Legionário, N.º 355, 2 de julho de 1939

 

O  CONCÍLIO

No momento em que se iniciam os trabalhos do Primeiro Concilio Plenário do Episcopado Brasileiro, não poderia o “Legionário” deixar de consagrar algumas linhas àquele grande acontecimento. Pondo, pois, de lado o assunto que vínhamos tratando em artigos anteriores, voltemos hoje nossa atenção e nosso coração para  a grande assembléia em que os Príncipes da Igreja no Brasil, postos pelo Espírito Santo à testa de nossa vida religiosa, deliberam sobre os mais graves interesses do País.

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Para qualquer católico bem formado, a primeira impressão que o Concílio oferece é de grandeza e majestade. E a primeira causa dessa impressão resulta da  relevância dos assuntos que ali vão ser tratados.

É obvio que, durante o Concilio, serão  discutidos e resolvidos os principais problemas concernentes à conservação, intensificação e extensão da Fé católica em nosso País.

Ora, como os problemas concernentes à missão da Santa Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo transcendem incomensuravelmente em importância a quaisquer problemas políticos, sociais ou econômicos, pois que não há problemas que se possam comparar em relevância e gravidade aos que se relacionam com a maior  glória de Deus e salvação das almas, nada pode haver  de mais importante, no momento, para o País, do que o Concilio Plenário que ora se realiza no Rio de Janeiro.

Todo o católico deve, nestes dias, fazer um sério esforço interior no sentido de compreender bem estas verdades e sobretudo de as compreender não só com  a inteligência mas ainda com o coração. Compreendendo a importância do Concílio, não poderá o católico deixar de rezar ardentemente pelo seu êxito perfeito. E, assim, terá cumprido o dever que o momento lhe impõe.

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Acabamos de mostrar que o primeiro título de grandeza do Concílio está no caráter divino dos interesses de que ele tratará. Afirmando essa inegável primazia do espiritual na obra que o Concílio vai realizar, não podemos, entretanto, ignorar ou diminuir o alcance temporal daquela grande assembléia.

Estamos atravessando uma época de um nacionalismo à outrance. Não será supérfluo, pois, que provemos que, ainda mesmo sob o ponto de vista temporal, a tarefa do Concílio ocupa, no conjunto dos interesses pátrios, uma posição de relevância inigualável.

Na ordem meramente política, a mais importante preocupação de um país deve consistir em manter sua existência. A defesa da soberania nacional é, evidentemente, o primeiro dos deveres puramente patrióticos.

Mas há dois modos, para um país, de perder sua existência. O primeiro é quando ele perde sua alma. O segundo quando perde seu território. Ha países  que existem no mapa político contemporâneo como meros  vestígios do que foram outrora. É este, por exemplo o caso de Grécia e do Egito. O Egito ocupa o mesmo território do império dos Faraós, é habitado pelo mesmo povo, tem ampla soberania política e, no entanto, ninguém ousaria afirmar que é o mesmo Egito de Ramsés II. Porque alguma coisa morreu ali, que talvez jamais poderá renascer: é a alma nacional do povo egípcio. A Grécia também ocupa o mesmo território, é habitada pelo mesmo povo, e goza de uma unidade política que ela não chegou a conhecer, como nação independente, nem sequer no século áureo de Péricles. E, no entanto, é certo que a Grécia de hoje não é a mesma Grécia de Aristóteles e de Platão. O que morreu na Grécia? A alma nacional. Ressuscitará ela algum dia? Mistérios da Providência... que só a Providência poderia desvendar.

Outros povos houve que perderam inteiramente sua soberania temporal. Mas a alma nacional se conservou intacta durante a longa opressão sofrida pelo corpo da nação, que é o território. E, apenas reconstituído o território independente por qualquer acontecimento político, a nação se reergue íntegra de sua morte aparente, como se jamais tivesse deixado de viver. É este, por exemplo, o caso da Polônia retalhada, martirizada, ensangüentada e dividida por inimigos externos. Durante todo o tempo da opressão, ela conservou íntegra e vivaz a alma nacional. É a Polônia cuja independência foi sacrificada outrora pelo jogo implacável das ambições políticas.

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Usamos a expressão “alma nacional”. Evidentemente, trata-se de uma metáfora destinada a designar um conjunto de disposições psicológicas que existem em todos os indivíduos de uma mesma nação e que constituem, pois, a característica psicológica da própria nação.

Essas disposições psicológicas engendram costumes, sistemas artísticos e instituições políticas impregnados a fundo da psicologia nacional. Alterada esta, a vida artística, social, cultural e política se alterará inelutavelmente. E no dia em que a alteração tiver sido completa, a nação terá perdido, até certo ponto, a identidade consigo mesma.

Evidentemente, um povo não troca de mentalidade impunemente, como um homem troca de camisa. Em geral, cada povo tem uma missão histórica para a qual o mesmo foi dotado pela Providência de uma estrutura psicológica particular. Sempre que a psicologia nacional se encontra na linha do progresso da estrutura psicológica do País, este estará em rumo ascendente. Sempre que, pelo contrário, a alma nacional evoluir em sentido oposto à sua vocação e à sua estrutura psicológica, o declínio será inevitável.

A Grécia, por exemplo, teve uma missão histórica muito pronunciada no domínio da inteligência. Basta ler-se a Suma Teológica, para se ter uma idéia disto. Os desvios morais de toda a espécie afastaram a Grécia pagã dessa tarefa à qual correspondia tão bem a estrutura do gênio helênico. Realmente, todos os recursos desse gênio passaram a ser consumidos em pequenas lutas intestinas impregnadas do mais deplorável odor de decomposição moral. Cristianizada, a Grécia poderia ter retomado a sua linha  ascendente. Mas o mesmo espírito de divisão e de intriga, ao qual ela sucumbira antes de ser evangelizada, se apoderou novamente dela e a atirou no abismo de um cisma religioso profundo. Os resultados aí estão e dispensam quaisquer comentários.

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A Fé católica longe de suprimir as características da psicologia nacional de cada povo, as acentua.

A razão disto é simples. Todos os povos foram criados por Deus, e as qualidades nacionais não são senão dons naturais que Deus lhes fez. Ora a Igreja acrescenta aos dons naturais os dons sobrenaturais. A ação dos dons sobrenaturais não destrói os dons naturais, porque a graça não destrói a natureza. Pelo contrario, a graça eleva e aperfeiçoa a natureza. E por isto uma nação não pode jamais explicitar tanto sua própria psicologia, quanto saturando-a profundamente de espírito católico.

A Europa medieval, tão profundamente católica, é um exemplo típico disto. Na unidade da civilização católica, quanta variedade de formas de governo, de instituições econômicas e sociais, de manifestações artísticas e de costumes domésticos! E quanta harmonia na inexaurível riqueza destas diversidades!

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Não se diga que a pregação da Fé Católica, tendo este dom de aguçar as características virtuosas da psicologia de cada povo, acentua a diversidade entre elas e os atira todos, uns contra os outros.

Os dons naturais de cada povo, quando utilizados conforme a doutrina católica, completam os dos outros. E esta diversidade de povos, impondo entre eles uma fraternal colaboração, faz nascer uma admirável harmonia, que é tanto mais sensível quanto mais profundas forem as diversidades legítimas. Assim como o encanto da música nasce da diversidade dos sons, assim também a harmonia do convívio internacional dos povos da Cristandade deve nascer das diversidades que entre eles se notam.

Há, pois, uma diferença substancial entre o nacionalismo católico que tende para a paz, a colaboração e a harmonia dentro da Caridade, e o nacionalismo pagão agreste, guerreiro e sanguinário.

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Cumpre acrescentar que quando uma nação se afasta da Santa Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo, ela rompe com a graça e viola a fundo sua própria natureza. Tal nação poderá ainda, sem dúvida, enriquecer-se e dilatar seus domínios. Mas será um crescimento puramente corporal. A alma da nação voltará à Casa Paterna, para não perecer de miséria e de fome.

Na Inglaterra, por exemplo, nota-se uma dualidade de espíritos. De um lado o espírito egoístico, interesseiro, calculista, friamente dominador, que todos conhecem. Este espírito tem íntima afinidade com o que parece arrastá-la através de um liberalismo exacerbado até às raias do socialismo de Estado o mais cru, a débâcle social completa.

Do outro lado, há um espírito tradicionalista, digno, correto, que infelizmente, vive muito mais de formas e de tradições materiais do que de realidades psicológicas.

Este segundo espírito é um resto de perfume católico que sobrou na Inglaterra de hoje, que é apenas semi-cristã, se tanto.

No fundo de todo o tradicionalismo inglês, há uma confusa nostalgia de Roma, uma saudade da unidade universal que reside no Vaticano, o sentido doloroso mas imensamente real de que, neste passado já longínquo ao qual os ingleses se apegam obstinadamente, havia tesouros espirituais que eles perderam, e cuja ausência eles lamentam sem saber exatamente porque.

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A verdade do que afirmamos acima é muito patente no Brasil. Queremos um Brasil verdadeiramente brasileiro? Façamos dele um Brasil verdadeiramente católico. Queremos matar a própria alma do Brasil? Arranquemos a sua Fé.

Onde, nas grandes cidades brasileiras, vive hoje o verdadeiro Brasil? Nas casas de diversões onde se tomam bebidas americanas, se dançam danças semi-africanas, se ostentam decotes de Paris e se discutem romances ou filmes estrangeiros? Não, não é neste ambiente que apostatou da Igreja que sobrevive o Brasil.

 

Como, pelo contrário, o Brasil autêntico, o Brasil verdadeiramente brasileiro ainda vive e vibra no coração abnegado das mães que não aderiram ao modernismo, dos chefes de família que levaram uma mocidade casta e talvez virginal, dos filhos que sabem respeitar seus pais porque sabem ser dóceis à voz da Igreja; no coração dos militares que católico tem de comum com Caxias, não apenas a farda mas a Fé; no coração sobretudo dessa legião de Sacerdotes abnegados que desenvolvem no Brasil a semente espiritual que Anchieta plantou.

Será necessário dizer mais para demonstrar a grandeza histórica da obra à qual se consagra o atual Concilio?