Toda a história da segunda metade do século passado está cheia do rumor provocado pelas lutas entre socialistas e liberais, com grande dispêndio de argumentação e abundante uso dos recursos pirotécnicos de sua retórica demagógica. Os partidários de uma e outra escola se entregladiavam reciprocamente com uma ferocidade que embaía as massas ao mesmo tempo surpresas e apreensivas. Inútil é dizer que esse panorama causava nos espíritos a mais profunda desorientação. Pela imprensa, através das discussões parlamentares ou do alto das cátedras universitárias, proclamava-se barulhentamente que o mundo tinha chegado a uma encruzilhada em que os dois campos, liberal e socialista, se dividiriam para sempre. Dos corifeus de uma ou de outra escola quem conseguiria arrastar o mundo atrás de si? Era este o grande problema que dominava toda a atualidade de então.
Os espíritos aos quais o falso cientificismo do século ainda não tinha roubado o senso comum se sentiam desvairados. Tanto uma quanto outra escola tinha argumentos dos mais sérios a lançar contra a outra. Qual delas escolher? Alguns, nunca conseguiram transpor o limiar desta insolúvel alternativa. Outros, sentindo a necessidade de dar ao problema uma solução qualquer, acabaram por se inscrever em um ou outro campo, e, finalmente, por aceitar com entusiasmo, desvairados pela paixão partidária e pelo espírito do século, não apenas as verdades, mas ainda os erros da escola que adotara. Incontestavelmente, foi este o processo evolutivo de um grande número de mentalidades no século passado.
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Neste ambiente de confusão, não faltaram, felizmente, espíritos penetrantes que perceberam a enorme comédia que se desenrolava aos olhos das multidões imprevidentes e ingênuas.
Não haveria, então, entre o espantalho liberal e o monstro socialista, outra alternativa? Por força de que decreto misterioso e irracional a humanidade se deveria engolfar inevitavelmente nas fauces de um destes dois dragões? Quem não percebia que liberais e socialistas, com o enorme vozerio de suas polêmicas, faziam, na realidade, uma astutíssima propaganda, uns dos outros? Atrás de tanta virulência, quanta simpatia entre os dois campos! Cada um difamava o outro, é certo.
Qualquer liberal dizia do socialismo o que só se diz do diabo, e vice-versa. Mas, no ardor da refrega, ambos proclamavam que fora de seu próprio campo só havia um outro campo ideológico possível: o campo adverso. Pelo que, muito astutamente, faziam uma propaganda desse campo adverso, isto é, beneficiavam-no em relação às outras posições ideológicas possíveis, proclamadas implicitamente como absurdas. Um exemplo concreto será, talvez, esclarecedor. Para o liberal A, só havia dois caminhos possíveis: o socialismo e o liberalismo; e com grande abundância de argumentos procurava ele provar que o segundo era o melhor. Para o socialista B também havia só dois caminhos possíveis, o socialismo e o liberalismo, aquele melhor do que este. Para ambos, pois, qualquer posição ideológica que não fosse o socialismo ou o liberalismo seria absurda. Havia, pois, entre ambas as correntes uma estreita solidariedade doutrinária contra as demais. E esta solidariedade estreita era uma realidade muito mais profunda do que o dissídio superficial entre ambas as correntes.
Evidentemente, este dissídio constituía um modo hábil e absolutamente desleal de por o Catolicismo à margem, como uma terceira solução, impraticável e indesejável. E assim, as massas eram desviadas pela pirotecnia da luta vistosa entre ambas as correntes materialistas, a liberal e a socialista, e inteiramente alheias d’Aquele que é o Caminho, a Verdade e a Vida.
Leão XIII acabou, entretanto, com esse artifício diabólico. Mostrou ele com clareza invencível que socialismo e liberalismo estão entre si como o efeito e a causa; que de um erro se escorrega insensivelmente para o outro; e que, se era verdade que a primeira metade do século XIX foi essencialmente liberal e a segunda essencialmente socialista, o socialismo não representou a morte mas o triunfo do liberalismo, o qual, superando-se a si próprio em um esforço diabolicamente triunfal, arrancou de suas próprias entranhas um monstro pior do que ele, diferente dele apenas no que era pior, mas que apesar de tudo era a carne da sua carne e o sangue de seu sangue, no qual ele continuaria a viver mais completo, mais nefasto e mais hediondo do que nunca.
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É o que precisamos fazer também nós. Já é tempo de acabar com a balela acaciana de que o liberalismo, o socialismo e o comunismo, produtos típicos do século XIX, foram suplantados em nosso século pelo nazismo, pelo fascismo “et caterva”.
Certamente, esses “ismos” da direita sucederam aos “ismos” da esquerda, que agonizam hoje no mundo inteiro. Mas “suceder” não significa “suplantar” nem “destruir”. Os “ismos” da direita sucederam aos “ismos” da esquerda como o filho sucede ao pai, por uma sucessão natural e lógica, que faz do domínio herdado pelo filho muito mais a continuação e a sobrevivência do que a destruição do poderio legado pelo pai.
Como nas entranhas diabólicas do liberalismo nasceu o comunismo absolutamente totalitário, assim também das entranhas deste nasceu a estatolatria pagã de nossos dias. Mas - e isto é de uma incalculável importância - na transição do liberalismo para o socialismo, do socialismo para o totalitarismo comunista, e do comunismo para a estatolatria pseudo-anticomunista, não há senão uma evolução coerente e lógica, e nunca uma solução violenta de continuidade, capaz de interromper a genealogia doutrinária destes erros. Por mais surpreendente que pareça, nosso século é na realidade o século em que o triunfo do liberalismo é completo e absoluto. Porque se o liberalismo democrático morreu em política, foi para ser substituído por um cesarismo ainda mais democrático do que ele: a Rússia e a Alemanha são, hoje, nações muito mais democráticas e igualitárias do que a Inglaterra liberal. Nelas, pois, muito mais do que nesta última triunfa o demônio da Revolução Francesa de 1789.
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Que nosso século é o século do liberalismo ideológico, tanto filosófico quanto religioso, provam-se as mais variadas e constantes manifestações de nossa vida social. Ainda recentemente, a casa “Athenea Editora” resolvendo publicar algo sobre Religião, não teve melhor idéia senão de publicar uma coleção de obras diversas, das quais cada uma fizesse a apologia de uma determinada religião. Como se vê, liberalismo puro, do mais tipicamente “século XIX”. Para um público de formação religiosa mais apurada, como é o do “Legionário”, é inútil insistir sobre o erro crasso dessa atitude, condenada absoluta e irrevogavelmente pelos Pontífices, dos quais mais recentemente Pio XI na magistral Encíclica “Imortalium Animos”.
Entretanto, por esta ou aquela razão quis a casa editora homenagear o Catolicismo iniciando a série de publicações com um livro de apologética da Santa Igreja.
E, para isto, nada encontrou de melhor senão a “Apologia do Catolicismo” de Buonaiutti.
Como que para apresentar garantias de sua catolicidade irrefragável a obra traz, no início, o imprimatur de autoridades eclesiásticas romanas. Assim, pois, o autor desprevenido sorve a doutrina ali contida, certíssimo de que está haurindo a mais autêntica doutrina da Igreja.
Entretanto, a verdade é que esta obra, como outras do mesmo autor, contém tantos e tais erros que foi ele fulminado com a maior penalidade que se pode lançar contra alguém na Igreja. Efetivamente, é ele um “excomungado vitando”. Das diversas modalidades de excomunhão, é esta a mais terrível. Quem a sofre fica inteiramente segregado do convívio dos fiéis, que não podem ter com ele nem sequer o menor e mais longínquo trato social, tolerando-se apenas que seus íntimos parentes tenham com ele algum contato eventualmente imposto pela caridade. Nem sequer um mero cumprimento pode ser dado por um fiel a um “excomungado vitando”. Mais ainda: se se encontram em uma mesma calçada, e o fiel vê o excomungado a longa distância, deve mudar de calçada imediatamente.
Por isto mesmo, todas as obras deste autor foram postas pela Santa Sé no “Índex”, sendo também absolutamente proibido assistir às suas aulas. A aprovação das autoridades eclesiásticas romanas que figuram no livro editado pela “Athenea”, se autêntica como supomos, é anterior à excomunhão, ficou, pois, inteiramente anulada por esta. Aliás, tal aprovação, ainda que fosse válida, seria insuficiente, pois que a tradução do livro deveria, por sua vez, ter o imprimatur da Arquidiocese de São Paulo, que ali não existe.
Finalmente, cumpre notar que o maior perigo desse livro está no fato de ser modernista. Enquanto outros livros excomungados contêm doutrina escandalosa e evidentemente anticatólica, os livros modernistas contêm erros subtis e funestíssimos, que muitas vezes apenas os teólogos muito adestrados percebem. Postos em circulação tais livros, intoxicam eles os fiéis desapercebidos, máxime em um país como o nosso em que a falta de instrução religiosa é notável.
Aí fica este triste exemplo de liberalismo, a provar que, na realidade, vivemos encharcados de liberalismo, muito mais do que nossos avós...