou, agiu, sofreu e, sobretudo, orou. No momento em que um balanço geral se impõe, vemos a messe que se apresenta carregada de espigas e de grãos.

Não é este o melhor elogio dos pastores através dos quais agiu o Divino Pastor?